Meus queridos netinhos:
Num Natal, já eu andava pelos cinquenta anos, recebi o presente mais inesperado da minha vida. Ou antes, mais des-esperado.
Estávamos a trocar as ofertas, quando o meu filho mais novo, agora Pai da Cristina, me pôs nos braços uma caixa enorme, muito bem embalada com fitas e laços e, lá dentro, uma boneca que eu tinha esperado durante toda a minha infância e que nunca chegara a receber.
Nessa época já distante e numa pequena aldeia perdida para lá do Marão, poucas crianças tinham brinquedos e só os mais felizardos faziam gala do seu pião, da bola geralmente de trapos, duns carrinhos puxados por dois bois, tudo em madeira bem colorida, e as meninas atingiam o seu maior desejo quando de alguma feira ou romaria lhes traziam uma pequena boneca de pasta de cartão, toda ela cor de rosa e que em breve, por isso mesmo, estava já a pedir uma boa banhoca. E lá vinham então os choros desesperados em face da massa peganhenta que restava de tão lindo sonho.
Eu tive uma ou duas dessas bonecas, de caras inexpressivas que também encontraram o seu fim na selha de lavar roupa. E tive também mais algumas, feitas pela minha mãe a partir dum pequeno ramo de árvore, onde se pudessem simular uns braços, mais raramente umas pernas, e que com uma cabeça de pano branco recheado de algodão, onde se bordavam grosseiramente uns olhos e uma boca, se podia vestir de muitas roupitas que a minha mãe fazia com retalhos que tivesse à mão. Eram as minhas “monas” e como me tinham dado uma caminha de lata e um pequeno fogão do mesmo material, não precisava de mais nada: podia cozinhar e dar-lhes de comer, despi-las e deitá-las na caminha, enfim, o que uma menina gosta de fazer como se tudo fosse a sério.
Mas o meu problema com as bonecas surgiu no dia em que a minha madrinha, irmã da minha mãe, me mostrou uma grande e bela boneca de porcelana, a meu ver luxuosamente vestida, com cabelo natural e que abria e fechava os olhos azuis como se fosse verdadeira. Mostrou-ma e disse que seria para mim quando eu fosse um pouco mais crescida – na altura não teria mais de seis anos – e embora continuasse na sua posse, eu sentia-a já como se fosse minha: imaginava-me a pentear-lhe os cabelos, a deitá-la no berço do meu irmão mais novo, a abraçá-la, a dar-lhe mimos e carinho.
Mas passados uns dois anos, quando já se aproximava a altura de ver realizadas as promessas que me tinham feito, eis que surge na minha vida a primeira grande catástrofe: os meus avós receberam a visita duns sobrinhos que viviam numa aldeia próxima e a filha deles, uma menina já com os seus doze anos, vê a boneca, agarra-se a ela e nada nem ninguém lha consegue tirar dos braços, e muito menos calar a choradeira que se seguia a cada tentativa de a recuperar.
Lá fiquei eu sem a boneca e também sem a fantasia que rodeava as minhas “monas”, agora reduzidas à sua insignificância.
Os anos passaram, casei, tive filhos todos rapazes pelo que nunca mais entrou na minha vida uma boneca a valer. Vi-as nos quartos das filhas das minhas amigas, quase sempre abandonadas no meio de muitas variantes: Nenucos (gémeos ou não), Barbies equipadas com inúmeros vestidos para as várias profissões e circunstâncias, bebés chorões, enfim, um enjoo para mim e para elas.
Podeis portanto imaginar, meus queridos netinhos, qual não terá sido a minha emoção ao receber das mãos dum filho quase adulto, como prenda de Natal, uma boneca muito parecida com aquela que tão cruelmente me fora tirada.
- Ó mãe, é para si que nunca teve uma boneca.
Claro que já não a abraçava nem lhe dava miminhos e quando lhe penteava os cabelos era porque, realmente, eles estavam a ficar embaraçados. Mesmo assim, sentada numa cadeira no meu quarto, era com parcimónia que te deixava, Cristina, brincar com ela. E agora que tenho um netinho com um ano e meio, estou sempre alerta para evitar que ele lhe puxe pelas pernas ou pelo cabelo – é o que o Zézinho mais gosta de fazer - e a estatele no chão, sabe Deus, com que funestas consequências.
Até breve! Beijinhos dos Vóvós!
Estão a reconhecê-la, aqui em baixo?