Meus queridos netos:
Quando agora vos falam, e com toda a razão, do valor da água e da possibilidade, não muito remota, de ela se tornar cada vez mais escassa devido às alterações climatéricas, os vossos olhos revêem as trágicas imagens de meninos ou mesmo adultos esqueléticos que, principalmente em África, carregam à cabeça, com os pés descalços na terra gretada, vasilhas de plástico cheias desse precioso líquido, quantas vezes tirada de rios ou poços poluídos.
O vosso coraçãozinho aperta-se, eu sei, porque se consideram uns meninos privilegiados com água a correr nas torneiras e porque acham que nada podem fazer para ajudar aquelas pessoas. Mas isso não é verdade: sei que conhecem muitos truques para poupar água, na cozinha, na casa de banho e não é disso que eu vos quero falar.
Quero mostrar-vos a importância que a falta de água teve para mim quando eu era pequena. A minha aldeia ficava no alto dum monte e não se achava por perto nenhum curso de água permanente. Havia, é certo, pequenos ribeiros que, mal acabava a primavera, se iam rendendo à torreira do sol e ficavam reduzidos a uma ou outra pequena poça onde, não sei como, algumas rãs conseguiam sobreviver quebrando, com o seu coaxar, o silêncio das tardes calmosas.
Havia também uma fonte, ou melhor um fontanário à saída da aldeia. Mas chegados os calores do mês de Julho, a bica começava a diminuir, e quedava no pingue-pingue até chegar de novo o Inverno. Algumas pessoas, poucas, tinham aberto minas onde iam buscar água pura e fresquinha, mas mesmo essa tinha de ser transportada em cântaros de lata, à cabeça, às de vezes de uma distância considerável. E como as nascentes eram pequenas, não era possível partilhá-la com todos os habitantes da aldeia. Esses, na sua quase totalidade iam logo de manhã à fonte pôr os seus cântaros ou bilhas em fila de espera, uma fila que chegava a ter muitos metros e levava muitas horas a desaparecer. Diga-se em abono da verdade que, às vezes até era divertido ficar ali algum tempo à espera da nossa vez. As mulheres punham em dia os ditos e mexericos e as crianças brincavam perto delas, ao bom barqueiro, em danças de roda, à macaca e, as mais afoitas, iam mostrar o seu equilíbrio correndo na borda inclinada dum tanque de granito, onde no Inverno, muita gente lavava a roupa. Claro que não se tratava apenas da nossa habilidade mas também da força centrífuga, que só mais tarde viemos a conhecer na Física, que nos impedia de “malhar” lá dentro.
O povo, porém, lamentava-se, com razão, de tanta falta de água, até que uma pessoa que tinha ido viver para Lisboa e ali conhecia algumas pessoas influentes decidiu meter mãos à obra e conseguir que o Governo desse dinheiro para se escavar mais a mina, em busca de um veio mais generoso que viesse matar aquela sede de água.
Ora acontecia que a mina era pública mas tinha sido escavada, há muitos anos, numa propriedade agora do meu Avô, onde ele tinha outra mina que alimentava um tanque. Aí se lavava a roupa e a água deste ainda se aproveitava para regar uma horta de tamanho razoável. Meteu-se então na cabeça das pessoas – e parece também dos engenheiros encarregados da obra – que, se conseguissem captar a nascente do meu Avô, ficava resolvido o problema do abastecimento de água à povoação.
Mas como nos meios pequenos – e não só – a inveja e a maldade são mais fortes do que a razão, num dia toda a aldeia acordou alvoroçada, dizendo que a água da fonte pública tinha sabão e que este só podia porvir do tanque do meu Avô. Nada mais errado, porque o tanque ficava muito para cima e ao lado da mina e nunca até essa data ninguém se queixara de nada. O que de facto acontecera é que alguém, a ocultas, tinha ido ensaboar a água, para mais facilmente conseguirem as prometidas obras.
Foi um reboliço na aldeia e também na nossa casa porque o meu Pai, que era o Regedor, pegou numa velha espingarda e dirigiu-se para a fonte, onde o povo se tinha amotinado. Claro que nunca ele, alma pacífica e boa, seria capaz de utilizar a arma para fazer mal a quem quer que fosse e nem sei se mesmo de dar um tiro para o ar. A minha Mãe, pessoa impetuosa e mais irritável, acompanhou-o e, qual Maria da Fonte, foi ela quem acabou com a manifestação.
Nós, os meus irmãos e eu, ainda pequenos, ficámos em casa cheios de medo e de angústia, embora então não percebêssemos bem o que se estava a passar.
Mas a questão arrastou-se por muitos anos: o lisboeta metia a sua cunha e vinham os engenheiros para começar a obra; o meu Avô que, na sua qualidade de presidente da Junta, conhecia muito bem e até era amigo do Governador Civil, ia a Viseu e voltava de lá com uma ordem de embargo. Os engenheiros iam, voltavam, a cena repetia-se até que, por fim, o povo levou a melhor e as obras começaram. E porque se tinha partido do falso princípio de que o terreno do meu Avô é que inquinava a água, fizeram por cima da mina uma vedação de arame que lhe tirou um bom pedaço de terreno. Foi tal o seu desgosto que, já velho como era, nunca mais saiu de casa.
Uma bela tarde, mal o terreno tinha sido vedado, a minha Mãe deparou-se com uma enfiada de roseiras junto à cerca, que uma irmã do lisboeta, até aí nossa vizinha e amiga, se tinha entretido a plantar. Então é que foram elas. A minha Mãe, num ataque de fúria, lançou as mãos às roseiras ignorando os espinhos e veio de lá com as mãos a sangrar mas feliz por ter exercido a sua justiça:
- Então o terreno tinha de ser vedado para não se cultivar lá nada e queriam agora transformá-lo num jardim público, para se irem para lá saracotear, a fazer troça de nós? Nem morta …
A verdade é que, feitas as obras, a bica continuou no seu pingue-pingue e só muitos anos mais tarde, com uma nova captação feita muito longe, é que se resolveu o problema da falta de água que agora corre, farta, nas torneiras das casas.
Até breve!...