Meus queridos netos:
Quando, em consequência do novo cargo do Vôvô, nas Obras Públicas, regressámos a Luanda, fomos logo viver para uma vivenda moderna, de dois pisos, com um quintal nas traseiras e, à frente, uma varanda cheia de plantas (espadas de S. Jorge, orelhas de elefante) que dava para um jardim bem cuidado e florido e onde também guardávamos os carros, o do Vôvô e o meu. No quintal havia uma garagem que em grande parte do ano estava completamente revestida de buganvílias
de várias cores e um quarto com casa de banho para o criado, se este o preferia à sua casa no muceque. E também o tanque de lavar roupa, pois, nessa altura, ainda eram raras as máquinas de lavar e muito mais em Luanda.
A nossa casa era geminada com outra, onde morava um casal pouco mais velho do que nós e com dois filhos cuja idade não ultrapassava muito a dos nossos. Demo-nos todos muito bem, os garotos nas suas brincadeiras, a D. Palmira a fazer-me vestidos que eram muito elogiados pelas minhas colegas e o Sr. Matos no seu papel de patriarca bem disposto e amável. Quando regressaram de Angola, em 1975, foram viver para Aveiro onde os visitámos, infelizmente só uma vez, e onde ainda se encontram, rodeados dos filhos e netos. As nossas casas em Luanda ficavam situadas num bairro «chique», o Miramar. Aí estavam instalados alguns consulados e, passado não muito tempo, foi construído um cinema, também chamado Miramar (que linda vista para a Baía!), o primeiro de vários outros cinemas ao ar livre, de concepção moderna e muito confortáveis. Que diferença entre estes cinemas e o velho Tropical, onde víamos o filme sentados à volta duma mesinha quadrada, com refrigerantes e Coca-Cola, que lá não era proibida, bem precisos para aliviar um pouco o calor sufocante. Uma das coisas que mais me admirou, nesse cinema, foi ver as senhoras muito bem vestidas e penteadas e os homens todos em mangas de camisa. Mas, uma coisa é certa: foi lá, no Tropical, que vi os grandes filmes franceses da década de sessenta. Os realistas italianos, esses já os vi noutros cinemas, entre eles o majestoso Restauração, que não era ao ar livre e veio a ser aproveitado, depois da independência de Angola, para ser o Parlamento. Mas então, ou o clima se tinha amenizado, ou as pessoas se tinham ido habituando às elevadas temperaturas, pois raro era o homem que ainda fosse ao cinema em mangas de camisa e, mesmo as senhoras já não dispensavam um agasalho, ainda que ligeiro, na época do cacimbo, ou no Restauração, provido de ar condicionado.
Mas voltemos um bocadinho atrás. Vim de Nova Lisboa, onde só havia um bom cinema, o Ruacaná, e onde fiquei, hospedada no Hotel, com a Luísa e as crianças, durante o mês de Julho, para proceder às avaliações dos alunos. Só depois então fomos para Luanda, onde o Vôvô já se encontrava nas suas novas funções. Ele veio buscar-nos no nosso velho "Carocha", mais conhecido familiarmente por "Faísca", e lá fomos os cinco (Vôvô, eu, Zé, Quim e Luísa, planalto abaixo, percorrendo cerca de 600 quilómetros e descendo mais de 2.000 metros de altitude, até chegarmos a Luanda. Quase à chegada, próximo de uma localidade chamada Viana, fomos surpreendidos por uma patrulha militar que nos mandou fazer alto. O Vôvô que não esperava nada por tal coisa, pois, quando saíu de Luanda no dia anterior, estava tudo calmo, só parou uns metros adiante. Foi o suficiente para vermos apontadas para nós, simultaneamente, várias espingardas. Um oficial português, ainda novo mas um tanto ou quanto nervoso, lá compreendeu que não éramos nenhuns terroristas e deixou-nos partir e seguir o nosso pacífico caminho... Muito cansados, depois de viagem tão longa, fomos para casa do meu hoje falecido irmão Alfredo, que tinha um estabelecimento comercial no bairro do Cruzeiro. Passados dias conseguimos então alugar uma vivenda, a do bairro Miramar de que falo atrás, onde permanecemos até 1969.
Fui colocada no Liceu Salvador Correia, um liceu misto, dotado duma construção notável, com pátios interiores onde o ar marítimo circulava, amenizando os dias de calor mais intenso. Era um grande Liceu, que chegou a ser frequentado por mais de dois mil alunos: turnos de manhã, à tarde e, para o fim, também à noite. O seu corpo docente era competente e muito empenhado e o ambiente entre colegas, e também entre professores e alunos, faziam daquela casa um lugar onde todos nos sentíamos bem, sem querelas nem stress. Eu até fazia parte dum grupo de colegas que, mensalmente, se reunia para um «sumptuoso» chá, em que cada anfitriã procurava mimosear as suas convidadas com a confecção de receitas originais e sempre deliciosas. Não tanto, claro, como as animadas conversas, manifestações de amizade sincera e até, por vezes, de humor.
Quando os Tios chegaram à idade de frequentar a pre-primária, foram, como já disse, para o Colégio da D. Júlia, vizinho do Liceu, onde encontraram uma educadora de que todos gostavam muito: a Tia Nani, como lhe chamavam.
Mas estava a aproximar-se o dia duma visita a Portugal, que o Vôvô e eu deixáramos havia sete longos e ininterruptos anos. As saudades já eram muitas, o cansaço também e grande o desejo dos bisavós de conhecerem os seus netinhos, mais do que por fotografia.
Mas essa é outra história, que vos contarei em breve.
Beijinhos, montes deles, da Vóvó.