Nunca pensei que os "olhos do meu coração, no dizer de S. Paulo, revelassem pormenores por mim julgados completamente esquecidos...
Sábado, 31.05.08

 

Nós vamos sem caminhos e sem fontes,
sem rios, sem olhar e sem paisagem;
nós vamos sós, por estes horizontes
de cimento, de ferro e de miragem.

 

Vamos sem nos determos,
ao encontro
das máquinas, das montras e dos mitos,
dos ruídos, dos cantos e dos gritos,
sem caminhos, sem fontes, sem paisagem.

 

Nós vamos sem amigos.
Os amigos de antigamente.
Quando havia fontes
e os homens caminhavam por caminhos,
e eram eles quem fazia a caminhada
e as suas mãos que levantavam pontes
e eram pontes,
de amigo a outro amigo.

 

Nós temos olhos só para as imagens;
já não sabemos escutar as fontes.
Não temos pés nem mãos,
só as miragens;
só máquinas,
só máquinas de ferro,
que erguem por nós as pontes e os caminhos,
nos mostram o amor e a paisagem
e nos deixam vazios e vizinhos.

 

Clementina Relvas

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Terça-feira, 27.05.08

 

Meus queridos netos:

 

               As minhas cartas sobre a guerra foram, como não podiam deixar de ser, muito carregadas de tristeza e emoção. Logo a seguir ao 25 de Abril de 1974, mas sobretudo em 1975, a inquietação e o medo começaram a infiltrar-se na maioria dos portugueses que tinham ido para Angola na esperança de melhorar a vida , mas passado algum tempo, cativados pela beleza da paisagem, pela vastidão dos horizontes, pelas potencialidades daquela terra de riquezas inumeráveis e pelo convívio com as gentes, nativas e chegadas de novo, não podiam imaginar-se a viver noutro lugar, nem sequer na Metrópole.


             A cidade começou, pouco a pouco, a trocar os sons quotidianos de urbe trabalhadora e próspera, pelo ruído das marteladas com que se faziam, à pressa, grandes caixotes mais ou menos toscos onde eram acondicionados alguns haveres, geralmente de valor mais sentimental do que material. Alguns desses bens tinham sido, por vezes recentemente, fruto de heranças familiares e levados para Angola, onde se julgava estar a amadurecer o futuro. Lembro-me duns amigos nossos que renovaram a sua sala de jantar com móveis antigos e muito valiosos e duma colega do Liceu que, ao regressar de férias, trouxera para Luanda um serviço de jantar da Companhia das Índias que, embora cuidadosamente embalado, se perdeu em grande parte, na viagem Luanda–Lisboa.

 

             Também sucedeu com um outro nosso amigo, médico muito conceituado, que tinha construído uma moradia junto ao muceque Prenda, e, não podendo suportar os insultos e ameaças, deixou a sua vivenda abandonada e se mudou, «com armas e bagagens», para um apartamento em zona mais central, onde mandou refazer a sua biblioteca, delicadamente trabalhada em panga-panga, no propósito de nunca abandonar aquela sua terra de adopção, à qual tinha dado os melhores anos da sua vida e o seu muito saber de médico radiologista. Infelizmente, passado pouco tempo, viu a sua nova casa invadida por militares duma das facções, que, a propósito dum tiro disparado não sabiam por quem, vasculharam a casa toda exibindo as suas armas de fogo e, tendo encontrado uma pistola de colecção, queriam, à viva força, prender o filho mais velho, então com menos de vinte anos, acusando-o de ter sido ele o autor do disparo. Mas era tão evidente a disfuncionalidade da pistola, que lá os deixaram em paz, mas muito traumatizados e na firme disposição de abandonarem Angola o mais depressa possível.


            As notícias alarmantes espalhavam-se a um ritmo dia a dia mais acelerado: foi o noivo duma colega do Liceu que foi assassinado por ter recusado, num posto de controle, pagar um mata-bicho que todos os dias ali lhe era exigido; foi um dos meus Tios que desapareceu, sem deixar rasto, quando regressava, de jeep, de Salazar (hoje Dalatando) à sua casa em Luanda, deixando a família mergulhada no drama de não conseguir saber, por mais diligências que fizesse, qual terá sido o seu destino e o quanto poderá ter sofrido; foi uma menina de dezoito anos, jovem universitária que, no quarto andar do seu prédio, vizinho da nossa casa, foi atingida, quando se encontrava à mesa com os seus pais, por uma bala perdida que lhe foi direita ao coração. E muitos, muitos outros casos de que nos falavam a toda a hora.


          Claro que, neste ambiente de terror, também nós começámos a pensar deixar Angola e regressar à nossa verdadeira terra. A primeira coisa que fiz foi enviar para casa dum Tio, em Lisboa, uma arca com objectos de valor mais sentimental do que material: as peças mais bonitas do meu enxoval, o meu vestido de noiva, uma fotografia em rica moldura de prata do nosso casamento, um álbum em que eu tinha conseguido reunir com persistência, fotografias dos meus pais, irmãos, tios, de filhos das minhas amigas que assim mos davam a conhecer e também minhas, desde criança. Era um álbum único, pois mais ninguém na família se tinha dado a esse trabalho. O meu tio era solteiro e tinha, à data, uma empregada que roubou todo esse espólio. A polícia conseguiu recuperar o enxoval, mas não o vestido de noiva, a foto do casamento e respectiva moldura e os álbuns de fotografias, ou seja as coisas a que eu estava afectivamente ligada


              Começou aí a perda dos nossos haveres e o desinteresse em pormos a salvo outros bens que possuíamos. Aconteceu, porém que um primo do Vôvô era funcionário da Companhia Colonial de Navegação, em Lisboa, e se nos ofereceu para arranjar lugar, num navio, destinado ao que desejássemos salvar da hecatombe. Com uma perspectiva muito diferente da nossa quanto ao que se estava a passar em Angola e em Portugal após o 25 de Abril, estava extremamente pessimista quanto ao futuro dos portugueses – e, portanto, o nosso – não compreendendo a nossa apatia ou o que ele considerava como tal.


             Depois de muita hesitação, resolvemos, aproveitar esta oportunidade que nos era oferecida de bandeja e enviámos para Lisboa o nosso carro Audi 100, (o primeiro carro novo que tivemos na nossa vida) bem como uma mobília de sala de jantar e outra de quarto, em panga-panga, comprada expressamente, porque não queríamos desfazer-nos das nossas coisas, e pouco mais. É que, apesar de tudo, não nos queríamos render à evidência de que teríamos de abandonar tudo quanto possuíamos: uma casa toda mobilada, algum dinheiro no banco e uma moradia que tínhamos mandado construir num terreno por nós comprado em Viana, a uns vinte quilómetros de Luanda, ou seja o fruto do trabalho de muitos anos ao serviço de Angola e, diziam-nos, de Portugal.


           Para levantar e guardar em segurança os haveres que tínhamos despachado por barco, deslocou-se o Vôvô a Lisboa, onde assistiu às manifestações do 1º de Maio de 1975 e à agitação dessa época conturbada, dita revolucionária. Levou o nosso carro para Aveiro, onde ficou à guarda do casal Matos, nosso vizinho no Miramar e as mobílias foram guardadas num armazém, arranjado pelo Sr. Lopes, pai da nossa amiga Milú.


Do que se passou em Luanda, durante a curta ausência do Vôvô, falarei na próxima carta.


Até lá, beijinhos e muito amor da Vóvó.

 



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Terça-feira, 13.05.08

 

                      Meus queridos netos:
 
 
                       Que bom estar de novo em Luanda! É aqui a nossa casa, embora seja agora outra, mais moderna e mais próxima do Liceu Salvador Correia e do Colégio da D. Júlia, seu vizinho. Fica num Bairro moderno, o Bairro de Alvalade, rival do que, em Lisboa, tem o mesmo nome. É aqui o nosso pequeno jardim, onde agora plantámos uma bonita araucária, que irá resplandecer de luzes coloridas, de cada vez que for Natal, Natal dos trópicos com a noite de consoada à transmontana, sem lhe faltar o bacalhau e as filhós, mas com o almoço do Dia passado, depois da Missa, na praia com o nosso grupo de amigos. Reencontrámos a nossa Luísa e agora…toca a trabalhar, que, se as férias fossem permanentes, não tinham graça nenhuma.
 
                        O Vôvô retomou o seu lugar nas Obras Públicas, eu recomecei um novo ano lectivo e os pequenos foram para o Colégio: O Zé para a primeira classe – como então se dizia, o Quim ainda para a infantil, sempre desejoso de fazer o mesmo que o irmão. Vamos matriculá-los, aos dois, no Clube Nuno Álvares, nas aulas de natação e aí encontrarão muitos amigos e farão outros de novo. Para nós, será uma pausa relaxante pois, enquanto assistirmos às suas lições, também teremos oportunidade de conviver com outros pais, conhecidos de longa data. Ao Quim custou-lhe a largar a escada e a entrar na água mas, no fim de quatro anos, ambos foram escolhidos para terem formação de atletas, o que não aceitaram, por causa dos estudos. Mas ainda hoje são bons nadadores…
 
                        Para já, que saudades de ir até à Ponta da Ilha, ver o mar em branda luta com as rochas e as gaivotas, em voo picado, acometer as águas onde o peixe se lhes não negava nunca. E também ir lanchar ao Clube Naval, ou mesmo à esplanada logo à entrada da restinga, onde normalmente se bebia cerveja ou refrigerantes, sobretudo Coca-Cola que nunca nos foi proibida ao contrário do que sucedeu na Metrópole. Comiam-se tremoços, sanduíches e os apreciadores podiam regalar-se ali com marisco da melhor qualidade, a preço acessível. Os pais encontravam ali um pequeno parque infantil com carrinhos de choque, onde as crianças se entretinham, deixando-os livres para a conversa. E tudo isto na cidade, com o Oceano Atlântico aos pés, sempre remansoso na Baía de Luanda, e as sombras das casuarinas a mitigar o calor, enquanto não chegava o cacimbo.
 
                        E em breve retomámos a rotina, palavra que aqui emprego sem qualquer sentido pejorativo, pois era uma rotina boa, tranquila e profícua.
 
                        Quando os vossos pais faziam anos, havia sempre grande reboliço, com uma animada festa, ou melhor, duas festas: uma no jardim, enfeitado com balões e grinaldas de papel colorido, onde as crianças pulavam a fingir que dançavam ao som das músicas debitadas pelo gira-discos. As que melhor recordo, porque repetidamente tocadas, eram as do Roberto Carlos e as dos Beatles. Havia também muitos convidados, colegas do colégio e mais tarde do Liceu, os filhos do casal Matos, que tinham sido nossos vizinhos quando morávamos no Bairro do Miramar, os nossos compadres Rodrigues dos Santos, os filhos da minha colega Maria Judite, e, quase sempre a filha do Secretário Provincial da Educação, Dr. Pinheiro da Silva, a Marizinha, uma criança encantadora, de quem os vossos pais ainda se recordam com saudade. Havia também música angolana, pois despontava então a carreira, que se viria a revelar notável, do Duo Ouro Negro e de outros artistas locais. A outra parte da festa tinha lugar na nossa sala de visitas, com uma mesa repleta de iguarias ao gosto dos pequenos e dos adultos, já que alguns pais, nossos amigos, nunca deixavam de se associar à festa. Claro que, a cena se repetia, com algumas raras variantes, cada vez que um daqueles pequenos convidados festejava o seu aniversário, Havia presentes: discos, bombons, carrinhos miniatura de colecção e livros dos Cinco ou, já mais tarde, livros de carácter educativo nomeadamente da Verbo Editora, cujas colecções de História, de Zoologia ou de Botânica, entre outras, quase todos os miúdos assim iam completando. Festas de anos especiais eram as dos primos, Tininha e Toni, que a tia Adelina organizava na sua casa, com menos convidados e, na sua maioria, diferentes dos nossos, mas com igual abundância de coisas boas..
                        Frequentemente saíamos de Luanda, por vezes na companhia do meu irmão Alfredo e família, até ao Morro dos Veados, ao Cacuaco e, embora raramente porque ficava a cerca de duzentos quilómetros de distância, ao Dondo. Num desses passeios e tendo como guia o arquitecto Batalha, profundo conhecedor da História e, sobretudo, do património cultural de Angola, visitámos, na Muxima, as ruínas duma antiga construção e a Igreja de Nossa Senhora da Muxima, o grande ícone dos angolanos. Almoçámos num modesto restaurante local, uma refeição à base de bagre, pescado no rio Quanza, que passava por ali. O bagre é um peixe de água doce, muito apreciado pelos angolanos pela sua “carne” saborosa. Não possui escamas mas tem uns ferrões perigosos que podem provocar ferimentos sérios a quem lhes pegue com as mãos desprotegidas. O bagre do Quanza não pesa mais de dois quilos e tem cerca de 30 centímetros de comprimento. Quiseram por força convencer-me a comer uma especialidade da terra, o peixe-mulher, que sabia mais a carne do que a peixe e que não fui capaz de tragar. O peixe-mulher é a fêmea do peixe-boi, é um mamífero gordo e assemelha-se à morsa.
 
                        Também, para darmos a conhecer aos nossos filhos o ciclo do algodão, visitámos as imensas plantações deste arbusto na Baixa de Cassange, um deslumbramento de branco a perder de vista. Na companhia dum engenheiro das Obras Públicas, amigo do Vôvô, visitámos uma fábrica de algodão, para vermos como era feita a processação deste produto, tão importante nas exportações de Angola. No caminho, passámos por Pungo Andongo, Pedras Negras, célebres pela sua monumentalidade e beleza e, também, porque foi por estas bandas que esteve desterrado o célebre bandoleiro José do Telhado, por alguns chamado o Robin dos Bosques português, onde morreu, dele existindo uma bem cuidada e muito visitada campa em Caculama. E também nos mostraram o «pé da Rainha Ginga», uma pegada enorme, gravada na rocha, tão grande como a fama daquela lendária mulher guerreira, que entrou na resistência à ocupação de Angola, em tempos já muito recuados Passado algum tempo fomos a Malange, e depois às Quedas Duque de Bragança, no Rio Lucala, onde ficámos alojados numa confortável pousada, debruçada sobre as imponentes quedas de água.
 
 
                        Com mais tempo, e aproveitando uma deslocação do Vôvô, em serviço, a Sá da Bandeira, hoje Lubango, fizemos uma «viagem de estudo» até ao Sul. Já na Huíla, impressionou-nos muito a Fenda da Tundavala, gigantesca e que ninguém deixava de visitar, a estrada da Leba, uma notável obra de engenharia, celebrizada pelas suas numerosas e bem traçadas curvas e a Escola Agrícola, onde colhemos vastos ensinamentos neste domínio. Ao chegarmos à cidade, depois de termos arrostado com uma tremenda trovoada e exaustos pela longa viagem e pelo calor, instalámo-nos imediatamente numa Residencial acabada de inaugurar e o nosso primeiro gesto foi ir logo para a cama. Nem sequer saímos para jantar: comemos apenas umas sanduíches, leite e fruta. No dia seguinte, tomámos então um duche revigorante na casa de banho privativa, que não era mais do que um recanto vedado do quarto de dormir no qual se encontrava instalado o respectivo esquentador a gás de botija. Como éramos quatro a servir-nos da água quente, o esquentador manteve-se a funcionar durante algum tempo, primeiro os rapazes, depois eu e finalmente o Vôvô e, à medida que nos despachávamos do banho, íamos saindo para o exterior apreciar o dia luminoso e ver como era bela a terra! Porém, pouco tempo depois, todos nós estávamos maldispostos, certamente devido à queima do gás em espaço tão pequeno. Os rapazes, mais baixos e que tinham sido os primeiros a sair, tinham uma indisposição ligeira; eu estava muito enjoada, mas o mais atingido foi o Vôvô, mais alto e que tinha ficado para o fim, ao ponto de ter vindo embora do Serviço, onde fora fazer uma inspecção. Vejam só o que nos teria acontecido se tivéssemos tomado o duche quando chegámos na véspera à noite! Mudámo-nos imediatamente para o Grande Hotel da Huíla, onde recuperámos deste transtorno, o Võvô mais demoradamente.
 
                         Mesmo assim cumprimos o nosso programa, como tínhamos previsto, e regressámos a Luanda encantados com aquela progressiva cidade, com um belíssimo clima, dotada de uma grande Catedral, uma fonte luminosa, o grande e famoso Liceu Diogo Cão e o imponente Cristo-Rei da Ponta do Lubango, a lembrar o Cristo-Rei de Almada.
 
                        Mas a nossa viagem mais longa, com os filhos e de carro, foi a que fizemos ao Dundo, na Lunda, onde o tio João tinha um lugar importante, na Companhia dos Diamantes. Foi um percurso de dois mil quilómetros – ida e volta – que valeu bem a pena por muitos motivos: além do encontro com a família e das boas e variadas iguarias com que nos regalaram, pudemos observar como se fazia a extracção e escolha dos diamantes e visitar o Museu do Dundo, especialmente dedicado à arte angolana. O Dundo era então uma vila construída à semelhança das inglesas, constituída por moradias unifamiliares, todas dotadas dum espaço verde, em frente de cada uma, sem vedações. Toda a gente se conhecia, criando um ambiente muito acolhedor. Demos alguns passeios pelos arredores, mas numa zona delimitada, pois a guerra andava por ali perto.
 
                        Outros passeios fizemos com os vossos pais quando eram pequenos, mas fico-me por aqui, embora tencione na próxima carta, falar-vos dum safari inesquecível.
 
           Até lá, beijinhos e mais beijinhos da Vóvó.
 
A      
Fenda da Tundavala, O Cristo-Rei da Ponta do Lubango. A Catedral e a Fonte  Luminosa da cidade angolana de Sá da Bandeira (actual Lubango).
 
 
 
            
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Terça-feira, 06.05.08

 

 

Meus Queridos Netos:

           Quando regressámos a Portalegre, foi tempo de matarmos as muitas saudades dos nossos filhos e dos Bisavós. Distribuíram-se as prendas trazidas de França, sobretudo agasalhos para os miúdos e algumas guloseimas para todos. E chegaram, finalmente, os dias tranquilos, de recuperar energias. Aconchegados na casa paterna, saíamos uma ou outra vez para um almoço familiar alargado com os primos da Broa, à sombra das árvores de fruto que rodeavam o grande tanque, em cujas bordas a Tia Florinda cultivava as suas flores, com especial desvelo pelos manjericos, perfumados e resistentes durante longos meses e onde os pequenos se entretinham a fingir que pescavam ou que nadavam numa pequena altura de água e com a ajuda de duas improvisadas pranchas de 

               Nessa altura ainda tínhamos a companhia da vossa trisavó Casimira, com noventa e cinco anos, bastante lúcida mas já quase cega e que havia de falecer em vésperas de fazer cem anos. E a tarde corria mansa, com o primo Emílio e a Maria Deodata, sua mulher, em amena conversa com os restantes familiares e as suas duas filhas, a Zulmira e a Inês Maria entretidas com os primos, apesar da diferença das idades. Mais do que agora, o ar estava cheio de sons e de perfumes: chilreavam os passarinhos, zangarreavam os grilos e as cigarras, e o perfume dos manjericos, aliado ao das xaras e dos eucaliptos transformavam aquele canto da horta num pequeno Éden, em que todos nos sentíamos felizes e que muitas vezes relembrámos com saudades

                  Frequentemente dávamos grandes passeios pela Serra de S. Mamede, até Castelo de Vide ou apenas até à Penha, onde visitávamos a capelinha e apreciávamos a paisagem estendida a nossos pés até se perder de vista. Acompanhavam-nos os Bisavós, que assim aproveitavam para sair de casa, embora o Bisavô fosse todos os dias ao Café Alentejano, encontrar-se com o seu grupo de amigos, os catuas, como lhes chamava em língua tétum que tinha aprendido em Timor. Às vezes fazíamos piqueniques em sítios pitorescos e aí nos deliciávamos com o paio de lombo, os queijos da região e o saboroso pão alentejano. Não faltavam, também, algumas frutas da época e as deliciosas boleimas, com o seu recheio de maçã e o seu gostinho a açúcar meio caramelizado e a canela.

                  Quem fazia as compras, no mercado, era o Bisavô ou uma mulher de recados, a Senhora Adelina, mas quem sempre pontificou na cozinha era a Bisavó, que fazia deliciosas comidas regionais, um inesquecível caldo verde, cujas couves lhe levavam, a cortar, muito fininhas, uma grande parte da manhã e um cabrito no tacho que era de comer e chorar por mais. Não podia conceber que alguém invadisse os seus domínios e foi com muita relutância que me deixou fazer um bolo para um lanche, com a batedeira que, na melhor das intenções, eu tinha trazido de Luanda.

                 Daí em diante, todos os sábados íamos abastecer-nos de deliciosos doces regionais, feitos pelas irmãs Martelas. Eu só tinha pena do Bisavô que, sofrendo de diabetes, tinha de se contentar com uma espécie de pitas, feitas de massa e azeite e sem pitada de açúcar. E contentava, pois, dotado duma grande força de vontade, nunca se deixou tentar pelas guloseimas.

               Mitigadas as saudades, resolvemos ir dar um passeio, o Vôvô e eu, por alguns sítios pitorescos ao Norte de Lisboa. Já se começava a sentir o Inverno mas, apesar disso, fomos aproveitando a proximidade ou a presença do mar: ficámos numa Residencial na Ericeira, onde, ao jantar e ao serão, junto à lareira, éramos os únicos hóspedes; em Santa Cruz, estive em risco de ser levada por uma onda, junto da rocha que ali faz uma espécie de arco e que eu quis ver mais de perto; em Peniche, mirámos ao longe as Berlengas, de que estávamos afastados por ondulação que nenhum pescador quis arrostar.

              Regressámos a casa retemperados e por lá nos ficámos durante todo o Inverno, fazendo pequenos passeios e uma ou outra deslocação a Lisboa, uma das vezes com os pequenos e a sua ama, a Alice. Ficámos instalados na Casa de Santa Zita, à Estrela, num ambiente familiar. Fomos, com os três, visitar alguns monumentos mais emblemáticos de Lisboa: o Mosteiro dos Jerónimos, a Torre de Belém e, claro, o Jardim Zoológico. Não nos alargámos mais porque eles ainda eram muito pequenos e não conseguiriam reter muita informação.

                Deixámo-los novamente em Portalegre e partimos num outro passeio, desta vez no Algarve: S Brás de Alportel, Faro, Loulé, e por aí fora até à Pousada do Infante, em Sagres, cuja paisagem muito nos impressioou.

                  Em Portalegre recebemos a visita do Gilbert, da Milú e dos seus Pais e também das pequenas Marie, minha afilhada e Jeanne e com eles percorremos os arredores: Castelo de Vide e Marvão, cujo castelo encantou os quatro miúdos, que até foram autorizados a brincar com umas velhas espingardas e uns capacetes do Museu.

                 O fim das férias aproximava-se a passos largos, apesar das prorrogações que, por mais do que uma vez, nos tinham sido concedidas pela Junta Médica que via a necessidade de recuperarmos duma demasiado longa permanência, seguida, em clima tropical.

                E assim regressámos a Luanda, de novo no Infante Dom Henrique, com mais saúde e felizes pelo tempo passado com familiares e amigos, em vários pontos de Portugal.                

 

                                   Até à próxima carta. Beijinhos da Vóvó

                       

           

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