Minha querida netinha:
Na última carta falava-te da minha Escola, uma Escola muito especial, que não ocupava um edifício novo e bonito como a tua: era uma sala onde a minha tia dava aulas a mais de trinta meninos, com idades entre os cinco e os dezasseis anos, que frequentavam várias fases da primária. Também tinha dois quartos contíguos: um era a sala dos mapas: globo terrestre, planisférios, mapa-mudo – onde não havia nomes, só o relevo das montanhas e os rios que tínhamos de identificar depois de os termos aprendido num grande mapa de Portugal. No outro quarto, havia pesos e medidas e quando, com a chegada do Outono, as aulas retomavam o seu curso, um estendal de cachos de uvas e de maçãs que enchia o ar de perfumes bons. Nenhum menino mexia na fruta porque havia muita lá na aldeia e todos sabíamos que a Senhora Professora não ia gostar. Embora às vezes, quando um menino mostrava que tinha estudado tudo muito bem, levava como prémio uma rica maçã amarela e rosadinha nas bochechas e essa sim, sabia muito melhor.
A professora, minha tia, como te disse, sentava-se atrás de uma espécie de secretária que lhe tapava as pernas e a que chamávamos o trono. Quando íamos ler púnhamos o nosso livro virado para ela e todos nós aprendemos a ler com o livro direito ou de pernas para o ar, o que não nos fez mal nenhum, antes nos tornava mais ágeis na leitura.
Dez em quando, a professora levantava-se e dava uma volta pela turma, a verificar se os que sabiam mais – e nem sempre eram os mais velhos – estavam a desempenhar bem a tarefa de ensinar os mais novos. Mas também a estes dedicava, na medida do possível, a sua dedicada atenção.
Eu entrei para a Escola aos cinco anos porque era muito viva e o meu maior desejo era aprender a ler. Já lá fui encontrar os meus dois irmãos mais velhos – o Manuel na quarta classe e o Alfredo na segunda. O Manuel era muito sossegado e aplicado mas o Alfredo, embora muito inteligente, estava sempre na mira da minha tia, pois era um diabrete incorrigível. Como talvez não imagines, racaía sobre nós uma grande responsabilidade: tínhamos sempre de dar o exemplo, no estudo e no comportamento. Essa situação trouxe-me um dia um tremendo dissabor: estava um menino da quarta classe a tentar desenhar uma circunferência e não conseguia apanhar o jeito de se servir do compasso. Então a minha tia, como era habitual, chamou um sobrinho, neste caso a sobrinha que era eu e disse para a classe:
- Vão ver como a Clementina, que só anda na terceira, vai fazer uma circunferência sem lhe custar nada.
Contente por ter sido escolhida mas nervosa com a responsabilidade, não havia meio de segurar o compasso como devia. Então a minha tia, decepcionada e por isso mesmo furiosa, agarrou-me a gola do vestido da parte das costas, para me dar um safanão. Mas as unhas, que tinha afiadas, resvalaram e fizeram um grande arranhão no pescoço.
Regressei ao meu lugar cheia de pena por não ter sido mais hábil – eu até estava farta de desenhar circunferências – e talvez, por isso, nem sentia o arranhão.
Só que daí a dias íamos fazer à sede do concelho o exame da terceira, o primeiro da nossa vida.
A minha mãe pensou, pensou e chegou à solução: um vestidinho com folhos à volta do pescoço, que nada deixava suspeitar. E fui aprovada, com distinção!