Meus queridos netos:
Já referi, mas só de passagem e talvez não tenham reparado, que depois da saída da minha aldeia para estudar, férias ou o que realmente considerava férias, só tinham lugar no Verão, nos meses de Julho, Agosto e Setembro. Eram as férias grandes, de que falarei noutra altura.
Claro que também tinha férias no Natal e na Páscoa – era só o que faltava ficar a Escola aberta só para mim – mas como continuava em Lisboa e não conhecia muita gente da minha idade a não ser as minhas colegas, ficava um pouco desasada, sem saber muito bem como ocupar o tempo. Não será fácil imaginarem como se podiam passar os dias sem televisão e portanto sem DVD, sem telemóvel e respectivos SMS, sem consolas e os seus variados jogos e também sem automóvel, privilégios de raras pessoas endinheiradas. Era como passar sem frigorífico, sem máquina de lavar loiça ou roupa, sem detergentes e as mil e uma coisas que a vida moderna e a publicidade de hoje nos tornaram indispensáveis.
Havia rádios – chamava-se a telefonia – mas os transístores a pilhas e portáteis só haviam de chegar muito mais tarde.
Os rádios davam notícias, teatro radiofónico ou seja, feito especialmente para esse meio de comunicação, transmitiam as festas dos Santos Populares, espectáculos musicais que elas mesmas produziam - falo da Emissora Nacional, do Rádio Clube Português, que eram as emissoras mais importantes do País – relatos de futebol e alguns anúncios publicitários. Durante a II Guerra Mundial ouvia-se muito a BBC de Londres, onde o Fernando Pessa dava notícias que as nossas emissoras nem sempre transmitiam devido à censura. Nesse tempo havia uma Emissora em língua espanhola, que se ouvia muito bem em Portugal, pelo que era também muito escutada: tratava-se de “Aqui Rádio Andorra, emissora do Principado de Andorra!” como anunciava constantemente uma locutora de voz estridente mas persuasiva. Quanto a Rádios locais nem se sonhava o que viriam a ser.
Mas eu só conseguia ouvir rádio se estivesse com as mãos ocupadas a fazer renda ou qualquer peça de malha. Ouvir rádio nesse tempo era como agora a ver televisão sendo-se cego.
Cinema é que já havia e muito frequentado. Assim, uma vez sem exemplo, lá ia ao cinema do meu bairro, ver um filme escolhido pelos meus Tios ou pelos meus Irmãos. Lembro-me de que o primeiro filme que vi, juntamente com um dos meus Irmãos, foi um filme de Cawboys em que não entrava uma única rapariga. Não fiquei com grande vontade de repetir, mas a verdade é que, depois, vi filmes muito bons e conheci todos os grandes artistas de cinema da época: o Mickey Rooney, o Gregory Peck, o Cary Grant, Humphrey Bogart, Clark Gable e estrelas como Elizabeth Taylor, Ava Gardner, a Betty Davis e tantos outros.
A dada altura, porque a minha Tia e Madrinha, irmã de meu Tio tinha casado e partido com o marido para Angola, fui forçada a encontrar outro poiso. Mudei-me para a casa da Luísa, minha colega na Escola Comercial e minha particular amiga, onde fui encontrar o lar que acabara de perder e ao qual devo muitas e boas horas de felicidade.
Com ela, nas férias, ia dar grandes passeios ao Jardim Botânico, à Estufa Fria, ao Jardim do Campo Grande que tinha (e tem) um lago onde se podia andar de barco e, já andávamos na Faculdade quando até vivemos uma aventura muito divertida:
A Luísa tinha um amigo, aluno da Escola Naval e, num belo dia de Inverno, cheio de sol mas muito frio, fomos velejar para o Tejo, entre o Terreiro do Paço e Algés, ao pé da casa por assim dizer. Mas ao passar por nós um outro veleiro, não sei de quem foi a culpa, o nosso barco ficou com as velas inutilizadas e tiveram de nos rebocar para um porto de abrigo. Sentíamo-nos gelados por dentro e por fora mas eis que um dos nossos salvadores se nos dirigiu a convidar-nos para irmos jantar a sua casa,
Meias de lã e camisolas bem quentinhas foram também uma das amabilidades com que nos receberam porque viram que estávamos mais ou menos encharcados e a bater o dente de frio.
Seguiu-se um delicioso, embora simples, jantar e, depois de mais um pouco de conversa, lá partimos para casa, sem utilizar o carro com motorista que puseram à nossa disposição porque a casa da Luísa ficava duas ruas acima.
A Mamã Ema – como eu lhe chamava – já estava um pouco preocupada com a nossa demora e passou por todas as emoções, ao ouvir o relato do naufrágio, do salvamento e do festim americano que nós apostámos em lhe contar com todo o pormenor e suspense que nos foi possível.
Como esta carta já vai longa, constituirá matéria da próxima o poema épico-cómico que a narrada aventura me inspirou.
Mas voltemos ao assunto anterior: No Natal enfeitávamos uma pequena árvore, armávamos um presépio e nenhum de nós ficava sem presente, embora muito modesto e geralmente feito em casa.
Na Páscoa é que era o tempo dos passeios e das leituras, que muitas vezes eram simultâneos: Levávamos um livro e lá íamos para um daqueles jardins viver as aventuras de Oliver Twist, do Pai Tomás, mas também dos heróis de Dostoievski, da Pearl Buck, do Toltstoi, do Stephen Zweig , de Balzac, de Sthendal e um nunca acabar de autores escolhidos sem grande critério: devorávamos todos os livros que nos vinham parar às mãos. Depois trocávamos algumas impressões sobre o que tínhamos acabado de ler, sem nunca desvendar o enredo se uma de nós ainda não tinha lido aquele livro, que tínhamos ido buscar à Biblioteca Municipal ou alguma amiga nos havia emprestado.
Nessa altura já eu começava a escrever versos e, numa vez que a Luísa teve de ir para o hospital, eu escrevi, com os olhos cheios de lágrimas:
A menina está doente
e a casa ficou vazia.
Parece maior a casa
e longo, mais longo o dia.
Os dias eram realmente longos, mas nunca vazios nem tristes porque os nossos corações estavam cheios de sonhos e de esperanças que esses sim, nunca entravam de férias.