Nunca pensei que os "olhos do meu coração, no dizer de S. Paulo, revelassem pormenores por mim julgados completamente esquecidos...
Terça-feira, 12.06.07

 

Meus queridos netinhos:

 

            Agora que já fazem uma ideia de como era a minha aldeia, onde vivi até aos onze anos, só dela tendo saído por duas vezes, com o meu Pai para fazer na sede do concelho os meus exames da terceira e da quarta classe, podem calcular o alvoroço – e um certo receio, confesso – quando ouvi a minha tia professora dizer à minha mãe:

 

            - Eu acho que a Clementina devia continuar os estudos.

            - Também sou dessa opinião, mas os dois rapazes, mais velhos, não vão poder ter esse privilégio, porque as terras não dão para muito mais do que ir aguentando as despesas do dia a dia.

 

            A conversa ficou por ali, mas, alguns dias depois, ouvi a minha Mãe dizer para o meu Pai:

 

            - Sabes, ficou-me cá a roer a ideia da minha irmã. Realmente, a Clementina gosta tanto de estudar, que me custa cortar-lhe as asas e mantê-la aqui. Mas os irmãos são mais velhos e os tios de Lisboa já me disseram que se os quisermos mandar trabalhar para as lojas deles, poderiam encontrar ali o seu futuro. Que nada tem a ver  com continuarem os estudos, infelizmente.

            - Pois é, mas sustentamos três filhos – e depois a irmã mais nova – fora de casa, é assunto que merece ser encarado. E alem disso, como sabes, as meninas, mesmo as que vivem nas cidades, não frequentam escolas para além da primária, porque os pais acham que é muito arriscado deixá-las sair de casa, irem e virem da Escola, as companhias, enfim, é o que se ouve dizer.

            - Para mim não é esse o problema. Além de achar que as raparigas devem desenvolver a sua inteligência, tanto como os rapazes, até tenho uma opinião contrária, revolucionária, como costumas dizer.

            - E vê lá se não és revolucionária. Eu bem ouvi os comentários, embora feitos à socapa, quando tu lhe puseste o nome da minha primeira mulher, que Deus haja.

            - E pus, com muito gosto. A senhora não pôde ter filhos, deixou terras, enxoval, aquilo de que agora vivemos e não havia de ver o seu nome continuado? Chamei-lhe Clementina e sei que um dia ela há-de achar que fiz muito bem.

 

            Neste ponto, tenho de confessar que antes de saber as razões do meu nome, nem me agradava lá muito. Mas depois aceitei-o com orgulho porque testemunhava a boa formação da minha mãe.

 

            Desculpem lá este parêntesis e voltemos à discussão do meu futuro no seu desfecho. Desfecho que só conheci quando a minha mãe me disse:

 

            - Olha, filha, nós não podemos dar a mesma educação aos nossos quatro filhos. E, depois de muito pensar, o teu Pai e eu decidimos que os teus irmãos irão para Lisboa trabalhar nas lojas dos Tios e tu vais frequentar uma Escola Comercial. É um curso de quatro anos e não é difícil, com ele, arranjares um emprego. Nessa altura está a tua irmã com a idade que tens agora e já poderás ajudar se ela também quiser estudar.

 

            Acho que não respondi nada. Era um assunto demasiado grave para eu dizer fosse o que fosse mas sei que fiquei muito contente porque era a realização daquilo que eu mais desejava.

 

            Os meus Tios de Lisboa matricularam-me na Escola Comercial Veiga Beirão, cuja secção feminina funcionava no Liceu Maria Amália da parte da tarde, arranjaram uma família onde me hospedei porque, sendo ambos solteiros, não  tinham condições para me terem com eles. E começou a fazer-se um pequeno e simples enxoval, enquanto Outubro se aproximava de mim como uma grande esperança que não seria desmentida.

Boa Noite. Durmam bem!

 

publicado por clay às 14:55 | link do post | comentar | favorito
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