Meus queridos netos:
Que bom estar de novo em Luanda! É aqui a nossa casa, embora seja agora outra, mais moderna e mais próxima do Liceu Salvador Correia e do Colégio da D. Júlia, seu vizinho. Fica num Bairro moderno, o Bairro de Alvalade, rival do que, em Lisboa, tem o mesmo nome. É aqui o nosso pequeno jardim, onde agora plantámos uma bonita araucária, que irá resplandecer de luzes coloridas, de cada vez que for Natal, Natal dos trópicos com a noite de consoada à transmontana, sem lhe faltar o bacalhau e as filhós, mas com o almoço do Dia passado, depois da Missa, na praia com o nosso grupo de amigos. Reencontrámos a nossa Luísa e agora…toca a trabalhar, que, se as férias fossem permanentes, não tinham graça nenhuma.
O Vôvô retomou o seu lugar nas Obras Públicas, eu recomecei um novo ano lectivo e os pequenos foram para o Colégio: O Zé para a primeira classe – como então se dizia, o Quim ainda para a infantil, sempre desejoso de fazer o mesmo que o irmão. Vamos matriculá-los, aos dois, no Clube Nuno Álvares, nas aulas de natação e aí encontrarão muitos amigos e farão outros de novo. Para nós, será uma pausa relaxante pois, enquanto assistirmos às suas lições, também teremos oportunidade de conviver com outros pais, conhecidos de longa data. Ao Quim custou-lhe a largar a escada e a entrar na água mas, no fim de quatro anos, ambos foram escolhidos para terem formação de atletas, o que não aceitaram, por causa dos estudos. Mas ainda hoje são bons nadadores…
Para já, que saudades de ir até à Ponta da Ilha, ver o mar em branda luta com as rochas e as gaivotas, em voo picado, acometer as águas onde o peixe se lhes não negava nunca. E também ir lanchar ao Clube Naval, ou mesmo à esplanada logo à entrada da restinga, onde normalmente se bebia cerveja ou refrigerantes, sobretudo Coca-Cola que nunca nos foi proibida ao contrário do que sucedeu na Metrópole. Comiam-se tremoços, sanduíches e os apreciadores podiam regalar-se ali com marisco da melhor qualidade, a preço acessível. Os pais encontravam ali um pequeno parque infantil com carrinhos de choque, onde as crianças se entretinham, deixando-os livres para a conversa. E tudo isto na cidade, com o Oceano Atlântico aos pés, sempre remansoso na Baía de Luanda, e as sombras das casuarinas a mitigar o calor, enquanto não chegava o cacimbo.
E em breve retomámos a rotina, palavra que aqui emprego sem qualquer sentido pejorativo, pois era uma rotina boa, tranquila e profícua.
Quando os vossos pais faziam anos, havia sempre grande reboliço, com uma animada festa, ou melhor, duas festas: uma no jardim, enfeitado com balões e grinaldas de papel colorido, onde as crianças pulavam a fingir que dançavam ao som das músicas debitadas pelo gira-discos. As que melhor recordo, porque repetidamente tocadas, eram as do Roberto Carlos e as dos Beatles. Havia também muitos convidados, colegas do colégio e mais tarde do Liceu, os filhos do casal Matos, que tinham sido nossos vizinhos quando morávamos no Bairro do Miramar, os nossos compadres Rodrigues dos Santos, os filhos da minha colega Maria Judite, e, quase sempre a filha do Secretário Provincial da Educação, Dr. Pinheiro da Silva, a Marizinha, uma criança encantadora, de quem os vossos pais ainda se recordam com saudade. Havia também música angolana, pois despontava então a carreira, que se viria a revelar notável, do Duo Ouro Negro e de outros artistas locais. A outra parte da festa tinha lugar na nossa sala de visitas, com uma mesa repleta de iguarias ao gosto dos pequenos e dos adultos, já que alguns pais, nossos amigos, nunca deixavam de se associar à festa. Claro que, a cena se repetia, com algumas raras variantes, cada vez que um daqueles pequenos convidados festejava o seu aniversário, Havia presentes: discos, bombons, carrinhos miniatura de colecção e livros dos Cinco ou, já mais tarde, livros de carácter educativo nomeadamente da Verbo Editora, cujas colecções de História, de Zoologia ou de Botânica, entre outras, quase todos os miúdos assim iam completando. Festas de anos especiais eram as dos primos, Tininha e Toni, que a tia Adelina organizava na sua casa, com menos convidados e, na sua maioria, diferentes dos nossos, mas com igual abundância de coisas boas..
Frequentemente saíamos de Luanda, por vezes na companhia do meu irmão Alfredo e família, até ao Morro dos Veados, ao Cacuaco e, embora raramente porque ficava a cerca de duzentos quilómetros de distância, ao Dondo. Num desses passeios e tendo como guia o arquitecto Batalha, profundo conhecedor da História e, sobretudo, do património cultural de Angola, visitámos, na Muxima, as ruínas duma antiga construção e a Igreja de Nossa Senhora da Muxima, o grande ícone dos angolanos. Almoçámos num modesto restaurante local, uma refeição à base de bagre, pescado no rio Quanza, que passava por ali. O bagre é um peixe de água doce, muito apreciado pelos angolanos pela sua “carne” saborosa. Não possui escamas mas tem uns ferrões perigosos que podem provocar ferimentos sérios a quem lhes pegue com as mãos desprotegidas. O bagre do Quanza não pesa mais de dois quilos e tem cerca de 30 centímetros de comprimento. Quiseram por força convencer-me a comer uma especialidade da terra, o peixe-mulher, que sabia mais a carne do que a peixe e que não fui capaz de tragar. O peixe-mulher é a fêmea do peixe-boi, é um mamífero gordo e assemelha-se à morsa.
Também, para darmos a conhecer aos nossos filhos o ciclo do algodão, visitámos as imensas plantações deste arbusto na Baixa de Cassange, um deslumbramento de branco a perder de vista. Na companhia dum engenheiro das Obras Públicas, amigo do Vôvô, visitámos uma fábrica de algodão, para vermos como era feita a processação deste produto, tão importante nas exportações de Angola. No caminho, passámos por Pungo Andongo, Pedras Negras, célebres pela sua monumentalidade e beleza e, também, porque foi por estas bandas que esteve desterrado o célebre bandoleiro José do Telhado, por alguns chamado o Robin dos Bosques português, onde morreu, dele existindo uma bem cuidada e muito visitada campa em Caculama. E também nos mostraram o «pé da Rainha Ginga», uma pegada enorme, gravada na rocha, tão grande como a fama daquela lendária mulher guerreira, que entrou na resistência à ocupação de Angola, em tempos já muito recuados Passado algum tempo fomos a Malange, e depois às Quedas Duque de Bragança, no Rio Lucala, onde ficámos alojados numa confortável pousada, debruçada sobre as imponentes quedas de água.
Com mais tempo, e aproveitando uma deslocação do Vôvô, em serviço, a Sá da Bandeira, hoje Lubango, fizemos uma «viagem de estudo» até ao Sul. Já na Huíla, impressionou-nos muito a Fenda da Tundavala, gigantesca e que ninguém deixava de visitar, a estrada da Leba, uma notável obra de engenharia, celebrizada pelas suas numerosas e bem traçadas curvas e a Escola Agrícola, onde colhemos vastos ensinamentos neste domínio. Ao chegarmos à cidade, depois de termos arrostado com uma tremenda trovoada e exaustos pela longa viagem e pelo calor, instalámo-nos imediatamente numa Residencial acabada de inaugurar e o nosso primeiro gesto foi ir logo para a cama. Nem sequer saímos para jantar: comemos apenas umas sanduíches, leite e fruta. No dia seguinte, tomámos então um duche revigorante na casa de banho privativa, que não era mais do que um recanto vedado do quarto de dormir no qual se encontrava instalado o respectivo esquentador a gás de botija. Como éramos quatro a servir-nos da água quente, o esquentador manteve-se a funcionar durante algum tempo, primeiro os rapazes, depois eu e finalmente o Vôvô e, à medida que nos despachávamos do banho, íamos saindo para o exterior apreciar o dia luminoso e ver como era bela a terra! Porém, pouco tempo depois, todos nós estávamos maldispostos, certamente devido à queima do gás em espaço tão pequeno. Os rapazes, mais baixos e que tinham sido os primeiros a sair, tinham uma indisposição ligeira; eu estava muito enjoada, mas o mais atingido foi o Vôvô, mais alto e que tinha ficado para o fim, ao ponto de ter vindo embora do Serviço, onde fora fazer uma inspecção. Vejam só o que nos teria acontecido se tivéssemos tomado o duche quando chegámos na véspera à noite! Mudámo-nos imediatamente para o Grande Hotel da Huíla, onde recuperámos deste transtorno, o Võvô mais demoradamente.
Mesmo assim cumprimos o nosso programa, como tínhamos previsto, e regressámos a Luanda encantados com aquela progressiva cidade, com um belíssimo clima, dotada de uma grande Catedral, uma fonte luminosa, o grande e famoso Liceu Diogo Cão e o imponente Cristo-Rei da Ponta do Lubango, a lembrar o Cristo-Rei de Almada.
Mas a nossa viagem mais longa, com os filhos e de carro, foi a que fizemos ao Dundo, na Lunda, onde o tio João tinha um lugar importante, na Companhia dos Diamantes. Foi um percurso de dois mil quilómetros – ida e volta – que valeu bem a pena por muitos motivos: além do encontro com a família e das boas e variadas iguarias com que nos regalaram, pudemos observar como se fazia a extracção e escolha dos diamantes e visitar o Museu do Dundo, especialmente dedicado à arte angolana. O Dundo era então uma vila construída à semelhança das inglesas, constituída por moradias unifamiliares, todas dotadas dum espaço verde, em frente de cada uma, sem vedações. Toda a gente se conhecia, criando um ambiente muito acolhedor. Demos alguns passeios pelos arredores, mas numa zona delimitada, pois a guerra andava por ali perto.
Outros passeios fizemos com os vossos pais quando eram pequenos, mas fico-me por aqui, embora tencione na próxima carta, falar-vos dum safari inesquecível.
Até lá, beijinhos e mais beijinhos da Vóvó.
Fenda da Tundavala, O Cristo-Rei da Ponta do Lubango. A Catedral e a Fonte Luminosa da cidade angolana de Sá da Bandeira (actual Lubango).