Nunca pensei que os "olhos do meu coração, no dizer de S. Paulo, revelassem pormenores por mim julgados completamente esquecidos...
Terça-feira, 31.07.07

 

            Meus queridos Netos:

 

            Quando o meu Pai e a minha Mãe planearam o meu futuro – o futuro nunca se pode planear pois é cheio de imprevistos ou como diz o ditado: “…a Deus pertence”, decidiram como já disse, que eu iria fazer o Curso Geral de Comércio o qual, em quatro anos com aproveitamento, nos dava possibilidade de nos tornarmos funcionários médios, no Estado ou Empresas Privadas.

 

            Assim, pensaram eles. Empregar-me-ia e ajudaria a pagar os estudos da minha irmã, mais nova do que eu quatro anos precisamente. Mas, ao contrário de mim, a Maria Alice, embora inteligente, nunca gostou de estudar. E, sem grande vontade, aceitou ir para Lisboa mas para tirar, como a minha Madrinha, um Curso de Corte e Costura.

 

            Sem entusiasmo e cheia de saudades dos Pais, só aguentou um ano em casa de meu Tio. Regressou à nossa aldeia, onde se sentia bem e era muito estimada e onde só nos encontrávamos nas férias grandes, claro. Éramos e ainda somos muito amigas mas tivemos vidas muito diferentes: eu corri meio mundo – Lisboa, Açores, Angola, Moçambique, S. Tomé, novamente Lisboa, depois outra vez Açores e Lisboa sempre em trabalho, enquanto ela ficou muitos anos na aldeia onde casou com um rapaz duma freguesia próxima para onde foi morar passados uns anos e onde teve os seus quatro filhos. De lá só saiu para o Porto, quando foi ao casamento do seu filho mais velho, o Carlos, para o casamento da Minda e, infelizmente, depois muito frequentemente por causa da gravíssima doença que a atingiu há alguns anos.

 

            Em Távora, era essa a terra do marido, este tinha muitas propriedades herdadas do Pai e tornaram-se agricultores prósperos, pois cultivavam muitas árvores de fruto, principalmente videiras e cerejeiras. Tiveram de trabalhar muito: ela na lida da casa e a criar os filhos e ele no campo muitas vezes para evitar contratar mais um jornaleiro, fazendo o trabalho deste. Mas aumentaram as suas propriedades e agora, já com idade avançada, têm a ajuda do filho mais novo, o único que também escolheu a agricultura e a vida da aldeia, e da nora que muito os estima.

 

            E assim se explica que eu tenha continuado a estudar: ao acabar o Curso Comercial: como os estudos da minha irmã estavam definitivamente postos de parte e, como os meus professores insistiam em que eu fosse fazer o Curso de Letras, para o qual me achavam grande vocação, eu atirei-me ao estudo e nunca mais parei.

 

            Quando acabei o curso, concorri para o ensino pois, de facto, a minha vocação era ser professora.

 

            Já tinha leccionado, no ano dedicado à elaboração da minha tese de licenciatura, “Fialho de Almeida e as Artes Plásticas”, num colégio particular que então havia em Almada, tendo de fazer todas as manhãs a travessia do Tejo num cacilheiro. Mas ficava com a tarde em grande parte livre para os meus estudos.

 

            O meu professor Doutor Jacinto Prado Coelho prometeu-me a primeira vaga de assistente quer houvesse na Faculdade. Como estas vagas eram raras, tive de me candidatar ao ensino secundário. Mas, como o grande concurso era em Maio e nós só obtínhamos a licenciatura em Julho, poucos lugares nos restavam. A mim, apesar da minha alta classificação, ofereceram-me um lugar de professora de Inglês no Norte ou dar aulas nocturnas numa Escola Técnica. Pus de lado ambas as hipóteses até porque, entretanto, uma pessoa amiga conseguiu saber no Ministério que havia vaga para uma professora de Francês no Liceu Antero de Quental, em S. Miguel nos Açores. Esse ano lectivo, de que ainda falarei, considero-o como um ano de férias maravilhosas, apesar de ter muitas turmas e, além do mais, tratando-se de uma principiante, ter tido sempre muito trabalho, com a preparação das aulas, pois da Faculdade saía-se com conhecimentos meramente teóricos.

 

            Apesar da inesquecível experiência dos Açores, no ano seguinte não resisti à tentação de Lisboa e fui dar aulas no Liceu Maria Amália, onde fiquei três anos agradáveis até conhecer o Vôvô, casarmos e irmos para Angola.

 

            Como chegámos em Fevereiro e ainda para mais eu estava no quarto mês de gravidez do meu primeiro filho, só fui trabalhar para o Liceu Paulo Dias de Novais, de Luanda, em Outubro, e só durante um ano, em que nasceu o Zé António, pai do Zézinho. Tinha ele oito dias quando fomos com o Vôvô para a Caála, uma pequena cidade perto do Huambo, e, durante dois anos, fui professora de Português do terceiro ciclo no Liceu de Nova Lisboa, hoje Huambo. Aí ficámos dois anos e foi lá que nasceu o Quim, pai da Cristina. O Liceu ficava a vinte quilómetros, em óptima estrada alcatroada, quase toda ela uma recta. Apressei-me a tirar a carta de condução e lá ia eu todos os dias com uma colega de matemática a quem dava boleia. As aulas decorreram sempre na normalidade.  Tirando os sobressaltos da guerra que irão constar de outra carta, a nossa vida decorreu pacífica e agradável, a ver crescer os dois bebés naquele clima de planalto, tão saudável. Tínhamos muitos amigos, em particular um casal da nossa idade e com um filho da idade dos nossos, com o qual dávamos grandes passeios, naquele imenso planalto, por vezes com mais de dois mil metros de altitude. O Monte Moco, por exemplo, atinge dois mil e seiscentos metros.

 

            Mas não era preciso ir muito longe para apreciar paisagens deslumbrantes. Basta dizer que na Primavera os campos ficavam esmaltados de cosmos vermelhos, brancos, cor-de-rosa, amarelos, numa paleta de cores como nunca mais encontrei.

 

            Mas passados esses dois anos fomos para Luanda, onde o Vôvô foi ocupar um  cargo nas Obras Públicas e eu fui leccionar para o Liceu Salvador Correia, onde fiz o estágio e fui professora metodóloga durante alguns anos. Nessa qualidade e com outros colegas, fui por duas vezes a Moçambique integrar o júri nacional de exames e, muito bem recebidos, tivemos o privilégio de nos mostrarem algumas belas paisagens e também os hipopótamos, em plena liberdade, no Rio Limpopo.

 

            Ainda em Angola, acompanhei um grupo de jovens estudantes a S. Tomé, ilha que ficou gravada na minha memória, desde a magnífica Baía de Ana Chaves, onde a capital está implantada, até às roças de cacau, com as suas típicas casas coloniais ricas e enormes, mergulhadas no verde da vegetação luxuriosa e todas com praias lindíssimas, como a célebre Praia das Sete Ondas.

 

            Os dezassete anos de Angola foram cheios de peripécias mas, no conjunto, foram anos felizes. Como vos disse numa carta anterior, escreverei, lá mais para diante, algumas cartas dedicadas à vida dos vossos pais e dos vossos avós nessas terras de gente maravilhosa.

 

            Chegou então a época da descolonização e, como já disse, quase todos os portugueses e muitos africanos naturais das antigas colónias vieram para Portugal com o impróprio nome de “Retornados”, pois a grande maioria, mesmo portugueses, nunca tinham estado em Portugal.

 

             Assim terminaram os nossos cerca de dezassete anos, seguidos, em Angola, onde criámos e deixámos amizades, e onde tivemos o imenso gosto de colaborar, com o nosso trabalho, no desenvolvimento daquele  país.

             

             Em Lisboa, onde nos fixámos, tivemos de criar novamente, a pouco e pouco, um novo lar. Alugámos então, por sorte e por intermédio de uma amiga, um apartamento que tinha vagado na parte da manhã. Mas, como corriam boatos de que essas casas eram logo ocupadas ilegalmente de noite, como garantia, fomos dormir lá nesse mesma noite, e no chão, porque, quanto a mobílias, durante alguns dias, “desfrutámos” apenas de uma cadeira e de uma mesinha de jogo cedidas amavelmente por uma vizinha de outro andar!

 

            Passados cinco anos, já os filhos andavam na Faculdade, partimos para os Açores, mais exactamente para Angra do Heroísmo, onde o Vôvô foi exercer um cargo num organismo estatal criado especialmente para proceder à reconstrução das ilhas mais devastadas pelo grande terramoto que ocorreu naquela Região Autónoma em 1980. E eu fui fazer formação profissional de professores para a Secretaria Regional de Educação, o que, além do mais, me permitiu percorrer as ilhas todas e ficar a conhecer bem o Arquipélago, até melhor do que muitos açorianos

 

            Cerca de cinco anos depois, em 1985, regressámos definitivamente a Lisboa. E desses cinco maravilhosos anos de trabalho nos Açores há tanta coisa interessante para contar, que prometo retomar o fio da meada numa próxima carta.

 

Até breve. Beijinhos.

 

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Domingo, 29.07.07

                                               Quando eu parti era dia.

                                               O sol batia no mar,

                                               a estrada era comprida

                                               e o sol também lhe batia.

 

 

                                               (Isto foi quando parti)

 

 

                                               Depois já não era dia.

                                               O sol morria no mar...

                                               mas não batia na estrada

                                               que era ainda mais comprida

                                               do que a princípio parecia.

 

 

                                               Clementina Relvas

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Sexta-feira, 27.07.07

                            

 

            Meus queridos netos:

 

            Eu sempre estive convencida de que tinha muitas e boas razões para estudar. Em primeiro lugar, aprender, depois recompensar os meus Pais que tantos sacrifícios faziam por mim e finalmente, também confesso o meu pecado, pelo orgulho de ser sempre a melhor. Daí resultavam, por vezes, algumas compensações: nem prendas, nem muitos elogios porque todos julgavam, e eu também, que estava apenas a cumprir um dever, fazendo o meu trabalho como os outros faziam o seu.

 

            Mas quando acabei o Curso Comercial com a média, muito elevada para aquele tempo, de dezassete valores, recebi o prémio de melhor aluna, dado pela Associação Comercial de Lisboa: um envelope amarelado, banal – que ainda guardo – tendo lá dentro cento e trinta e cinco escudos, o que corresponderia agora a cerca de sessenta cêntimos mas que, na altura dava para comprar cento e setenta jornais diários, fazer igual número de viagens de eléctrico ou ir dezassete vezes a um bom cinema.

 

                   

            Depois, além de ter sempre beneficiado de isenção de propinas, que só era concedida a alunos com bom aproveitamento – e baixos rendimentos, claro – fui ainda, no fim do segundo ano da Faculdade, premiada com uma bolsa de estudo de Francês que me proporcionou a regalia de passar um mês em Pau, uma cidade muito bonita perto de Lourdes, nos Pirinéus, para estudar a língua numa secção da Universidade de Bordéus.

 

            Acontecia, porém, que tínhamos de pagar a viagem de comboio, a qual, somada a outras pequenas despesas, se calculou vir a importar em quinhentos escudos (comparem com o prémio que tinha recebido e logo verão se não era inacessível para mim). Desesperada, tive a lembrança de expor o meu problema a um dos Tios que tinha em Angola e logo ele me enviou a quantia salvadora.

 

            Lá parti, então, na companhia da Milú, em terceira classe, mas radiante por ir conhecer um mundo que me era muito familiar dos livros, mas só.

 

            Na Universidade tínhamos aulas de Francês escrito e falado, muitas visitas de estudo, sobretudo à montanha, ainda nevada, do Pic du Midi ou a Gavarny mas também ao Santuário de Lourdes, às grutas de Betharam, etc.

 

            Tomávamos o pequeno-almoço na casa em que alugámos os quartos através da Universidade e almoçávamos na cantina universitária, talvez uma centena de alunos de várias nacionalidades. A Segunda Guerra Mundial tinha acabado há poucos anos e a França, em grande parte destruída, estava a renascer das cinzas e ainda havia muita falta de bens, sobretudo alimentares. Por isso, a nossa comida era bastante frugal, supervisionada contudo por uma nutricionista, para lhe garantir a composição adequada. Mas nem sempre nos deixava saciados, o que também acontecia quando íamos em excursão com o competente piquenique.

 

            À noite juntávamo-nos em grande número numa espécie de Associação -  separada do Liceu Louis Barthou, onde a Universidade funcionava -  e aí conversávamos em francês com holandeses, espanhóis, alemães, argelinos e outros, a princípio com grande dificuldade e depois já mais afoitamente. Os que melhor falavam francês eram evidentemente os argelinos, pois eram professores primários e a Argélia uma colónia francesa. Logo depois vinham os holandeses e os portugueses. Os ingleses não falavam francês propriamente dito, mas o que se costuma chamar “franciú”. Havia música gravada e, às vezes, lá se armava o bailarico. Vendiam-se bebidas não alcoólicas e não me lembro se alguma coisa de comer, do que duvido.

 

            Do que me recordo muito bem é que, quando voltávamos para casa, havia sempre um grupinho de rapazes ansiosos por nos acompanhar, não tanto por sermos muito novas e a Milú muito bonita, mas na esperança de serem mimoseados com algum biscoito de azeite de que a minha mãe, previdentemente, me enchera uma grande caixa ou com um pouco de doce de cerejas, que tinha de ser comido à colher, por falta de pão, e à porta da rua já que  não podíamos receber visitas.

 

            O ambiente era alegre e saudável, os professores competentes, exigentes sobretudo com os horários, mas também sabiam acamaradar connosco. Foi um mês inesquecível – rifixe como dizem agora e nós, no nosso tempo, considerávamos com himalaias de coisas boas.

 

            Havia uma das nossas colegas portuguesas, a Maridite, cujos pais a acompanharam. O Pai era bancário e a Mãe professora primária e, como simpatizaram logo connosco, eram eles que nos pagavam uma ou outra laranjada ou um apetecido gelado.

 

            Organizámos um jornal, em francês, de que saíram seis números com temas da vida académica e também anedotas que se chamava “PAU POURRI”. Era uma forma abreviada de dizermos “Pau pour rire” um trocadilho com o que realmente significa “Pau apodrecido”

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            No fim do curso tivemos de fazer uma composição sobre um tema, à escolha, relacionado com o nosso País. Eu escolhi Os Descobrimentos Portugueses e fiquei toda ufana quando vi, escrito pelo punho do professor: “Muito bem! escreve como uma francesa culta”.

 

            Ufana, mas também com vontade de rir porque, antes de ir para a Faculdade, tinha tido um correspondente francês a quem pedira para me corrigir os erros e que,  numa das suas cartas me dizia: “Praticamente não tenho erros para emendar mas, não sei porquê, quando leio as suas cartas, elas fazem-me lembrar os clássicos que estudei na Escola”. Mas eu sabia porquê: É que a minha professora de Português, da Escola Comercial, que muito me ajudou a preparar os exames de transição para o Liceu, além de me ensinar Latim, pusera-me a ler, intensivamente, Racine, Molière, Corneille, entre outros. E foi assim que adquiri um francês correcto mas antiquado, eu que, além desse, só tinha aprendido o francês comercial e ignorava como se dizia, por exemplo, candeeiro de iluminação pública e a maior parte das palavras usadas na vida corrente.

 

            O mês de Pau soube a pouco. Fiz a viagem de regresso, com a Milú, num comboio horrível e passámos quase toda a noite à espera da correspondência, numa estação desolada, fria e quase às escuras, com o fito de pouparmos um dinheirito e sair em Salamanca para comprar uma poucas peças de roupa interior.

 

            Para ocupar o tempo na gare, a Milú foi comprar cigarros, dos mais baratos, claro. E tanto eu como ela nos fartámos de tossir, engasgadas com aqueles“mata-ratos” e ficámos vacinadas contra o vício de fumar.

 

            Esta bolsa de estudo também me trouxe, por acréscimo, a amizade da Milú e do Gilbert que, como sabem, ainda hoje perdura.

 

 Até à próxima! Beijinhos da Vóvó!

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Quinta-feira, 26.07.07

            Meus queridos netos:

 

 

            Hoje vou contar-vos um dos acontecimentos mais dramáticos da minha vida.

 

            Ainda não tinha cinco anos quando se deu o desastre que vitimou o meu Irmão Zeca, mais novo do que eu dois anos, e meu predilecto companheiro.

 

            Tínhamos por hábito e diversão, quando o meu Pai chegava do trabalho no campo, montarmos ambos no nosso cavalo Carriço e levá-lo à fonte pública, onde ele se dessedentava na água que, apesar de ser escassa, pouco a pouco ia enchendo um tanque destinado aos animais.

 

            Também, nesse dia, nos agarrámos ao meu Pai, pedindo-lhe que nos deixasse “levar o cavalo a beber”. Apesar de muito pequenos, éramos peritos em montar o Carriço, animal meigo e dócil, de que muito gostávamos. Mas, nesse dia aziago, ao regressarmos da fonte, cruzámo-nos com um grupo de miúdos da nossa idade, dois deles até nossos primos, que, por brincadeira se puseram, com umas pequenas varas e fazendo uma grande algazarra, a fustigar o cavalo ou, pelo menos, a tentar fazê-lo. Contra o seu habitual comportamento, o cavalo assustou-se, tomou o freio nos dentes e disparou por aí fora a galope até chegar ao largo que fica no cimo da povoação, defronte da Igreja. Aí, com a curva que ele teve de dar, ambos fomos cuspidos. O meu irmãozinho bateu de chapa no lajedo e eu, que era mais velha e ia à frente, consegui agarrar-me às crinas do cavalo e assim amortecer a queda, saindo incólume do acidente. O mesmo não aconteceu ao Zeca, que se pôs a definhar, triste, triste, até que, passados uns quinze dias, começou a sangrar da boca. Chamado de urgência, o médico da Vila mais próxima veio vê-lo mas mais não pôde fazer que detectar uma grave hemorragia interna. Passados outros quinze dias, o menino não resistiu e foi ter com o seu Anjo da Guarda.

 

            Não se pode descrever a dor dos meus Pais, a casa mergulhada em luto e a tristeza de todos os irmãos que tanto o amávamos. A minha Mãe, que tinha uma grande sensibilidade poética, escreveu na sua Cédula Pessoal palavras dilaceradas e dilacerantes.

 

            Lembro-me dele no seu caixãozinho branco, o rosto e as mãozinhas cor de cera, e das campainhas amarelas que nessa primavera esmaltavam os campos e onde eu colhi uma autêntica braçada para lhe prestar a minha homenagem e amenizar um pouco o meu sofrimento.

 

            A minha Mãe não deixou que eu me culpabilizasse, dizendo que não era possível eu ter-lhe prestado qualquer ajuda mas, embora sabendo bem que ela só constatava a verdade, sempre me ficou gravada no fundo do coração, a mágoa daquela morte inesperada e injusta.

 

            Mais tarde havia de me interrogar sobre qual a razão de eu ter sido poupada e de o meu irmão, tão pequenino e tão bom, assim ter perdido a vida. A Fé fez-me acreditar que certamente ele era melhor do que eu e Deus o escolheu para ter junto de si mais um anjinho sem qualquer mancha de pecado, enquanto eu, na minha longa vida, iria ter muitas ocasiões de pecar, de me arrepender e de me acolher à protecção de Deus, pedindo-lhe que depois deste desterro eu possa reencontrar esse anjo que no Céu canta hossanas e intercede por mim.

 

            Esta não foi, porém, nem podia ser, a única morte que testemunhei: além da dos meus Pais, mais enquadradas, pelas suas idades, na lei da vida, vivi também a morte dos meus outros dois irmãos, o Alfredo ainda muito novo e no meio de grande sofrimento, e o Manuel já com idade avançada, bem como a de muitos amigos,

 

            E ainda duas mortes que foram, posso dizê-lo em consciência, mortes de bocados de mim: a do meu primeiro filho, José António, que, devido a um acidente de parto, só durou dois dias em que não chorou e mal se limitava a gemer baixinho, o que me enchia de angústia, e a de um quarto filho, também menino, que não chegou ao fim de tempo de gestação, tendo-o perdido aos quatro meses. A dor que então senti por tal perda acidental, é que me faz repudiar o aborto como um acto criminoso e cruel.

 

            Quanto ao que passei devido à morte do Zé António, não há palavras que descrevam a minha frustração quando, logo de manhã, via levar os bebés do berçário para o colo das mães a fim de serem amamentados e eu ficar ali no meu quarto, donde tinham retirado o bercinho vazio, sozinha e sempre a buscar com os olhos do coração o meu primeiro bébé, perdido para sempre.

 

            Foram ainda alguns dias assim, pois o parto tinha corrido muito mal e eu fui forçada a ficar algum tempo no hospital, em recuperação.

 

            Ao chegar a casa, arrumei bem longe da vista as roupinhas tornadas inúteis, até nascer o segundo Zé António, pai do Zézinho. Mas ainda fiquei num grave estado depressivo e, durante um mês, não fui capaz de me ocupar da casa nem de me interessar por nada. Valeu-me o facto de, passado cerca de um ano, ter tido este segundo filho e também o de, muito antes disso, ter começado a dar aulas no Liceu, o que, para mim, foi sempre um lenitivo. Cerca de quinze meses depois nasce o nosso terceiro filho, o Joaquim Manuel, carinhosamente tratado, até hoje, por Quim, pai da Cristina.

 

              Tempos felizes se seguiram então, até que, anos mais tarde, quando fiz o estágio para me tornar professora efectiva: após um profundo esgotamento nervoso, não era capaz de entrar no Liceu, mesmo acompanhado pelo Vôvô ou pela minha colega Manuela, a que esteve comigo nos Açores e depois se me juntou em Angola. (Sobre o meu trabalho e os anos que permaneci neste grande país de língua portuguesa ocupar-me-ei em futuras cartas). Na manhã do primeiro dia de aulas fui atacada de vómitos irreprimíveis e choro desabalado, a ponto de o Vôvô me dizer com voz mais enérgica do que habitualmente: “Vê lá se te decides. Se quiseres fazer o estágio, tens de vencer todas essas fraquezas. Se não puderes, não o fazes, porque não será por isso que iremos morrer de fome”.

 

            Ora o psiquiatra que me tratara em Lisboa tinha-me avisado desse dilema. E na sua opinião, se fazer o estágio ia exigir de mim uma grande força de vontade e um grande esforço, isso me compensaria psicologicamente pelo facto de ter vencido; o não o fazer talvez não fosse melhor para a minha saúde porque ficaria frustrada para sempre.

 

            Com esses conselhos presentes, decidi-me a dizer sim à minha vocação. E qual não foi o meu espanto quando, mal comecei a lidar com os alunos que começava o meu horário, me passou todo o mal-estar e me senti completamente à vontade.

 

            Desculpem, se hoje vos impressionei, mas a vida, que às vezes é uma festa, não tem só tempos felizes. E nós temos de nos preparar para, com coragem, enfrentar as adversidades e seguir em frente, na esperança de termos sempre Deus a nosso lado.

 

            Desejando que o mesmo suceda convosco, beijinhos da Vóvó.

26/07/2007 - Dia de S. Joaquim e Sant'Ana (dia dos avós) - Em baixo, reprodução da escultura em terracota policromada do séc.XVIII, representando S. Joaquim e Sant'Ana ensinando Nossa Senhora, sua filha, a ler (da página www.cabralmoncadaleiloes.pt/):

 

                                                                 

 

           

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Domingo, 22.07.07

 

 

 

            Meus queridos netos:

 

 

            Era aos sábados. Todos os sábados, infalivelmente, era o mesmo. Sempre o mesmo. Vinham de muito longe, sobretudo dos lados de Sernancelhe, Penedono e outras aldeias da zona, onde não se produzia azeite e, fartos de temperar a parca comida com banha ou pingo de toucinho frito, quando os havia, era essa a esmola que eles mais desejavam e pediam. Mas como faziam longas jornadas a pé, fiados apenas na caridade alheia, precisavam sempre dum prato de sopa e dalgum naco de pão de centeio cozido na nossa casa, para poderem matar a fome.

 

            A minha Mãe já os conhecia e até tinha adoptado alguns, que conhecia pelo nome e aos quais pedia notícias daquelas serras agrestes, onde nunca nenhum de nós fora, a não ser o meu Pai, para as feiras. Esses recebiam, por acréscimo, algum bocado de queijo, azeitonas ou uma tira de toucinho.

 

Mas nenhumas destas esmolas substituíam o desejo do azeite, que transportavam às costas, num odre de pele de cabra, curtida e virada do avesso.

 

            A mim, então ainda pequena, o que mais me impressionava era um pobre entrevadinho, deitado no dorso do seu burro, que um moço levava à arreata. Era esse moço que lhe chegava à boca a água e a comida. Vinha também de muito longe, mas só aparecia uma ou duas vezes por ano, em busca do precioso azeite.

 

Toda a manhã era uma ladainha ininterrupta, em que cada pobre, uma vez recebida a esmola, que pedia “pelas almas de quem lá tem”, rezava por todas as intenções dos seus benfeitores, assim pagando a sua generosidade.

 

Embora não fôssemos ricos, também havia, de vez em quando, uma pequena moeda, que essa era, compassivamente, dada pelos miúdos e seguida de intermináveis pedidos de bênçãos: “que Deus o faça um santinho”, “que Nossa Senhora seja sua madrinha e protectora”, intercaladas de “Ah! como está bonito e crescido (ou crescida) desde a última vez que aqui passei”.

 

A nossa aldeia era pobre, mas, infelizmente, outras havia ainda mais pobres por aquelas serranias!

 

Era deste modo que a minha Mãe punha em prática as Obras de Misericórdia, por nós aprendidas na catequese: dar de comer a quem tem fome, vestir os nus, dar pousada aos peregrinos, consolar os que sofrem... Por isso além da comida, também se guardava cuidadosamente a roupa ainda em bom uso, para dar aos mais andrajosos. A que nos deixava de servir, levavam-na para o rancho de filhos que tinham deixado em casa. E ainda, frequentemente, se arranjava uma cama no palheiro – uma manta bem quentinha e um bom monte de palha -  sobretudo em tempo de invernia, embora no Inverno os pedintes fossem mais raros. Esses deixavam-nos transidos de medo com os relatos de lobos encontrados no caminho ou mortos por terem dizimado algumas ovelhas, deixando os proprietários em lágrimas.

 

            Hoje tudo é diferente: a caridade não é bem vista e até parece que passou de moda, embora a Igreja lhe tenha dado novo alento ao proclamar que a Caridade é Amor.

 

            Mas, dum modo geral, pensa-se que é ao Estado que compete acudir a todas as misérias, o que não é financeiramente possível, sobretudo nesta época em que todos exigem tudo e muitos ficam sem nada.

 

            Mas houve e há grandes progressos: optou-se por institucionalizar a caridade através das Obras de Solidariedade Social, criou-se o Banco Alimentar Contra a Fome, a Cruz Vermelha, Ajuda de Berço, Sol, Abraço, AMI e uma grande variedade de outras ONG em que pessoas de boa vontade contribuem voluntariamente para acudir aos mais precisados.  Há ainda as Misericórdias, fundadas pelo coração compassivo da Rainha D. Leonor, já em 15 de Agosto de 1498, e que atingiram hoje uma dimensão de tal relevo que já não se poderia passar sem elas. E há também, em quase todas ou todas as Igrejas das várias confissões religiosas, nomeadamente na Católica, Creches, Centros de Dia, Lares para velhinhos, refeitórios, serviços voluntários ao domicílio dos que já não podem sair de casa, visitas aos hospitais e prisões, num testemunho inabalável de que Deus é Caridade e a Caridade é Amor. E o que é mais interessante e comovedor, é que grande parte deste voluntariado é feita por jovens.

 

            A miséria tornou-se, talvez, menos constante e aflitiva. Mas ainda fica muito por fazer: como acudir, por exemplo, a todos os homens e rapazes que, a pretexto de ajudar a aparcar os carros, mesmo quando não há nenhum lugar vago, esperam receber uma esmola dum euro que logo transformam em droga. “Dou-lhe a moeda? Não dou, não colaboro”, é sempre um dilema difícil de resolver no meu íntimo. E os sem abrigo? E os milhares de desempregados, sem perspectivas de futuro, os emigrantes, nem sempre acolhidos com a fraternidade que lhes é devida? E os excluídos por questões raciais e muitas outras injustiças?

 

Em meu entender, muito se ganhou em eficiência mas perdeu-se aquela relação, quase religiosa, que se estabelecia pessoa a pessoa e que me parece urgente recuperar, sobretudo para acudir à solidão de tanta gente à nossa volta. E quantas vezes bastava um simples gesto, uma palavra de conforto ou sobre nada em especial, pois há imensas pessoas que não têm com quem falar.

 

Lembro-me, ainda criança, quando voltava da Escola Primária, parar no caminho para casa e ir ao encontro duma velhinha que, na sua varanda voltada para a rua da aldeia, contava que eu lhe enfiasse uma porção de agulhas com linhas pretas ou brancas, coisa que os seus olhos muito cansados já não conseguiam fazer. E como eu me sentia feliz quando a ouvia dizer-me, com o seu melhor sorriso, a que nem a falta de muitos dentes retirava o encanto que ela tinha para mim: “Que Nossa Senhora a abençoe e em paga lhe conserve a sua rica vista!”

 

            Sim, que Deus nos dê olhos – e olhos do coração – com que possamos ver para fora de nós e encarar o outro, como nosso Irmão, digno do nosso amor e solidariedade.

 

È o que também deseja, para vós, a Avó que se despede até breve, com um abraço.

                      

 

 

 

 

 

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Quarta-feira, 18.07.07

 

 

 

 

                                               

 

 

 

            Meus queridos netos:

 

 

            As férias grandes! Como encontrar as palavras certas para exprimir o alvoroço, misto de ansiedade e emoção, que me invadia o coração mal começava a avizinhar-se o dia da partida.

 

            Nem mesmo o passar dos anos conseguem acalmar esse turbilhão confuso de sentimentos e criar uma rotina.

 

            Entrava na terceira classe do comboio, no Rossio, como se fosse uma princesa de volta aos seus domínios. Cada estação ultrapassada, até o mais modesto apeadeiro, me pareciam alguém conhecido a saudar-me e a desejar-me “Boa Viagem”! Em algumas reconhecia os festões de rosas de toucar, os hirtos malvaíscos multicoloridos ou os canteiros de gerânios em floração.

 

            Mas em breve caía a noite e as estações, desertas e mal iluminadas, eram ainda assim e enquanto o sono me não vencia, etapas ganhas naquela carreira para o pódio da felicidade.

 

            Do Porto para cima tudo se alterava. Era de manhã e as estações fervilhavam de vida: enfiavam-se apressadamente arrufadas pela janela do comboio em troca de algumas moedas. Viam-se mulheres atarracadas vergadas ao peso de grandes cestos de vime, cheios de maçãs ou de galinhas vivas e outras que, de bilha de barro ao quadril, vendiam copos de água aos passageiros, cuja sede aumentava à medida que se iam penetrando naquele reino de xisto, disposto em socalcos ao longo dos séculos por tantas gerações de homens heróicos que ali conseguiram o que, pela sua imponência, singularidade e beleza, foi integrado por mérito próprio no Património da Humanidade em l4 de Dezembro de 2001.

 

            Os meus olhos a custo se despregavam do rio, que, a determinado ponto do percurso, corre a par do comboio, ignorando que jamais haveria um vencedor e um vencido, porque o rio deslizava para oeste até à Foz do Douro e o comboio subia lentamente aquelas serranias em direcção a leste, a Barca de Alva.

 

Naquele tempo o rio Douro ainda não era navegável, ainda não se tinham construído as grandes barragens como as da Valeira e Carrapatelo, que o transformaram num rio diferente: um grande mas regulado canal, já sem as quedas traiçoeiras que afogaram o Barão de Forrester e agora permite um turismo de luxo com os seus paquetes de cruzeiro. Naquele tempo deslizavam rio abaixo muitos barcos rabelos, transportando ainda o vinho fino das grandes quintas produtoras até às casas de Vila Nova de Gaia. Hoje vêem-se raramente alguns exemplares dessas antigas embarcações, mas cheias de bandeirolas coloridas, a convidar para uma prometedora excursão.

 

            O meu rio Douro não é este. Apesar dum belíssimo cruzeiro que fiz, com o Vôvô, de Barca d’Alva até ao Porto, visitando sítios turísticos, o meu Douro é ainda aquele rio que ora apresentava imensas bacias de água parada, ora, sobretudo no Verão, se disfarçava de pequena ribeira, coleando por entre rochas que as águas do Inverno tinham ciosamente escondido.

 

            Com o passar do tempo e a repetição da viagem eu tinha já aprendido este meu rio de cor: aqui uma enseada, onde os freixos conviviam com os salgueiros, criando zonas de sombra que me enchiam de mórbida inquietação: pensava em afogados cujas almas muitos afirmavam ter visto a sondar por ali; mais acima e a alguns metros da margem, viam-se uvas de enforcado, ainda verdes, pendentes de videiras enroladas a poderosos troncos. e ramagens; e ali, já ali, estava aquele cantinho remansoso enfeitado de roseiras selvagens, que eu sempre procurava com o coração apertado, no receio de alguém o ter roubado da minha vida.

 

            E depois havia as quintas. Os seus nomes, que eu sabia de cor, liam-se em grandes letreiros visíveis de toda a parte: Taylors, Delaforce, Espinheiro, Borges, um nunca acabar de nomes célebres e que ficaram para sempre a fazer parte do meu imaginário.

 

As quintas, dum modo geral, só no Verão é que recebiam as visitas dos patrões, seus familiares e também amigos. Não queriam perder aquela paz e simplicidade rural, o reencontro com o caseiro que muitas vezes já era como se pertencesse à família. Depois, nas vindimas o ar rescendia a mosto e tinham lugar grandes pisas em que os homens, de calças ou ceroulas arregaçadas, passavam horas, dados os braços uns aos outros, a cantar as suas modas, enquanto pisavam as uvas até ficarem suficientemente esmagadas para serem prensadas no lagar.

 

            Na noite de sábado, os ranchos apresentavam o seu folclore e muitos patrões dignavam-se assistir à função, mandando distribuir uns copos de vinho e algum pedaço de chouriço com pão. As meninas da casa e, mesmo as senhoras, raramente se interessavam por espectáculo tão vulgar, com homens cheirando a suor acumulado durante muitos dias e as mulheres, no rodopiar, a mostrarem as enxovalhadas saias com que trabalhavam e dormiam. Só os do rancho sabiam saborear aquele intervalo no duro trabalho que ali os trouxera de longe na esperança de amealhar, custasse o que custasse, alguns tostões que iriam ajudar a mitigar a fome nos duros e longos invernos transmontanos. 

 

            Eram dois mundos completamente à parte: o dos ricos proprietários quantas vezes cheios de prosápia, a gastarem o seu dinheiro em termas e casinos, e o dos pobres vindimadores, crucificados de trabalho e quantas vezes de humilhações.

 

            O meu Avô, também tinha uma vinha, coisa pouca, na região demarcada. E embora geralmente vendesse as uvas à Casa do Douro, havia anos em que resolvia fazer o seu próprio vinho do Porto. O meu Pai seguiu-lhe o exemplo e muitas vezes eu trouxe para Lisboa com o fim de partilhar com colegas e amigos, um garrafão de cinco litros, o que era motivo de amigáveis insinuações sobretudo quando, num dos nossos bailes, eu começava a ficar muito corada com a excitação.

 

            Mas afastei-me do meu roteiro. Agora via, numa margem, um pescador que pacientemente esperava por uma deliciosa fritura para o almoço: assim as bogas picassem. Em breve passava os pequenos túneis que anunciavam o Pinhão, onde sempre me abastecia de rebuçados de mel, os mais saborosos rebuçados que já comi na minha vida e penso que só se vendiam ali e na Régua.

 

            Já tinha abraçado o meu Pai, sempre paciente à minha espera. Íamos os dois almoçar e lá partíamos para casa com as malas e nós a procurar equilibrar-nos nos cavalos.

 

            Em casa esperava-me um ambiente de festa: jantar melhorado e sempre interrompido por muitas perguntas e exclamações. Beijos e abraços havia sim, mas comedidos. O amor era para se sentir, para traduzir uma abnegada dádiva e não para ser exibido como um fenómeno de feira.

 

            Outros tempos, é verdade. Mas tudo tão puro, tão reconfortante que a saudade permanece para sempre.

 

Vossa Vóvó, com muita ternura

 

                      

           

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Quinta-feira, 12.07.07

Mas não, pensando bem,

detecto o exagero

e deixo de chorar.

Tanto regato a correr,

cristalino,

talvez possam, unidos,

despoluir o mar.

 

Tantas estrelas

que inda vejo à noite

na solidão da serra.

Tanta gente no mundo,

tanta gente

em luta contra a guerra.

 

Tantos homens

que empregam o seu tempo

a salvar o que resta, a reciclá-lo

para futuras gerações.

E tantos voluntários

que se entregam,

de corpo e alma

a ajudar os que sofrem,

sem ter em conta

credos ou nações.

 

Que eu cultive,

como flor de jardim

resguardada dos ventos

por um muro de amor,

esta ténue esperança

que me resta

de ver um mundo novo

mais fraterno, melhor.

 

 

07-07-07

 

 

Clementina Relvas

publicado por clay às 18:11 | link do post | comentar | favorito

 

 

Como hei-de fazer versos

e senti-los se, olhando

em meu redor,

tudo me fala de destruição

quase nada de amor.

 

Olho as papoilas

no meu campo exangue:

já não são o que eram

É mais certo ver guerras

e ver sangue.

 

Olho o mar, que era azul

e transparente,

mas que a poluição

vai matando inexoravelmente

como uma maldição.

 

Olho o céu, onde dantes vi estrelas

vi a Lua brilhar

com a luz do Sol.

Mas, agora por detrás do carbono

o céu não é azul,

já não há arrebol.

 

Olho o mundo

navegando no espaço,

com naves, foguetões

à sua volta.

Choro tal qual a criança pequena

sem ter colo de mãe.

Tenho pena da jovem que era eu

deixando a inspiração

à rédea solta,

e que agora não vem.

 

     07-07-07

(dia “Live Earth)

 

 

Clementina Relvas

publicado por clay às 16:09 | link do post | comentar | favorito

 

 

 

            Meus queridos netos

 

 

            A aldeia da minha infância era muito pobre mas cem por cento ecológica: havia uma aflitiva falta de água, porém, quando o Inverno chegava e até tarde, na Primavera, os riachos e ribeiros alegravam-nos e ao ambiente com o seu ruído, primeiro assustador, depois saltitando, felizes, de pedra em pedra e, nas suas bordas cresciam espontaneamente agriões e tufos de violetas e sempre, sempre a sua água era límpida. Com essa água regavam-se as hortas de couve, feijão verde, nabiças, tomate e muitos outros legumes. Essas hortas, bem como os campos de trigo, cevada, tremoço e até amendoins eram adubados com estrume que, na maior parte, resultava do aproveitamento dos restos de comida que sobrava da nossa mesa ou das gamelas dos porcos, e juntamente palha de centeio, com que no Inverno, se cobriam as ruas e becos para facilitar o trânsito das pessoas. Facilitava mas nem sempre, porque, como chovia muito, às vezes “a potes” , dizíamos, a palha molhada era macerada pelas botas e socos, tendo então de ser recolhida num monte, donde saía para adubar. E era cada escorregadela...

 

            Outra fonte de adubo eram os próprios animais: os cavalos que tinham o seu estábulo nas lojas por baixo das casas, esta não ficava, como imaginam, a cheirar a alfazema mas esse cheiro era tão constante que já ninguém dava por ele; os bois, pertença de raros lavradores mais abastados e os rebanhos. Estes sim, tinham um papel tão importante na adubação das terras, que até eram acompanhados dum ambiente de certo modo festivo. E porquê? Perguntarão. É que só havia um grande rebanho colectivo, guardado por um ou dois pastores que eram pagos com as crias do rebanho que apascentavam em terrenos baldios, mas, sobretudo nos dos proprietários que lhes tinham confiado a guarda das suas ovelhas e cabras. O proprietário ficava obrigado a fornecer a ceia aos pastores: uma marmita com caldo verde, batatas, toucinho frito, pão e vinho. E nós as crianças, não nos cansávamos de rondar por ali até que as nossas mães nos dessem um pouco daqueles petiscos, que aliás, comíamos muitas vezes, mas naquela altura tinham um sabor especial.

 

            Eram também os proprietários, que em percentagem variável, podiam dispor dos rebanhos uns tantos dias por ano, para permanecerem de noite, protegidos por uma cerca de madeira, de forma quadrada e com uma cancela, nos terrenos que eles desejavam adubar, mudando de sítio todos os dias. Este método natural não servia para tudo: as vinhas, por exemplo, tinham que ser adubadas com o estrume de que primeiro falei.

 

            Na minha aldeia ninguém tinha carro e nem sequer lá chegavam as raras camionetas de passageiros que circulavam nas estradas do concelho; também não havia frigoríficos pois os alimentos ou se colhiam no campo à medida das necessidades da família ou eram conservados em sal ou com fumo. Era assim que se conservavam os porcos da matança: os presuntos, as pás e o toucinho eram conservados durante todo o ano em grandes salgadeiras. Os enchidos, em que se aproveitavam as carnes menos nobres, secavam-se ao fumeiro (aliás chama-se fumeiro aos chouriços mouros, salpicões e outras variedades) ou, os mais finos, os paios, em grandes potes de azeite.

 

            Eram elementos tão importantes na vida das pessoas que os rapazes, quando iam em grupo cantar as janeiras, depois de algumas quadras satíricas não ofensivas, pediam:

 

                     Ó senhor dono da casa,

                                 em seu banco de cortiça,

                                 deite a mão ao seu fumeiro

                                 e dê-nos uma chouriça.

 

            Mas penso que, apesar desta descrição tão bucólica, e um pouco descosida, os meus netos hão-de perguntar-se a si próprios: “Então, e a água dos tanques onde toda a gente lavava a roupa? Tanque colectivos, que porcaria!”. De facto, não seria muito higiénico mas não havia detergentes e as roupas eram lavadas com sabão macaco, um sabão natural muitas vezes fabricado em casa, com cinza e gordura. Para suprir a falta da lixívia, a roupa branca era estendida a corar ao sol, quando havia. Se o sol faltava por muito tempo, sobretudo no Inverno, faziam-se grandes barrelas, isto é, deitava-se água a ferver numa grande celha, juntava-se-lhe uma certa quantidade de cinza e garanto-vos que não havia micróbios que lhe resistissem.

 

            Como não se usavam químicos, excepto o sulfato para proteger as vinhas do míldio, as frutas sem pesticidas, lá tinham por dentro o seu bichinho a roê-las mas eram saborosas e docinhas. Era por isso que os bichos gostavam delas, não vos parece?

 

            Se não havia frigoríficos (nem dinheiro) acham que o ar condicionado era por ali conhecido? Claro que não e só tarde apareceu, primeiro nas grandes cidades. E se a minha aldeia era quente, nos meses de Julho e Agosto!... Costumava-se dizer “dez meses de Inverno e dois de Inferno”. Portanto não havia ar condicionado mas dormiam-se sestas regaladas, quer à sombra das árvores a ouvir o zangarreio das cigarras, quer nas lojas das casas onde se guardavam frutas e cereais e que, empedradas e munidas de grossas paredes de granito, não davam confiança ao calor.

 

            O único combustível que se gastava, em casa e no forno do pão, era lenha de oliveira ou estevas, que, estando secas, não deitavam muito fumo e cheiravam que era um regalo. Até a comida era mais saborosa. E além disso, limpavam-se as matas e evitavam-se muitos incêndios.

 

            Ora eu venho a dizer tudo isto para quê? Para mostrar que nem tudo o que é progresso é bom e que, às vezes, temos de sacrificar um pouco o nosso conforto para que haja um certo equilíbrio no Planeta. É claro que não desejo – e seria impensável – voltar àqueles hábitos quase primitivos e abdicar de tudo o que os sábios puseram ao nosso dispor para, dizem eles, nos tornar a vida melhor.

 

            Mas a verdade é que, até à idade adulta e bem adulta, eu nunca ouvi falar da camada de ozono, de aquecimento global, de morte dos rios ou do desfazer dos icebergues .

 

            Agora, além da guerra e, sobretudo do terrorismo, é a destruição do planeta Terra pelo abuso de venenos de toda a ordem, a começar pelo carbono expelido por biliões de carros, pelo desperdício, pela poluição ambiente, a grande nuvem negra ameaçadora que paira sobre as nossas cabeças.

 

            Eu sei que vós os jovens, mesmo os muito jovens, estão mais ou menos conscientes dos perigos que nos espreitam. Ainda tu, Cristina, não tinhas dez anos, quando, muito convicta, me aconselhaste a pôr uma garrafa cheia de água no autoclismo para poupar esse precioso líquido que se vai tornando cada vez mais raro. Sei que não deitam lixo para o chão que separam os lixos para a reciclagem, que participam dos programas das escolas para plantar árvores ou manter as praias limpas. Mas o esforço tem de ser constante e de todos.

 

            Como já alguém disse, o nosso planeta é um condomínio, onde cada condómino tem a sua quota-parte de responsabilidade na preservação do que é de todos.

 

            Desejando que todas estas nuvens negras se dissipem e o vosso futuro tenha riachos saltitantes, a correr para os rios e os mares não poluídos e que muitas flores atapetem os vossos caminhos, despeço-me até breve.

 

 

publicado por clay às 00:44 | link do post | comentar | ver comentários (3) | favorito
Segunda-feira, 09.07.07

                                  

 

            Queridos netos:

 

            Mas férias de três meses? E passados numa aldeia perdida de Trás-os-Montes, com uma centena de habitantes, na quase totalidade analfabetos, sem cinema, nem televisão e até sem rádio? Como era isso possível? – Ouço-vos perguntar. E só não acrescentam que devia ser uma seca, com receio de me magoarem.

 

            Pois olhem: não era nenhuma seca. Passava muito tempo a ler – e muito li eu nesses anos! – mas não só. Havia um pequeno grupo de pessoas da terra que, orientados pela Lúcia – primeiro estudante e depois professora do Liceu, mais velha do que eu dez anos – quando o calor amainava um pouco, dava grandes passeios a pé até ao Souto, onde geralmente se parava à sombra dos castanheiros e ai se contavam casos ocorridos ao longo do ano, se resumia para o auditório o folhetim do Jornal de Notícias ou se programavam os bailaricos. Estes tinham lugar domingo à tarde, em casa da Lúcia e, na maior parte dos casos, só havia um homem presente: o tocador de acordeão. Ele tocava, aliás muito bem e nós cantávamos cantigas do folclore, previamente ensaiadas também pela Lúcia: viras, malhões, corridinhos e algumas de cariz cómico “Eu casei-me com um ferreiro, / deu-me vontade de rir:/ tinha a cara enfarruscada, / só os dentes a luzir”, “Indo eu, indo eu / a caminho de Viseu, / encontrei o meu amor. / Ai Jesus que lá vou eu” e ainda “A saia da Carolina”, a “Tia Anica de Loulé”, muitas, mas sempre as mesmas: todos os anos as mesmas, sem nos enfadarmos.

 

            Às vezes havia cinema ambulante na nossa ou numa aldeia vizinha; no segundo caso, lá íamos nós, em grupo, com lampiões de azeite a devassar o caminho, divertindo-nos não tanto os filmes, geralmente de má qualidade mas os comentários dos espectadores, gente do campo, fascinada pelas farsas ou pelas aventuras. E a propósito de cinema, ocorre-me o seguinte episódio

 

            Em quase todas as terras há o “tontinho” da aldeia. Também na minha havia um que já conheci adulto e que, além de deficiências na fala, tinha a mania de pedir namoro a todas as raparigas que, claro está, não lho levavam a mal.

 

            Um dia, estava alguém a contar como tinha sofrido para extrair um dento do siso e logo o “tolinho”, na sua fala “tate-bitates” disse peremptoriamente:

 

            - Ui! Isso é pior do que ir ao cinema!

 

            Fiquei intrigada com o comentário e indaguei o que justificava aquela inesperada e desesperada opinião. Ele morava quase ao lado duma família de médicos que vinha sempre do Porto passar uma parte das férias de verão na aldeia. No fim duma dessas visitas, convidaram o “tolinho” a ir passar uns dias ao Porto. Ele ficou radiante, pois nunca tinha saído da terra e gostava daquelas pessoas que o tratavam tão bem. No Porto levaram-no a dar alguns passeios singelos (à Foz, ao Palácio de Cristal) e, numa bela tarde, resolveram levá-lo a um cinema, onde o deixaram, feliz da vida. À hora de acabar a sessão, lá estavam com o carro para o regresso a casa. Quando lhe perguntaram se tinha gostado, respondeu sem hesitação, embora numa linguagem que não consigo reproduzir:

 

            - Eu não percebi a fita mas o pior foi ter ficado mal sentado, numa cadeira de fundo tão estreitinho que já não sentia as nalgas.

 

            E, depois de várias tentativas, lá conseguiram perceber que ele não tinha baixado o assento da cadeira...Dai em diante, quando ouvia contar qualquer facto desagradável, logo acudia a dizer, cheio de convicção:

 

            - Eh lá! É pior do que ir ao cinema!

 

            De vez em quando também fazíamos “assaltos” de mascarados, como se fosse Carnaval. Esses partiam sempre da iniciativa da minha Mãe que era muito extrovertida e, casada com um homem vinte anos mais velho, aproveitava todos os pequenos ensejos para dar largas ao seu bom humor e criatividade. Para se mascararem as mulheres, raparigas e crianças vestiam roupas masculinas, geralmente muito grandes, faziam um bigode a carvão, iam a algum baú desencantar maravilhas trazidas em tempos do Brasil – chapéus, plumas, malinhas de senhora – e lá seguiam com aqueles trajes trapalhões e iam bater à porta de alguém que sempre nos recebia com agrado, com um cálice de vinho fino e os típicos biscoitos de azeite, quando havia. As caras iam tapadas e a parte mais engraçada consistia em adivinhar quem era quem, embora isso não fosse muito difícil porque éramos todos conhecidos. Se calhava, logo ali se armava um bailarico ou uma sessão de cantigas, por vezes ao desafio. Também nisso a minha Mãe levava a palma, porque tinha muita facilidade em rimar e um espírito crítico apurado.

 

            Outra das minhas ocupações, nas férias, tinha a ver com os trabalhos do campo. Do que eu mais gostava era de ir com o meu Pai apanhar figos, sobretudo se era uma propriedade que ficava muito longe da aldeia, já perto do rio Távora. Saíamos de casa cedo, a cavalo, e munidos dum saboroso lanche que normalmente incluía pão, presunto, e às vezes uma omoleta e, para o meu Pai, uma garrafa de vinho da nossa lavra. Embora não sentisse fome – apetite, sim e muito – era com grande ansiedade que aguardava o momento de devorar a merenda.

 

Farnéis assim, só os que levava quando, acabadas as férias, regressava a Lisboa. Nesses havia geralmente um coelho frito ou assado que deu origem a um quiproquó engraçado. Numa das vezes, a minha Mãe comentava na sua primeira carta daquele ano:

 

- Desta vez levaste um coelho e peras!

 

Muito admirada, tive de confessar à minha Mãe que o coelho era muito bom mas não tinha visto peras nenhumas. Tinha-me já esquecido que esta expressão “e peras” era uma forma de superlativar, ou seja, o que a minha Mãe queria dizer é que era um senhor coelho, um coelho enorme.

 

Outra coisa, que muito gostava de fazer era ir regar uma horta que tínhamos não longe de casa. Estava inserida numa propriedade de três herdeiros e, como um dos mais graves problemas da minha aldeia, nesses anos, era a falta de água, regavam-se as hortas “à vez”. Nós tínhamos direito a três dias por semana, o que era muito bom.

 

Ficava num alto, com uma panorâmica para a serra de Chavães e mais longe o Marão, que nunca me cansava de admirar. Fazia-se a rega ao pôr-do-sol e era linda de ver a Vila de Tabuaço com os vidros das suas casas ricas a brilhar, irisados com o sol poente. Abria-se o boqueirão da mina e aí vinha a abençoada água, que também servia para beber, ao encontro do rego onde tinham sido plantados feijões, tomates, cenouras, salsa que a iam absorvendo sequiosos. Depois tinha de a encaminhar para outro rego e, no fim, regar o canteiro de flores que a minha Mãe não dispensava.

 

Que pacificador e prático era esse trabalho, tido por mim como uma bênção que jamais esquecerei.

 

Beijinhos do Vóvós e até à próxima carta.

 

                             

           

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