Nunca pensei que os "olhos do meu coração, no dizer de S. Paulo, revelassem pormenores por mim julgados completamente esquecidos...
Quinta-feira, 31.01.08

 

 

                                                       

 


Meus queridos netinhos:



Angola. Angola ficou na minha lembrança aureolada por pensamentos positivos, felizes e, ao mesmo tempo, por um fundo de amargura.

Quando conheci o Vôvô já ele tinha estado em Angola durante quatro anos, numa região bem ao Norte, Santo António do Zaire, hoje Soyo (sua designação de origem e actual), na foz do rio Zaire. Foi uma das poucas cidades que não conheci pois viajei muito por Angola, não só como professora, mas também como encarregada administrativa (e para solucionar problemas das alunas) dos Lares da Mocidade Portuguesa. Só que em Sazaire, como abreviadamente se referiam àquela terra, não havia nenhum desses Lares.

Mas voltando um pouco atrás, o Vôvô tinha vindo à Metrópole, (era assim que nas colónias se referiam a Portugal), por dois anos, para fazer a parte complementar do seu curso. Encontrámo-nos quando ele respondeu a um anúncio para alugar um quarto na casa dos Neves, um casal de meia-idade, onde eu já estava hospedada. A princípio, só nos víamos praticamente à hora do almoço, porque ambos saíamos cedo de casa, ele para o seu curso e eu para dar aulas no Liceu Maria Amália, que ficava ali ao lado. Mais tarde, quando os donos da casa e a Celeste, uma grande amiga, também hóspede e já desaparecida do nosso convívio, iam para os seus empregos, quedávamo-nos à mesa, prolongando a conversa, muitas vezes sobre Angola, que também a mim não era totalmente estranha porque tinha lá vários Tios e a minha Madrinha, como já referi. E assim nos apaixonámos um pelo outro.

Ao fim de algum tempo, conhecendo-nos melhor e apreciando os feitios e qualidades mútuas, o Vôvô perguntou-me se queria casar com ele, mas teria de ir para Angola, pois era lá que estava o seu futuro. Honestamente avisou-me de que correria o risco de não poder continuar a exercer a minha profissão de professora, porque havia muitas probabilidades de ele ser colocado numa região onde não houvesse um Liceu. Como tinha sido sempre essa a grande aspiração da minha vida e, ainda por cima, tinha a promessa de, em breve, ir dar aulas para a Faculdade de Letras, tenho de confessar que hesitei um pouco, mas como o outro meu grande sonho era ter filhos e via no Vôvô um bom modelo de marido e de pai, não hesitei. Estávamos em Abril ou Maio de 1958, com o ano lectivo quase no fim, mas só nos casámos no dia 23 de Outubro, depois de eu ter passado as minhas longas férias na aldeia e o Vôvo em casa de seus Pais. Escrevíamo-nos diariamente uma carta e soube depois, que quando a minha carta chegava, a meio da manhã, a casa dos Bisavós, logo a Bisavó Inês corria a entregá-la ao Vôvô dizendo com um sorriso: “Aí tens a sempre certa!”. Diga-se aqui, entre parêntesis, que os correios eram, nesse tempo, bem mais pontuais do que hoje.

O Vôvô quis cumprir todas as praxes: vieram os Pais dele, pedir-me em casamento a um dos meus Tios, substituto de minha Mãe que não pôde estar presente. Casámos pois em 23 de Outubro, em Fátima, na Capelinha das Aparições e passámos os primeiros dias de casados no Hotel Atlântico, no Estoril. Dias depois, fomos por uma semana a Madrid, em viagem de núpcias. Daí a pouco tempo já eu andava muito enjoada pois estava grávida do primeiro Zé António que nasceu exactamente no dia em que fazia nove meses que nos tínhamos casado.

Em Fevereiro do ano seguinte, embarcámos no navio Quanza, com destino a Luanda, onde me esperavam alguns Tios e o meu Irmão Alfredo, já casado com a Tia Adelina e com uma filha de quem eu tinha sido madrinha por procuração, a Tininha.

O paquete já era um pouco antiquado – o banho tomava-se numa grande tina cheia de água, despejando-a com um púcaro sobre a cabeça e o corpo. E note-se que nós viajávamos em primeira classe, de resto com bastante conforto. Eu não me sentia lá muito bem, mas desembarcámos em Luanda, depois de escalarmos o Funchal, Dakar e Ponta Negra, felizes por estarmos juntos e à espera do nosso primeiro filho.

Mesmo assim, a adaptação não foi fácil, apesar da ajuda do meu irmão e mais família. O Vôvô acabou por ficar colocado mesmo em Luanda, portanto, eu tive a possibilidade de continuar a minha profissão de professora liceal.

Em Julho nasceu o Zé António mas, infelizmente, o parto correu mal e ele só sobreviveu dois dias. É um dos anjinhos que tenho no Céu mas, apesar da consolação que eu procurava nessa ideia, entrei numa depressão que me afligiu muito nos meses seguintes, pelo menos até Outubro. Quando o novo ano lectivo começou, fui colocada no Liceu Paulo Dias de Novais, onde a amizade de colegas e alunos, bem como a entrega devotada ao meu trabalho, me foram fazendo recuperar as forças e a alegria de viver. Além disso, fiquei de novo grávida e o meu segundo José António (o Tio Zé) nasceu perfeito e bem disposto, também em Julho, quando o Vôvô já tinha sido colocado num concelho do Interior. Veio buscar-nos a Luanda e lá fomos os três de avião, um pequeno avião de sete lugares, o Tio Zé apenas com oito dias, na alcofinha instalada mais atrás, na cauda do avião! …

Algum tempo depois fui dar aulas no Liceu de Nova Lisboa, hoje Huambo.

E pronto. Muito me falta para contar acerca de Angola, mas como esta carta já vai longa, ficará para a próxima vez e, então sim, começarei logo pelos tempos da guerra.

Até breve e beijinhos da vossa Vóvó e também do Vôvô, claro.

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publicado por clay às 09:08 | link do post | comentar | favorito
Quarta-feira, 30.01.08


Ao Dr. João de Sousa, pároco de Benfica,
na Igreja de Nossa Senhora do Amparo


Senhor, fazei que eu seja
aquela luz, humilde mas constante,
a pequenina luz,
junto ao Vosso Sacrário,
que não fraqueja nem um só instante.


Que nunca se me acabe, ó meu Senhor,
o azeite da minha adoração
por Vós.
E que por Vossa graça
eu ilumine tudo em meu redor,
procurando que com a minha luz
não deixe sentir sós
os que, fiéis, buscam o Vosso amor.


Eu sei que, na aparência da humildade,
não tem medida o que agora Vos peço:
Graça maior que estar ao Vosso lado
não tem comparação e não tem preço.


Por isso, ó Deus do infinito amor,
ouvi minha alma, sempre, sempre a rezar,
sem que, por um momento, desfaleça.
Para que, ao fim deste agreste caminho,
possa olhar Vosso rosto e nele me reconheça.


Nele reconheça a humilde centelha
de Vós em mim, Senhor,
desde que me criastes,
e que, apesar das minhas muitas faltas
sempre, como meu Pai, me perdoastes
por Vosso amor.


18-07-2007

Clementina Relvas
publicado por clay às 00:43 | link do post | comentar | favorito
Sábado, 26.01.08

         

         Esta minha carta é especialmente dirigida para ti e tu sabes porquê: começaste há pouco tempo a descobrir o fascínio da Internet e tens um grande desejo, como é próprio da tua idade, de ter muitos amigos e amigas e de que eles te acompanhem pela vida fora.

          Perguntaste-me como é que eu consegui conservar, até hoje, amigas do tempo da Faculdade – e até mais antigas – e se os amigos não são aqueles que estão sempre de acordo connosco, prontos para nos ouvirem, nos ajudarem nos estudos, nos convidarem para o cinema e para festas e até para partilharem connosco alguma aventura «fixe».

         Não concordei totalmente contigo porque, repara: Como é que podem estar sempre de acordo connosco, se cada um de nós tem de pensar pela sua cabeça e habituar-se a assumir a responsabilidade das suas decisões? E,quanto às aventuras a que chamas «fixes», não poderão, às vezes, colocar-nos em situações embaraçosas ou levar-nos, até, para caminhos perigosos?

          Concluíste das minhas palavras que eu era «contra a Internet», o que considero falso e bastante precipitado. Pelo contrário, eu acho que a Internet foi uma descoberta extraordinária e sinto-me privilegiada por se ter verificado ainda no meu tempo. É um instrumento precioso, que poderemos utilizar das mais variadas maneiras: é uma inesgotável fonte de informação, um óptimo auxiliar de estudo, de trocas de ideias e de experiências científicas – até já se fazem operações por vídeo-conferência – e, como nunca tinha acontecido antes, traz o mundo inteirinho até nós, permitindo-nos, assim conhecer o mundo inteiro.

          Embora não consiga transmitir-nos, integralmente, o fascínio das viagens e a intensidade das emoções que elas nos proporcionam, podem ajudar-nos a prepará-las para que tiremos delas o máximo proveito.           Lembraste-me então – como se eu me fosse esquecer! – do teu convívio, na Internet, com os grandes artistas de todos os tempos e disseste-me que, só o Louvre, tinha ocupado toda uma tarde que tinhas desocupada. Acrescentei que, na Internet, também podemos ter acesso a jornais e revistas (inclusivamente o "Jornal de Letras") e até a livros de grandes autores.

         Mas é preciso saber separar o trigo do joio.   

         Confessaste-me, enfim, um grande segredo: estás a escrever um blogue, onde expões as tuas ideias sobre o que se passa à tua volta, na Escola e no mundo, as tuas dúvidas e perplexidades e até já recebeste comentários de diferentes partes do mundo. Que bom! Só espero que a Internet não vá usurpar o tempo que sempre destinaste ao estudo, o que fez de ti tão bom aluno e que não troques o teu escorreito português por Kuantas barbaridades enxameiam os e-mails e as mensagens. Acho que já te tinha convencido do meu interesse pela Internet. Mas pensei que era forçoso regressar ao princípio, porque te restavam dúvidas quanto aos amigos virtuais e pediste a minha opinião sobre esse aspecto da Internet. Aliás, perguntaste-me abertamente: «Então não acreditas nos amigos virtuais?». Tive de confessar, mesmo correndo o risco de parecer moralista e antiquada, que se te referias àquelas dezenas de nomes que se acumulam no teu Messenger, com alguns dos quais trocas meia dúzia de frases banais e depois trocas por outros, eu não podia ser mais radicalmente contra. Não, não acredito nesses amigos.

         A amizade é uma lenta construção: tem de se basear no conhecimento, tão perfeito quanto possível, do amigo e nos laços de confiança, empatia e até mesmo admiração que sentimos por ele. E também na nossa capacidade para desculpar os seus defeitos, pois toda a gente tem alguns. Ora, como é que esses sentimentos se podem desenvolver em relação a pessoas que nunca vimos, que não conhecemos pessoalmente nem podemos conhecer porque, tanto quanto sei, usam ocultar o seu nome, morada e identidade sob o disfarce da mentira? 

Concordaste que era uma regra de segurança não fornecer essas informações e eu fiquei contente por estares precavido. Eu acrescentei que essas regras são para cumprir à risca porque, se há algumas raras excepções felizes nesses convívios, por essas poucas excepções, quantas desilusões e quantos dramas se não têm verificado?

           E, com a esperança de te ter ajudado, tive de confessar que não acredito nos amigos virtuais e que jamais procuraria encontrar um, até porque considero as conversas com eles uma pura perda de tempo que nos pode fazer falta para cultivarmos as amizades reais.

 

                Lisboa, 14-12-07

               Clementina Relvas

         (Uma avó desconhecida, antiga professora de português e muito preocupada).

publicado por clay às 15:55 | link do post | comentar | favorito
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