Meus queridos netinhos
Agora sim, é que vou direita ao assunto: a Páscoa aparece sempre
Eu achava que as almas estavam mais felizes e, por isso, as pessoas diziam e repetiam: Aleluia! Aleluia!
A Natureza cobria-se de galas, toda adornada das mais diversas e coloridas flores, de que não podíamos prescindir nesta Festa. Primeiro vinham os lírios roxos da Paixão e logo a seguir os brancos, destinados ao altar de Nossa Senhora. Mas eram as “coroas de noiva”, umas hastes flexíveis semeadas de tufinhos de flores brancas, que nos davam a certeza de que a Páscoa estava à porta. Floresciam também os lilases e os goivos, brancos, cor-de-rosa ou vermelhos e uma ou outra roseira temporã. Era com estas flores e também com os malmequeres e as campainhas amarelas espalhadas nos campos que enfeitávamos os nossos ramos de oliveira, espetando cuidadosamente uma flor em cada folha, a ver qual seria o mais vistoso e artístico na procissão dos Ramos, no domingo anterior à Páscoa.
Mas, embora gostássemos muito da procissão dos Ramos, andávamos um pouco aéreos com o jogo do “aconchagar” que consistia no seguinte: escolhia-se um parceiro (colega, amigo ou familiar), enganchava-se o dedo indicador dum no do outro e dizia-se: “Aconchagar, aconchagar para no dia de Páscoa me dares o folar. Reza!”. A cena repetia-se ao longo de semanas, mal se avistava ao longe o nosso alvo e quem dissesse primeiro a frase, é que tinha direito a receber o folar que, na melhor das hipóteses, seria um pacotinho de confeitos de açúcar de várias cores ou, na falta de guloseimas, um berlinde ou um pião, se se tratava de rapazes. As amêndoas doces eram exclusivas das apostas dos namorados. Mas, apesar de ser constantemente repetida, pois estávamos sempre a encontrar-nos, a fórmula mágica só valia no Sábado de Aleluia, depois do repicar dos sinos.
O folar era um elemento indispensável na Páscoa: eram grandes pães feitos com massa levedada a que se juntava azeite e ovos em abundância e que enchiam o forno do povo de alegria e cheirinho bom. Cada família cozia, geralmente, um grande tabuleiro desses bolos (também se chamavam assim embora não levassem açúcar), alguns em formato mais pequeno que os padrinhos tinham por hábito dar, no domingo, aos afilhados. Para tornar a massa mais amarelinha e apetitosa – que os olhos também comem – juntava-se à massa um pouco de água onde se tinham fervido os estames dumas campânulas arroxeadas a que chamávamos açafrão e cuja apanha – porque eram raras – constituía também uma ocasião de despique e brincadeira entre os mais novos.
No dia de Páscoa, começava-se pela higiene pessoal.: toda a gente tomava banho na grande tina de zinco onde se deitavam baldes de água quente e vestia “o fato de ver a Deus” que se trocava por um mais simples, a seguir ao almoço da Festa.
A missa era cantada por dois ou mais sacerdotes (e só um quando começaram a escassear).
Os meninos que ajudavam à missa, muito importantes nas suas roupas vermelhas e brancas, abanavam os turíbulos e o cheiro do incenso embalsamava toda a igreja e também os nossos corações. Era sinónimo de alegria e de fé.
Acabada a missa, cada um se apressava a regressar a casa, porque já lá estava pronta a mesa da Páscoa: uma alvíssima toalha bordada, enfeitada com lilases, uns pires com biscoitos de azeite, o melhor prato da casa com um folar, uma garrafa de vinho fino (vinho do Porto) da nossa pequena produção e uma laranja, a maior e a mais bonita do pomar, para nela se cravar uma moeda de cinco escudos. Como não sabem o que eram escudos, vou dizer-vos quanto lhe corresponderia agora em euros: dois cêntimos e meio! Mas olhem que naquela altura, embora fosse uma oferta simbólica, não era de deitar fora, até porque muitos poucos fazem muito.
E eis que se aproximava da nossa casa, situada mais ou menos a meio da aldeia, anunciado pelo toque de uma sineta e pela algazarra das crianças que se incorporavam no cortejo à espera de partilharem também das guloseimas, o senhor Prior e a sua comitiva.
O sacerdote pedia licença para entrar, saudava os presentes com a aclamação de júbilo Aleluia! Aleluia!, abençoava-os com a cruz que levava de casa em casa para essa cerimónia, comia o seu biscoito e tomava o seu cálice de vinho, e conversava um pouco, enquanto o sacristão metia num saco o folar, e numa caixa, os cinco escudos da laranja.
Distribuíam-se alguns mimos pelas crianças e lá seguiam todos para a casa vizinha, onde geralmente se juntavam familiares e amigos já visitados, em sinal de confraternização. Chamava-se este ritual “Tirar o Folar” que, noutras regiões do Norte, por exemplo no Porto, se chama “Correr o Compasso”.
Conversando e bebericando passava-se o resto da manhã. E, quando tudo acabava, forçoso é dizer que tanto o Padre como o Sacristão, este bem vermelhusco, já não pisavam com a mesma firmeza a irregular calçada da aldeia.
Seguia-se o almoço familiar que, nas casas fartas, constava de cabrito assado no forno público e, nas mais modestas, duma galinha corada depois de cozida para uma saborosa canja perfumada a hortelã.
E, claro, uma ou duas fatias de folar que não precisava de ser doce para nos adoçar a Páscoa e a tornar inesquecível.
Um chi-coração da Vóvó
Procissão (quadro de Amadeu de Sousa Cardoso)