Os Açores, e principalmente a Ilha Terceira, são a terra das festas. Todos os pretextos são bons para celebrar qualquer coisa.
Comecemos pelo Natal, que aí se celebra como no Continente mas com uma particularidade: a mesa, com a sua toalha bordada, arte em que as açorianas são exímias, mantém-se posta, com fartos e deliciosos manjares, até ao dia de Reis. Não foi sem estranheza que muitas vezes ouvi um amigo perguntar, quando encontrava outro: «O teu Menino Jesus mija?». Era a senha convencionada para saber se, em caso de visita, se encontraria a mesa bem fornecida, com as correspondentes bebidas.
No Carnaval, eram as Associações Recreativas, muito numerosas, que promoviam as cavalhadas: música e cantares regionais, mascarados e brincadeiras, não sei qual a sua relação com os torneios a cavalo dos tempos antigos.
A Páscoa, altura em que mais se notava a profusão das azáleas, além de solenes e concorridas celebrações religiosas, era a época dos doces em que se distinguiam, pela sua originalidade, os tradicionais alfenins , uma espécie de suspiro (açúcar e claras em castelo) moldado em artísticas figurinhas, sobretudo de aves. Eram, como podem calcular, extremamente doces, mas os terceirenses não gostavam de poupar no açúcar…nem no sal.
Mas as festividades mais queridas dos açorianos em geral e dos terceirenses em particular são as Festas em Louvor do Divino Espírito Santo que os povoadores portugueses levaram, logo no século XV, para o arquipélago. E digo bem arquipélago pois todas as Ilhas, com mais ou menos variantes, as organizam com toda a devoção e todo o brio, desde o Domingo de Páscoa ao Pentecostes, às vezes até ao Domingo da Santíssima Trindade e, mais modernamente, também no Verão, para dar cumprimento à promessa dum ou outro emigrante, expressamente vindo da América ou do Canadá.
Das Festas do Espírito Santo, que se estenderam, graças à diáspora açoriana, não só a estes dois países e ao Brasil, também ainda restam vestígios
Na Ilha Terceira, todas as paróquias e até alguns lugarejos têm a sua mordomia ou irmandade e o seu Império.
Um Império
Na primeira cerimónia, um pajem ladeado por quatro vereadores leva, numa salva de prata, o ceptro e a coroa do Espírito Santo, cerne do cortejo, aberto por uma bandeira encarnada com a pomba ao centro, que é empunhada pelo alferes e segue até à casa do imperador, sorteado na segunda feira de Pentecostes e aí ficam, durante uma semana, num trono, erguido junto a uma parede do meio da casa e muito bem ornamentado. À noite, depois dum animado serão, rezam o terço, com familiares e amigos, durante os sete dias da semana.
No domingo e segunda feira do bodo tudo transita para o Império, pequena capela geralmente pintada com cores garridas, que tem ao lado uma despensa , onde se guardam os cestos de pão de cabeça, cântaros de vinho e, por vezes, carne assada, distribuídos generosamente por todos os que ali se encontram e também pelos passantes, mesmo desconhecidos.
O bodo propriamente dito ou função é servido geralmente ao domingo, depois da cerimónia religiosa da coroação, numa mesa que ocupa, quase sempre, toda uma longa rua da freguesia. Confeccionado em enormes panelas de ferro, postas sobre um lume de brasas, ocupa bastantes mulheres orientadas pela mestra da função.
É constituído pelas sopas do Espírito Santo: um caldo onde se cozeram carnes com osso (do pescoço, do peito), galinhas, quartos de repolho, tudo temperado com muitas especiarias.
Quando pronto, o caldo é escorrido por cima de bocados de pão, cozido na quarta-feira anterior cortado aos pedaços, à mão, e que se deixa abeberar bem. As hortaliças e as carnes servem-se em travessas, à parte.
Quanto à alcatra é basicamente (há muitas variantes nos temperos) uma peça de carne assada no forno, num alguidar próprio. Deve ser bem besuntada com manteiga, posta sobre uma camada de cebola e alho, regada com vinho de cheiro (ou vinho branco) destemperado com água e com este caldo se há-de ir regando, enquanto cozinha. Leva também muitas especiarias e sal a gosto. Quando começa a tostar, cobre-se com folhas de repolho. Depois de cozida, chama-se um homem encarregado de a cortar. o trinchante e come-se acompanhada com pão de cabeça.
As mesas estão postas com toalhas brancas, louças, talheres e copos da irmandade e, sobre elas, há vinho e laranjada com fartura. Ali se senta toda a gente da freguesia, parentes, amigos, convidados e, se alguém vier sem ser esperado, também terá o seu lugar à mesa. Depois, em frente ao Império, é a distribuição do pão, do vinho e por vezes também de fatias de alcatra, para os que desejarem.
Mas falta falar de duas coisas: quem paga as despesas da coroação, evidentemente o mordomo e o ritual do bezerro ou gueixa, o animal que se imola em cumprimento da promessa. O bezerro vai-se buscar ao pasto – por vezes dum lavrador amigo que aí o criou – enfeita-se com boninas e coloridas fitas de papel coladas com breu ao pêlo e aos chifres. Põe-se-lhe uma coroa garrida na cabeça e uma campainha ao pescoço. Dirige-se para casa do mordomo seguido por um cortejo constituído por convidados e a cantoria – rancho de tocadores de viola, rabeca, instrumentos de sopro e os repentistas com as suas trovas, por vezes maliciosas.
Chegado à porta do imperador, o bezerro é obrigado a ajoelhar e é tocado, no lombo e na testa, com o ceptro do Senhor Espírito Santo. Depois matam-no e distribuem a carne em esmolas, de quilo ou meio quilo, à porta do imperador, na tarde de sábado.
A cerimónia da coroação realiza-se depois da missa dominical. O padre vem à porta da Igreja, receber e aspergir as crianças – e por vezes algum adulto – que se apresentam para serem coroadas por designação do imperador e leva-os até ao altar, ao som do Vinde Criador. Uma vez efectuada a coroação - as grandes coroas de prata são erguidas por duas pessoas sobre a cabeça das crianças – e o padre acompanha o cortejo até ao adro, desta vez ao som do Magnificat.
Para terminar , aqui deixo, inspirado por estas celebrações, o poema.
O MEU BRASÃO DE ANGRA
Entre a lava e o agapanto,
meu heráldico brasão
tem uma insígnia no meio:
um coração.
Um coração de gueixa,
desenfreada,
solta
e todo o mar em volta.
Um coração selvagem,
potro de olhar bravio
e, a toda a volta,
um campo vazio.
Fica em suspenso o escudo
da minha heráldica ambição.
Mas, entre a lava e o agapanto,
esquartelado, meu coração
P. S. Para fazer uma merecida referência ao livro «Em louvor do Espírito Santo», do escritor açoriano Francisco Ernesto de Oliveira, onde fui buscar alguns elementos para colmatar as falhas que o tempo causou na minha memória.
Beijinhos e até breve.