Minha querida neta:
Eu sei que tu aprendeste a fazer pão, quando tinhas aí uns sete anos, nas actividades para-escolares da Escola Alemã. Fizeste muito direitinho tudo a que a professora foi dizendo, regalaste-te com um dos pãezinhos feitos por ti e levaste, para casa, um outro que toda a gente provou e elogiou.
Depois, com a tua independência, quiseste repetir a experiência, mas sozinha, claro, e ao fim de algum tempo tendeste (ou seja moldaste) uns pãezinhos muito bonitos que levaste ao forno, a cozer. Quando passou o tempo que a professora tinha indicado para a cozedura, tiraste-os do forno e oh! tristeza, os pãezinhos não tinham crescido. Ficaram muito sossegadinhos com a forma que lhes tinhas dado, mas o pior foi quando lhe ferraste os teus dentinhos: duros que nem uma pedra. Não choraste porque não és menina de chorar, pelo menos para fora, mas foste-o mostrar à Mami que logo calculou onde devia estar o mistério. De facto, em cima da mesa, estava o fermento branquinho que até te pareceu ter um ar levemente trocista.
Agora, já sabes fazer bolos – com a experiência é que melhor se aprende – e fazê-los sobretudo quando um de nós faz anos: para o vôvô com pouco açúcar, para não lhe aumentar o risco dos diabetes, para mim, sem creme para não ficar a D. Redonda e para os outros, o que tu gostas mais de fazer é uma montagem de chantilly e frutas frescas variadas e coloridas, com tanta arte, que até os olhos se regalam. Mas muito mais se regala o paladar pois é de comer e chorar por mais.
Vieram estas recordações, e muitas outras de que vou falar, da visita que, com o vôvô, fiz há dias ao Museu do Pão, na cidade de Seia. É um espaço muito amplo e muito bem organizado: uma casa moderna, construída para o efeito, e onde se pode ver todo o ciclo do pão, desde a sementeira do grão até, quando as searas já estão maduras, a ceifa, que consiste em cortar as espigas, à debulha, ou seja, retirar o grão da cápsula de palha que o envolve. Depois vêem-se três moinhos antigos, cada um com duas mós (pedras redondas) que, roçando uma na outra, transformam os grãos
Tudo isto está muito bem ilustrado com gravuras apelativas e legendas simples, tal como o que se segue. Mas aqui vêm misturar-se as tais outras minhas recordações de que te falava. Sim, em minha casa, havia uma divisão na cave onde se fazia o pão. Era aí que a minha mãe peneirava a farinha, para lhe extrair o farelo e o pão sair branquinho, a masseira, uma grande caixa de madeira onde se juntava a farinha, o fermento que se tirava da massa da semana anterior, e que era desfeito antes de juntar a farinha e água necessárias até a massa ter a consistência desejada. Mas para chegar a esse ponto, só te digo, Cristina, tinha de se dar muitas voltas: primeiro juntando suavemente os elementos e depois sovando-os – sim, como se estivessem a levar uma sova. Uma vez pronto – não era difícil de adivinhar à experiência de minha mãe que repetia esta tarefa todas as semanas – passava-lhe um pouco de farinha para o moldar melhor e fazia uma cruz em cada pão, dizendo:
São Vicente te acrescente,
São João te faça pão,
e a Virgem Santa Maria
te deite a sua benção (o acento circunflexo no e omitia-se por causa da rima)
Depois era só pôr-lhe um sinal distintivo: um pedacinho de pau, uma bola de massa, no topo, ou outra coisa assim, porque, na aldeia, só havia um forno – o forno do povo – e várias pessoas coziam o pão ao mesmo tempo. E nunca vi que ninguém se tivesse enganado ao recolher o seu pão.
Ficávamos, então, com pão para toda a semana e, mesmo um bocadinho duro nos últimos dias, sempre nos perecia o melhor pão do mundo.
Mas havia outro reino onde eu assistia a uma tarefa semelhante: era na escola primária que funcionava na casa da senhora professora que, por sinal, era minha tia. Quando era o dia de amassar o pão, lá era eu destacada para ir deitar a água na massa à medida que a empregada o achava necessário. E bem gostava eu desta tarefa: é que num banco preguiceiro fechado, ao lado da masseira, havia uma colecção de livros, meio reais meio lendários, sobre figuras conhecidas da nossa História. E eu, olho na massa, olho no livro, passava ali um bom bocado de sonho.
Tudo isto me veio à memória no Museu do Pão, onde encontrei eco de todas as minhas impressões de infância: quatro salas com todas as fases do fabrico do pão, uma outra dotada de um vidro para se poder ver, de longe, - e assim evitar contaminações -como tudo isso era feito. Havia também pães, feitos sem fermento, que eram autênticas esculturas, com muitos e variados bonecos, alguns bem engraçados.
Mas além de tudo isto, há ainda uma cafetaria com uma varanda panorâmica para a serra e um restaurante que não vi porque levávamos outro destino através da Serra da Estrela até à Covilhã, o que de facto fizemos mas com um nevoeiro de cortar à faca e de cortar de medo a respiração. Ah! É verdade: cá fora havia dois carrinhos pequenos e um comboiozinho – não tão zinho assim – para transportar grupos, principalmente de meninos das escolas que, graças àquela visita, ficam a saber as voltas que leva o pão até chegar à padaria.