Nunca pensei que os "olhos do meu coração, no dizer de S. Paulo, revelassem pormenores por mim julgados completamente esquecidos...
Quarta-feira, 12.12.07

 

                                   Estavam todos reunidos,

                                   cheios de pompa e vaidade

                                   e eis um vento que passou:

                                   não um vento de verdade,

                                   mas que a todos abalou.

 

                                   «Foi um Anjo», disse a medo

                                   um que em Deus acreditava.

                                   «Foi ilusão», disse um outro,

                                   incerto do que pensava.

 

                                   Então apagou-se a luz,

                                   calaram-se os emissores,

                                   anulou-se a tradução

                                   e tremeram os senhores.

 

                                   Olharam uns para os outros,

                                   sem saber o que seria.

                                   Começaram a falar:

                                   toda a gente se entendia!

 

                                   Falaram de fome e dor,

                                   catástrofes sem desculpa;

                                   falaram de guerra e morte,

                                   cada um se arrepiava

                                   ao pensar na sua culpa.

 

                                   Todos, todos se entenderam,

                                   sem precisar tradução

                                   e ali mesmo prometeram

                                   deixar a pompa e vaidade,

                                   criar em cada nação

                                   mais justiça e liberdade.

 

                                   Que se passou, afinal,

                                   nessa cimeira de esperança?

                                   Um Pentecostes igual

                                   ao que levou os discípulos

                                   a falar, sem tradução,

                                   de Deus-Amor aos gentios

                                   de toda e qualquer nação.

 

                                  

 

                                   Lisboa, 10-12-07

 

                                   Clementina Relvas

 

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Sábado, 08.12.07

Meus queridos netos:

Os Açores são uma terra mágica: é um arquipélago formado por nove ilhas, cada qual mais bonita e todas diferentes. S. Miguel, a maior de todas, além de, como as outras, estar sempre florida ao longo do ano com camélias, azáleas, coroas de Henrique (agapantos), rosas, hortenses – segundo as estações – e as simpáticas liliáceas que surgem por altura do recomeço das aulas e por isso lhes chamam Maria, vai para a escola, tem paisagens deslumbrantes, únicas e inesquecíveis: A Lagoa das Sete Cidades, na realidade duas lagoas, uma verde e outra azul, separadas por uma estreita faixa de terra florida e que uma antiquíssima lenda diz ter sido o lugar onde se fundou e afundou a Atlântida; a Lagoa do Fogo, majestosa, teatral mesmo, sobretudo se se tem a sorte de a encontrar toda tapada pelo nevoeiro e, de repente, este se esvair como se as cortinas dum palco se abrissem misteriosamente, deixando-nos perante uma paisagem de cortar a respiração; as Furnas, um sítio fantasmagórico que alia ao espectáculo dantesco dos fumos sulfurosos saídos das numerosas caldeiras, a doçura e a paz da sua enorme Lagoa, onde as árvores, como num espelho, reflectem as suas frondes ramosas. Nas Furnas, além da sua beleza natural, encontramos também uma magnífica intervenção do Homem: um vasto Parque de árvores exóticas (araucárias, fetos arbóreos) e, por alturas de Maio, as extensas sebes de azáleas de várias cores que são utilizadas para enfeitar as ruas, formando artísticas passadeiras, sobretudo nas Festas do Senhor Santo Cristo dos Milagres. E também uma piscina de água quente, sulfurosa e terapêutica. No calor das fumarolas menos activas (nas outras há quem afirme que cozerão um boi se, por acaso, lá cair) prepara-se o prato tradicional: um delicioso cozido à portuguesa cujos ingredientes são metidos num saco de pano que se enterra nas cinzas escaldantes, ganhando assim um sabor especial e que justifica o seu nome: o cozido das Furnas. Santa Maria, a mais oriental das Ilhas, tem pequenas povoações com muito encanto, um Museu Etnográfico de grande interesse e a imensa Baía de S. Lourenço, resguardada por encostas cultivadas até à extensa praia onde aportaram os primeiros descobridores. A instalação, na Ilha, do primeiro aeroporto do Arquipélago, que ainda lá se mantém como fonte de emprego e de relações nacionais e internacionais, foi o motor do desenvolvimento que, ainda hoje, não apaga a rusticidade e a paz da Vila do Porto e das restantes freguesias. A Terceira, para mim, é a Ilha dos segredos. É preciso viver lá algum tempo para nos apercebermos de todos os seus encantos: as paisagens verdejantes, onde as pacíficas vacas se deleitam e nos deleitam a vista; a invulgar colina atapetada de vários tons de verde, que mais parece uma manta de retalhos descendo até ao Aeroporto Internacional das Lajes. Aí, os americanos têm uma base militar e, nela, recebem visitas para se deliciarem, à sexta feira, com lanches e after hours, petiscos de chorar por mais, embora servidos, para ser mais prático, em guardanapos de papel; ou então os brunches de domingo, sumptuosos e conviviais; as instalações militares portuguesas, separadas, onde se pode jantar e disputar renhidas partidas de bingo; o campo de golfe com uma situação privilegiada, restaurante e também lojas de artigos relacionados com esse desporto. E depois as praias: a piscina natural da Silveira, logo á saída da cidade; a dos Biscoitos, onde também se pode nadar em profundos poços que a Natureza escavou nos aglomerados de lava, com um entorno inegavelmente original; a Praia da Vitória, que ficou na História de Portugal, não só porque foi nesta vila, hoje cidade, que desembarcou D. António, Prior do Crato, para de lá defender a independência de Portugal contra os espanhóis, mas também por ter tomado partido pelos liberais, ajudando a vencer os absolutistas. É a única praia de areia dourada e não escura como a das outras, de origem vulcânica, e a terra natal de Vitorino Nemésio, que aí tem uma Casa Museu. Já na cidade de Angra, que depois da reconstrução foi declarada Património da Humanidade pela sua beleza e casticismo, distingue-se, no Monte Brasil, a fortaleza de Sebastião, onde o Gungunhana esteve prisioneiro e que foi recentemente transformada em pousada de luxo; o Miradoiro da Memória, donde se desfruta a mais vasta panorâmica da cidade e, logo abaixo, o Jardim de Almeida Garrett, que viveu em Angra cerca de seis anos. E não podemos esquecer a Serreta com a sua pousada que foi, nos seus princípios, sala de recepção oficial e, agora, é posto de observação da actividade vulcânica, no mar em frente. Ou a Serra de Santa Bárbara, imponente e selvagem. Ou o Algar do Carvão, fascínio dos espeleólogos. A Terceira é, como já demonstrei demoradamente em carta anterior, a Terra das Festas, entre as quais sobressaem as do Espírito Santo e as touradas sanjoaninas ou à corda. A Graciosa é chamada a Ilha Branca. É ainda marcadamente rural e tem umas termas famosas. Tem ainda uma imensa gruta que visitámos e de que gostámos muito, embora ali nos tenhamos sentido mal dispostos, devido a uma forte emanação de gases sulfurosos que nos apanhou de surpresa. Das janelas da Escola deliciei-me a ver as acrobacias dos golfinhos, muito numerosos naquelas águas. S. Jorge á a lha dos contrastes: dum lado, escarpas altíssimas semelhando fiordes e, numa fajã, cá em baixo, uma lagoa célebre pelas suas amêijoas; do outro, um planalto com fácil acesso do mar. Embora em todas as Ilhas se fabriquem queijos deliciosos, o de S. Jorge é o mais famoso e apreciado. Tal como as restantes, esta Ilha cobre-se de hortenses durante o verão e tem paisagens deslumbrantes. O que aí mais me impressionou foi o canto nocturno dos cagarros, abrigados nas rochas e que doem como o choro de crianças aflitas. O Faial é uma Ilha cosmopolita, não só porque, em anos passados, ali estiveram sediados os cabos submarinos dos ingleses, mas também porque o seu porto é frequentado por velejadores de todo o mundo, que enchem o seu cais de pinturas decorativas e testemunhais e se regalam, no bar do Peter para onde endereçam toda a sua correspondência, com o famoso gim tónico, que tão bem sabe naquele sossego, velado pelo Pico, que fica em frente. No Faial há uma grande vulcão extinto, cuja vasta cratera ocupa o cimo dum monte e no fundo da qual dizem que se vê – eu não descobri – o desenho das nove ilhas. E outro, mais recente, o vulcão dos Capelinhos, que deu origem a um fenómeno geológico interessante e a uma emigração massiça das populações locais em busca, na América, duma vida mais desafogada, A cidade da Horta tem um notável Museu de Arte Sacra, uma Sociedade Recreativa de grande imponência e a sua Fortaleza de S. Francisco, agora também transformada em Pousada. Tem um artesanato muito original, sobretudo os trabalhos realizados em miolo de figueira ou em escamas de peixe, para não falar dos magníficos bordados, comuns a todas as ilhas. O Pico recebeu o nome da alta montanha que forma o seu todo e tem mais de dois mil metros de altitude. Os seus cumes estão cobertos de neve durante a maior parte do ano. Tem alturas em que faz lembrar um pudim de chocolate, enfeitado com chantilly. E, visto de avião, é sempre um deslumbramento. A Ilha também é célebre pelo seu vinho verdelho, proveniente de videiras americanas, cultivadas em cerrados – consecutivos quadrados separados por muros de pedra e comunicando uns com os outros por uma estreita passagem. Os cerrados conferem à paisagem picarota um cunho muito original. No Canal que separa a Vila da Madalena, no Pico, da Horta, no Faial e que, em cerca de quinze minutos, se atravessa de lancha, decorre a acção do célebre romance de Vitorino Nemésio, Mau Tempo no Canal, uma obra ímpar da literatura portuguesa. O Pico é, além de tudo o mais, a terra por excelência dos baleeiros e, embora a pesca à baleia esteja interdita há vários anos, ainda é motivo de interesse turístico ir, de barco, admirar os gigantescos cetáceos. Outrora a maior fonte de riqueza daquelas gentes destemidas, a actividade da pesca à baleia esta muito bem documentada no Museu dos Baleeiros, que merece uma demorada visita. A Ilha tem a característica original de, sendo redonda, ter construído as suas várias povoações ao longo duma única estrada, que a circunda. As suas rendas, agora já de difícil acesso, são obras- primas de perfeição e paciência, cujo preço era, já há muitos anos, equiparado ao preço da prata. As Flores, a Ilha mais Ocidental, é uma espécie de resumo, feito por Deus, com a Sua arte, de todas as outras: tem várias lagoas, fajãs, praias ou piscinas naturais entre as rochas de basalto, uma formação rochosa tão original que é conhecida como o órgão e e flores, aos milhares de milhares, especialmente as hortenses, no verão. Muito perto das Flores, encontra-se a pequena Ilha do Corvo, que nunca tive a ocasião de visitar porque não tinha Escola Secundária – só tele-escola – e o mar foi-me sempre adverso. O que eu penso e sinto sobre os Açores é muito mais do que esta espécie de roteiro turístico. Mais do que o avião que actualmente liga as ilhas, já todas dotadas de aeroporto, é o meu coração, o meu pensamento e as minhas recordações que constantemente mas fazem presentes e amadas.

Beijinhos

 

 

 

 

publicado por clay às 14:40 | link do post | comentar | favorito
Domingo, 02.12.07

 

 

 

                                     

                                                                 

                       As festas em honra do Divino Espírito Santo celebram-se em todo o arquipélago dos Açores, embora tenham a sua expressão mais completa na Ilha Terceira. Em S. Jorge assisti a uma coroação cujo bodo teve lugar dentro da casa do mordomo e, perante o meu espanto pela fartura da mesa, a dona da casa disse-me, muito convicta: «Ai de mim se a comida não chegasse! Teria de sair pela porta das traseiras!». Nas Flores, não assisti ao bodo. Mas vi o bezerro do sacrifício atrelado a um carro de bois, todo enfeitado, e, seguido por um barulhento cortejo em que predominavam as crianças. Iria percorrer as casas destinadas a receber o seu quinhão de carne.

                       Já as Festas do Senhor Santo Cristo dos Milagres são exclusivas da Ilha de S. Miguel. A estampa representando a imagem era o salvo-conduto para os que emigravam para longe, conforme se pode ver no quadro do célebre pintor micaelense, Domingos Rebelo, e que tem por título Os Emigrantes. Essas festas têm lugar em Maio e atraem à cidade de Ponta Delgada muitos milhares de peregrinos, muitos dos quais vindos dos mais variados lugares da América, nomeadamente da Califórnia e às senhoras, que envergavam espalhafatosos vestidos e ainda mais espalhafatosas capelines,  chamavam as calafonas.

                Depois de celebrada, na Igreja, a missa solene, formava-se uma concorridíssima procissão que começava no Largo fronteiro e percorria as principais ruas de Ponta Delgada. Integravam-se nela as forças vivas da cidade, tendo à frente o Presidente do Governo Regional seguidos por uma fanfarra, já não me lembro se militar, se dos Bombeiros Voluntários.

                A frontaria da Igreja era ornamentada por milhares de lampadazinhas de cores, desenhando frases e motivos religiosos e o Largo era também profusamente iluminado e ornamentado. A procissão pisava uma extensíssima passadeira de flores de azálea, das mais variadas cores, o que permitia elaborar artísticos desenhos.

Eu só assisti uma vez, da janela do meu quarto que ficava mesmo ao lado da Igreja, a esta inesquecível procissão, no primeiro ano em que vivi nos Açores.

               Mas além destas festas institucionais, sempre muito concorridas, todos os pretextos serviam para comemorar qualquer coisa: era o dia das comadres, o dia dos compadres, o das amigas, o dos amigos e até calhou eu assistir, numa das minhas deslocações em trabalho às Escolas, a uma dessas festinhas, onde reinava a camaradagem e a amizade.

                E havia ainda as festas de anos. Para só falar do que sei, recordo as celebradas na Secretaria Regional da Educação, onde trabalhei quatro anos, e no Gabinete de Apoio à Reconstrução (G.A.R.), para onde o Vôvô foi convidado após o grande sismo de 1980.

                Se alguém fazia anos, fosse o Director dos Serviços ou um modesto contínuo, mal se aproximava a hora de dar por terminado o trabalho do dia, começava a azáfama: secretárias despojadas dos objectos de escritório, alinhadas em número suficiente para os convivas e logo cobertas por mimosas toalhas brancas, bordadas; em cima destas, manjares deliciosos, salgados e doces, muito bem apresentados pelas senhoras. Aos homens competia encarregarem-se das bebidas. E isto à roda de todo o ano, havendo sempre uma simpática lembrança para o aniversariante.

                E isto para não falar das touradas sanjoaninas, célebres mesmo fora do Arquipélago, porque as touradas não são espectáculo do meu agrado e nada saberia dizer acerca delas. Apenas assisti a algumas corridas à corda, realizadas numa das muitas praias da Terceira. Era cómico ver os touros, enfurecidos, a empurrar para o mar os valentes que não se livravam dalgumas escoriações ou outros ferimentos, geralmente sem gravidade, e muito menos dum involuntário mergulho.

                Até parece que estes anos em que, já depois de reformada, fui trabalhar para os Açores, foram uma espécie de continuação das férias em S. Miguel, de que já falei, abundantemente, em cartas anteriores. Realmente o meu trabalho, orientar professores das diversas escolas do Arquipélago, além de me proporcionar a continuação das actividades que sempre me tinham ocupado, deu-me a oportunidade, não só de regressar várias vezes a S. Miguel, onde havia várias Escolas Secundárias dispersas por toda a Ilha, mas também de conhecer todas as outras Ilhas, à excepção do Corvo, cujo mar foi sempre hostil a uma visita minha. Em todo o lado fui sempre muito bem acolhida e fiquei a saber que todas as Ilhas dos Açores são maravilhosas, cada uma com as suas particularidades.

                Essa sensação de férias resultou também do facto de, o Vôvô e eu, termos estado sempre instalados, com o restante pessoal do G.A.R. numa Residencial, formando uma espécie de família em cujo seio nunca houve dissenções, antes uma forte solidariedade e simpatia. Ora, não tendo uma casa para governar, sobejava-me tempo para ler, conviver, frequentar o restaurante do Campo de Golfe, o Bingo da Base dos Oficiais Portugueses e, de vez em quando, à sexta feira, os lanches e a happy hour da Base Americana das Lajes. Só havia uma sombra nesta felicidade: as saudades dos filhos, que tinham ficado na nossa casa, em Lisboa, para prosseguirem os seus estudos universitários, que, infelizmente não concluíram. Vínhamos visitá-los mais ou menos de três em três meses e eles também foram, uma vez, passar uma semana connosco.

                Garanto-vos que ainda hoje temos amigos nos Açores e que são muitas as saudades que nos ficaram da terra e das gentes.

 

                Beijinhos, muitos, e até à próxima.

    

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