Meus queridos netos:
A primeira e única procissão de que me lembro é também uma das minhas primeiras e piores recordações.
Foi marcada por um episódio cómico – para os que a ele assistiram mas não para mim, apesar dos meus cinco anos – e que vos passo a contar:
A Confraria, no desempenho das suas funções, já tinha decorado os andores: o da Nossa Senhora Auxiliadora (minha madrinha), sobre uma nuvem de flores brancas; o de S. Sebastião (o patrono da aldeia) num tronco de flores vermelhas que parecia terem brotado do sangue que escorria das numerosas setas que se lhe cravavam no corpo: o da Senhora das Dores, com lírios roxos como o seu manto e um rosto tão macerado que sempre, ao vê-lo, desatava a chorar e fugia para o colo da minha mãe.
Os penitentes, que cumpriam promessas feitas em horas de aflição, já tinham as suas túnicas roxas deixando ver os pés descalços e iam desfiando as contas do rosário. Já havia alguns anjinhos mas faltava um: uma menina da minha idade que tinha tido um ataque de varicela e devia estar retida na cama. Então alguém se lembrou de que tínhamos mais ou menos a mesma estatura e, por isso, a sua roupa me serviria e eu poderia substituí-la.
Vestiram-me o vestido branco, puseram-me na cabeça uma coroa de rosinhas brancas e – o que já não me agradava tanto – pregaram nas costas do meu vestido umas asas de penas brancas tão precariamente coladas que já faltavam algumas, desertadas de tão sobrenatural missão.
Tomei o meu lugar na procissão, com toda a compostura que a minha pouca idade me permitia e, mal descemos do adro da igreja para a rua eis uma vozinha chorosa que ainda hoje ressoa aos meus ouvidos:
- Eu quero o meu vestido e as minhas asas! Dá-me o meu vestido que o anjinho sou eu…
Fiquei sem pinga de sangue como se já me tivessem despido; saí da procissão lavada em lágrimas, sem ver nada à minha frente e quando me refugiei junto dos meus pais e irmãos, já com uma asa a menos, ouvi o mais velho dizer:
- Deixa lá. Não te aflijas porque, quando eu for grande, hei-de comprar-te uma farda de anjinho com as asas completas, sem lhe faltar pena nenhuma
Bem me quiseram convencer a retomar o meu lugar na procissão, mas nada feito. A menina, que não resistira a vir espreitar à porta de casa, já fora levada para a cama donde se pensava que não deveria ter saído; o meu lugar continuava vago na procissão em compasso de espera. O senhor prior tinha interrompido as ladainhas, os meninos das caldeirinhas de água benta entretinham-se a aspergir-se um ao outro, alguns anjinhos mais pequenos tinham desatado a chorar e todos olhavam para mim, suspensos da minha decisão.
Mas eu é que não queria mais aquela roupa emprestada, o lugar do outro anjinho e os risos mal disfarçados de alguns rapazes que diziam baixinho, mas de forma a serem por mim ouvidos:
- Pois é! Como lá diz o ditado “quem o alheio veste na praça o despe”.
Eu também conhecia aquele ditado mas nunca tinha imaginado que um dia andaria na “praça” com vestes alheias, ainda que fossem de um anjinho doente.