Nunca pensei que os "olhos do meu coração, no dizer de S. Paulo, revelassem pormenores por mim julgados completamente esquecidos...
Quinta-feira, 31.07.08

 

 

 

 

Meus queridos netos:


Se não vos faltou o tempo ou a paciência para ler várias cartas em que vos falei dos Açores, vou agora explicar-vos o porquê da nossa ida e prolongada estadia nessas ilhas paradisíacas, tão mal conhecidas dos portugueses.


Quando, em 1980, ocorreu nos Açores um terramoto que quase riscou do mapa as Ilhas da Terceira, S. Jorge e Graciosa, impossível seria imaginarmos a mudança que tal cataclismo traria para as nossas vidas.


O primeiro impulso das populações atingidas foi, tal como acontecera alguns anos antes com a erupção do vulcão dos Capelinhos, no Faial, fugir daquela dramática devastação para ir tentar a sorte na América, onde a maioria dos açorianos tem família, aí fixada há longos anos.

 

Avisadamente, o Governo Regional, apoiado pelo Governo da República, decidiu tomar medidas de fundo para travar essa debandada.


A primeira foi criar um Gabinete de Apoio à Reconstrução (G.A.R) que dotou com uma equipa constituída por engenheiros e outros técnicos, regressados de Angola devido à descolonização. Embora já estivessem quase todos reformados, já que o país não arranjou meios para os integrar, eram pessoas muito competentes, dinâmicas e devotadas à causa pública. E assim se evitou o êxodo e se deu alento às populações que, modelarmente se lançaram à tarefa de transformar as casas em ruínas em óptimas moradias com todos os requisitos modernos. E o êxito foi tal que, até do Japão, onde os grandes sismos são frequentes, vieram equipas técnicas estudar o caso dos Açores.


No Verão desse ano, convidaram o Vôvô, que tinha trabalhado em Angola, nas Obras Públicas, com quase todos aqueles técnicos, a juntar-se à equipa do G.A.R, ficando a seu cargo a parte administrativa, em que era perito. Mas como nós já tínhamos planeado umas férias em Nova Iorque, em casa da nossa amiga Maria José, o Vôvô pôs, como condição para aceitar o convite, esperarem por ele até Outubro, o que foi prontamente aceite.


Regressados dessa fabulosa viagem, lá partiu o Vôvõ para os Açores, por um período calculado em seis meses, mas que se prolongou por cinco anos. Instalou-se na Residencial Cruzeiro, um dos edifícios que tinha escapado incólume ao terramoto e onde se encontravam já quase todos os elementos do G.A.R. Entretanto, eu continuei em Lisboa para dar todo o apoio possível aos nossos filhos, que já tinham concluído, com muito boas notas, o Ensino Liceal. O Zé tinha entrado, por opção sua, no Instituto Superior de Agronomia e o Quim, hesitante entre Medicina e Informática, acabou por perder a sua oportunidade e teve de esperar um ano, em que fez o Curso de Inglês no Instituto Americano, ingressando, no ano seguinte, no Instituto Superior Técnico.


Eu dava explicações em casa, mas decidi aceitar a oferta dum lugar num Colégio, que detestei. Era frequentado só por alunos rejeitados pelos liceus, cábulas e indisciplinados e por estudantes trabalhadores que não conseguiam concentrar-se nos seus estudos, naquele ambiente adverso. Não aguentei ficar ali para além de dois meses mas, pouco tempo depois recebi, por intermédio dum dos meus explicandos que o frequentava, o convite para ir ocupar a vaga dum professor há pouco falecido. Tratava-se dum Colégio de renome e tradição, O Novo Académico, que estando longe de me satisfazer, me reteve até ao fim do ano lectivo, após ter conseguido resolver alguns problemas de indisciplina, neste caso pontuais.


Como, entretanto, o contrato do Vôvô tinha sido renovado por, pelo menos, um ano e o Secretário Regional da Educação me convidara para ir dar apoio aos professores de Francês em todo o Arquipélago (excepto no Corvo, onde só se ministravam, por meio de Telescola, os quatro primeiros anos do currículo escolar então em vigor), pesados os prós e os contras, achámos que fazia sentido eu aceitar o emprego e, quando chegaram as férias grandes, despedi-me do Colégio e parti com o Vôvô a caminho dos Açores. Os nossos filhos (respectivamente com vinte e dezoito anos de idade) ficaram em Lisboa, instalados na nossa casa, com direito a uma mesada adequada e com uma mulher-a-dias que lhes tratava da roupa e das limpezas. Iam frequentar as respectivas universidades e pensámos que uma maior independência lhes daria um novo e maior sentido das responsabilidades. Quanto a mim, ia estar de novo junto do Vôvô, de quem sentia tanta falta e, o que não era para desprezar, dado o que tínhamos perdido em Angola, acrescentar um ordenado razoável à minha desfalcada reforma: Longe de mim o imaginá-lo mas o proveito ainda foi maior porque consegui somar mais quatro anos ao meu tempo de serviço, interrompido pela descolonização. Telefonávamos aos filhos pelo menos uma vez por semana e, de três em três meses vínhamos a Lisboa visitá-los, abastecer-lhes a despensa com carne e queijo dos Açores e tratar dos nossos assuntos.


Na Terceira, fiquei também instalada na residencial Cruzeiro, dotada de razoável conforto e onde só me cobravam um pequeno suplemento sobre a despesa do Vôvô e o pequeno-almoço. Como ainda não se tinham reabilitado os poucos restaurantes que funcionavam antes do sismo, comíamos, em geral, na cantina dos funcionários públicos ou na da Polícia, nem sempre muito bem. A primeira tinha um cozinheiro de tal calibre que os comensais estavam sempre ansiosos que ele fosse de férias, pois o ajudante que o substituía cozinhava muito melhor.


Foi com o maior dos entusiasmos que comecei o meu trabalho e comecei da melhor maneira pois, logo no primeiro dia fui encarregada de ir à Ilha das Flores levar as provas de exame, que eram a nível nacional. O meu Director, mais novo do que eu, teve algum receio de que eu não gostasse da missão, mas logo o tranquilizei, dizendo:


- Quando me quiser mandar a qualquer ilha, não hesite pois, para passear, estou sempre pronta mesmo que fosse de burro, quanto mais de avião.


E lá fui, contemplando, do alto, o arquipélago como se observasse um mapa e, embora não tenha saído do Aeroporto da iIha das Flores daquele tempo, que todos chamavam aero-vacas, dadas as suas reduzidas dimensões e a presença dos pacíficos ruminantes quase dentro do seu perímetro.


Foi-me dada uma grande liberdade de acção para programar e efectuar o meu trabalho: nos dois primeiros anos fiz, essencialmente, formação em Angra, para onde convocava um ou dois professores das diferentes escolas. Mas as deslocações de avião, o alojamento e as ajudas de custo eram tão onerosas que, a certa altura, já bem consciente dos problemas decorrentes de ter que lidar com aquela dispersão das ilhas por tão vasto espaço, só transponível por avião, propus ao meu Chefe ser eu a deslocar-me às escolas e aí, detectados os problemas, procurar resolvê-los in situ. Ele aplaudiu a minha proposta e foi assim que passei a viajar de avião, de Ilha para Ilha, quase todas as semanas.


Era um trabalho muito cansativo, com alguns percalços sem consequências devidos à instabilidade do tempo (poços de ar, nevoeiros que, por vezes, me retinham a meio do caminho por longos períodos) mas como era sempre muito bem recebida e, nessa altura, já todas as Ilhas dispunham de bons alojamentos, eu até costumava dizer, por graça: «Até que enfim! Agora só trabalho tanto como um homem». É que estava livre das tarefas de casa e a fazer aquilo de que gostava.


Prometo continuar esta saga mas, por agora, muitos beijinhos e até breve.

 

 


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Segunda-feira, 21.07.08

 

Queridos netos:

 

Eis-nos, então, de novo, em Portugal, agora em Guimarães onde, com o nascimento de D. Afonso Henriques, o nosso primeiro e valoroso rei, fomos pela primeira vez e até hoje separados de Castela e tornados independentes, a partir dum pequeno Condado, o Condado Portucalense que, com o esforço e a valentia dos nossos primeiros Reis se alargou progressivamente, graças aos territórios conquistados aos Mouros, até ao longínquo Algarve e, mais tarde, para Além-Mar, para mundos desconhecidos e geralmente hostis, onde os Portugueses demonstraram a sua fibra de heróis. Mas não quero transformar este relato numa lição de História de Portugal, embora tenha o maior empenho em que, um dia, ela seja tão fascinante para vós como o foi e continua a ser para mim.

Guimarães, pois. E antes de mais o Castelo, com as suas torres ameadas e os seus meios de defesa contra o vizinho leonês, sempre ávido de se apoderar do que perdera, mas também com as suas salas e dependências civis onde ainda hoje se recebem visitas ilustres ou se celebram datas relacionadas com o esplendor de Portugal ou com as suas glórias. Visitado este espaço quase sagrado, aproveitámos o intervalo entre duas ameias para admirar a vista geral da cidade.

Subimos depois à Penha, onde se eleva, talhado num enorme bloco de granito, um imponente monumento a Gago Coutinho e Sacadura Cabral, com estes nomes gravados e encimado por uma águia de asas abertas, símbolo da glória conquistada por estes dois portugueses, pioneiros da aviação e os primeiros a fazerem, com o seu quadrimotor, a primeira travessia atlântica, aérea, de Lisboa a Porto Seguro, no Brasil.

Regressámos a Braga, já preparada para a Semana Santa, com figuras de santos em tamanho natural colocadas nos pontos mais propícios à admiração dos fiéis, no decurso das múltiplas procissões, destinadas a percorrer aquelas ruas. Com muita pena nossa, o tempo estava chuvoso, o que obrigara a tapar com plásticos todos os grupos escultóricos, de que mal pudemos apreciar a grandiosidade e a beleza. Aproveitámos para conhecer, por dentro, a sumptuosa decoração da antiga Sé, anterior à Fundação de Portugal, bem como o seu claustro que tem apenas, de notável, uma enorme e perfeita fonte e, no meio desta, um pináculo encimado por, creio eu, um Cristo com os instrumentos do Seu martírio.

Apesar do mau tempo, ainda fomos visitar o Santuário do Sameiro, com o seu vasto terraço guardado por enormes estátuas e as paredes exteriores decoradas com azulejos, onde grupos de Anjos tocam e cantam os seus louvores a Deus, Na Póvoa de Lanhoso visitámos a Igreja e o Castelo, tirámos várias fotografias e tivemos o desgosto de deixar cair pela ravina um rolo já concluído mas salvo pela perícia dum rapaz ágil e destemido.

Rumámos depois para a Serra da Estrela. Mas, a dada altura, quando a subíamos a partir da Covilhã, surgiu-nos numa curva, um “Mercedes” completamente desgovernado, procurando encostar-se à encosta rochosa da montanha, certamente para poder travar a sua marcha, talvez por avaria dos seus travões, pelo que vinha fora de mão. O Vôvô, que conduzia o nosso carro, numa manobra muito arriscada, conseguiu afastar-se a tempo para a berma contrária, livrando-nos de um gravíssimo choque frontal. Ao raspar pela montanha abaixo, o “Mercedes” perdeu o tampão de uma das suas rodas, que viemos encontrar um pouco mais à frente. Os rapazes quiseram levá-lo para a nossa casa de Luanda e depois de Lisboa, onde se manteve exposta, até ainda há bem pouco tempo, como uma espécie de talismã e lembrança dum perigo que podia ter tido consequências trágicas. Refeitos do susto, continuámos a subir a Serra, onde os rapazes brincaram um pouco com a neve, fomos em busca da nascente do Rio Mondego, ensinámos-lhes a Lagoa Comprida e a dos Cântaros e todas as maravilhas do ponto mais alto do Portugal Continental.

Em Vila Real de Trás-os-Montes, mais do que a cidade debruçada sobre o Corgo, interessou-nos a terra onde nasceu Miguel Torga, com o negrilho por ele tantas vezes celebrado e as ruínas de Panóias, de que eu tanto ouvira falar e agora verificava tratar-se de túmulos cavados na rocha, valiosos pela sua antiguidade e pelo testemunho que nos dão da passagem dos romanos também por estes confins do mundo.

Resolvemos voltar a Távora, para passarmos o Dia de Páscoa de cujo ritual eu já tinha saudades e ali era celebrado com muito mais devoção e simbolismo do que na cidade. Depois do almoço típico, com anho assado, o folar bem amarelinho de ovos e açafrão natural, amassado com bom azeite das nossas oliveiras e a enorme bola de carnes que também é do vosso agrado, seguiu-se a Visita Pascal. Uma mesa primorosamente enfeitada, oferecia vários mimos, entre eles bolos de azeite e vinho generoso (ou do Porto, como erradamente se nomeia), amêndoas cobertas e, além da côngrua, posta a um canto para depois ser entregue ao sacristão, a tradicional laranja onde se cravava a moeda de cinco escudos destinados ao peditório. Assim se recebia o prior que, precedido pela Cruz, entrava na sala, abençoava a família, convidados e vizinhos presentes e, provado o vinho com algum pequeno bolo, se retirava para, em breve, dar por concluído o compasso, já que a casa da minha irmã ficava no fundo do povo e era uma das últimas, antes de Casaltelo.

Desta vez demorámos pouco tempo em Távora, mas ainda fomos visitar as obras, um assombro para aquelas gentes isoladas do mundo, da barragem no rio, quase defronte de Tabuaço. Deslocámo-nos ao Convento de S. Pedro das Águias, perdido nos ermos e com a particularidade de ter a porta principal voltada para a encosta rochosa.

No caminho de regresso, depois de nos determos um pouco no local onde teve lugar a Batalha de Aljubarrota, cujo significado não deixámos de assinalar, passámos pelo Buçaco, com o seu Palácio sumptuoso que era, e é, um hotel de cinco estrelas num parque com um lago e um jardim geometricamente talhado à francesa e, num recanto aprazível da frondosa mata, fizemos um regalado piquenique com as deliciosas sanduíches de pão caseiro e presunto curado no ponto, com que tínhamos sido abastecidos pela minha irmã. Tínhamos também queijo, fruta e sumos, estes últimos comprados por ali perto. O tempo estava muito agradável e, apesar de cansados, ainda fomos tentados por uma rápida visita a Conimbriga, onde, o que mais maravilhou os nossos filhos foram os magníficos mosaicos romanos, especialmente aquele que nos mostra, no centro da enorme e trabalhada moldura, um elegante cavalo, montado por uma personagem, certamente nobre e levado à arreata por um plebeu.

E era tempo de voltar a Portalegre, para os Bisavós matarem saudades nossas e gozarmos, juntos, os já poucos dias daquelas férias fantásticas, cujo relato teve de ser muito resumido.

Depois, os rapazes regressaram ao Colégio, onde o Quim nos surpreendeu, uns meses mais tarde, com um exame da 4ª classe que lhe mereceu um aprovado com distinção. O Zé passou, com muito boas notas, para o 2º ano do Ciclo Preparatório, que seria, agora, o 6ºano do Ensino Básico.

Entretanto, além das visitas regulares a Tondela, continuaram os passeios do Vôvô e meus, por vezes acompanhados pelos Bisavós, sempre ansiosos por mudarem de ares. O Bisavô tinha um grupo de amigos de tertúlia, por ele chamados catuas, palavra do dialecto timorense para dizer idosos. Quando saía connosco, tinha de os avisar e, no regresso, ficava obrigado a pagar-lhes os cafés, o que ele fazia com muito gosto, enquanto contava as peripécias dos passeios. Dava gosto vê-lo, logo de manhã cedo, de chapéu na mão, ansioso pela largada.

Mas basta, por hoje. Beijinhos da Vóvó.

 

                                                 1971

       Os vossos pais em Guimarães com o nosso AUDI

e juntos ao monumento a Gago Coutinho e Sacadura Cabral

 

 

 

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Terça-feira, 15.07.08

 

Meus queridos netos:

 

Acabadas as tarefas do meu estágio, viemos novamente, em 1971, passar umas longas férias a Portugal.


Como já vos contei, eu estava ainda muito combalida por um esgotamento nervoso e, logo que os grandes calores de Dezembro trouxeram, com as primeiras chuvas, as férias grandes, partimos para Portugal, desta vez num óptimo avião da T.A.P. e em primeira classe.


Quando chegámos ao Aeroporto da Portela, estava um frio de rachar e logo o Zé António se saiu com esta exclamação:


- Olha, Mamã, já viste aqueles senhores que vieram esperar o avião com os robes de lã como o Papá usa lá em casa? É que eles nunca tinham visto um sobretudo, incompatível com as temperaturas tropicais!

 

Depois duma pequena pausa em Lisboa para desalfandegarmos um Audi acabado de chegar da Alemanha e que foi o nosso primeiro carro ainda não usado por outra pessoa, foi nele que seguimos rumo a Portalegre onde, como da primeira vez, fizemos o nosso quartel-general.

 

No entanto, os filhos foram para um Colégio interno, em Tondela, o Quim para a 4ª classe e o Zé para o 1º ano do Ciclo Preparatório, pois eu não estava em condições físicas e psicológicas para cuidar deles e os acompanhar nos estudos. Tínhamos tido muito boas referências deste Colégio e, para acompanhar a sua evolução, nós íamos visitá-los pelo menos uma vez por mês.


Ainda em Janeiro, fomos todos a Távora, visitar a minha irmã e a sua família e regressámos por Viseu, onde visitámos o Museu Grão Vasco, a imponente Sé Catedral e também, em homenagem patriótica, a Cava de Viriato com a estátua deste guerreiro, chefe dos Lusitanos e, portanto, nosso valoroso antepassado. Fizemos uma paragem em Fátima, onde, com a oferta das nossas velas, demos graças a Nossa Senhora por todas as vezes que, intercedendo em nosso favor, nos cumulara com tantas bênçãos.Passadas as férias do Carnaval na Broa e com frequentes passeios, com os Bisavós, à Serra de S. Mamede, toda coberta de neve, que os nossos filhos, deslumbrados, puderam apreciar pela primeira vez, partimos a caminho do Colégio de Tondela, não sem fazermos uma pausa que nos permitiu visitar Coimbra: tanto a velha Cabra como a moderna Cidade Universitária, o magnífico Jardim Botânico e ainda o Museu Machado de Castro. Não podíamos deixar passar a ocasião, dada a idade dos nossos acompanhantes, de fazer uma visita demorada ao Portugal dos Pequeninos, com a competente explicação de monumentos e arquitectura civil, ali amorosamente preservados, em minuciosa e perfeitas miniaturas, para memória dos vindouros.
Dali fomos ao Mosteiro da Batalha, procurando fazê-los compreender, não só o alto significado histórico daquele monumento como também, na medida do possível, a sua riqueza arquitectónica, que tão bem ilustra o gótico flamejante. Ficaram estupefactos com a beleza das Capelas Imperfeitas e estranharam a designação até lhes termos explicado que se designavam assim porque nunca foram concluídas, portanto per-feitas, ou seja, completamente feitas.

          


Entretanto chegou o dia dos meus anos e, instalados em Mérida, no Parador Via de La Plata, visitámos, só o Vôvô e eu, aquela histórica cidade, cheia de monumentos notáveis, entre os quais se destaca o emblemático Arco de Trajano.

               


E chegaram, finalmente, as tão ansiadas Férias da Páscoa. Partimos imediatamente para o Colégio de Tondela e daí, passando pelo Caramulo para visitarmos o merecidamente célebre Museu dos Automóveis Antigos, seguimos para o Porto, onde visitámos demoradamente o Palácio de Cristal, sem faltar o tradicional passeio de barco, no Lago. Admirámos ainda as esplendorosas talhas douradas da Igreja de S. Francisco e subimos ao alto da Torre dos Clérigos para de lá apreciarmos as vastas panorâmicas sobre a Cidade.


Tinha, pois, começado auspiciosamente aquele passeio cultural, mas ainda estava praticamente no início. Começáramos por Távora, para visitarmos a Tia Maria Alice e a sua família, então ainda sem a Cândida e Lele que viriam nos tempos próximos. Fomos, todos, ao Pereiro para eu lhes mostrar a casa onde nasci e os sítios encantados da minha infância e dali partimos para o Pisco, uma quinta onde o meu tio Carlos tinha feito a reprodução dum monte alentejano, com dependências para o caseiro, para os animais e até um pombal onde os pombos arrulhavam, fugindo em debandada cada vez que o altifalante emitia ordens para o pessoal, ocupado a tratar das extensas vinhas e pomares. Fomos também a Lamego, onde visitámos a Sra. dos Remédios com o seu monumental escadório e a Sé, esta um pouco apressadamente porque a minha irmã se sentia bastante enjoada, devido às muitas curvas da estrada Távora-Moimenta da Beira e à gravidez de que ainda se não tinha dado conta e de que havia de resultar, daí a alguns meses, mais uma sobrinha para mim: a Cândida.


Dali seguimos para o Nordeste Transmontano: passámos por Alijó e admirámos o seu Miradoiro, com uma imponente imagem a Nossa Senhora, Padroeira de Portugal e do Mundo, fotografámos a porca pré-histórica, que se encontra num monumento do centro de Murça,

dessedentámo-nos nas belas fontes de Mirandela e encantámo-nos com Romeu, «vila das rosas» e Vilaverdinha, aldeias transmontanas melhoradas, o que, na época, era autêntico pioneirismo. Já em Miranda do Douro, apreciámos os majestosas arcarias do antigo Paço Episcopal e os miúdos encantaram-se com o Menino Jesus da Cartolinha e os seus variados trajes para as diferentes festividades.

                   

 

Fomos dormir à Pousada, num quarto que tinha a seus pés uma imensa barragem de água muito azul e uma baliza deserta por trás do Paço, desafiou o Zé António para simular umas fantásticas defesas.


Daqui fomos para Bragança. Visitámos o Castelo, de lá a panorâmica sobre a cidade e o Quim ficou cheio de importância ao ser fotografado com a enorme chave que lhe emprestaram, qual pequeno alcaide do séc. XX.

          

Passámos depois pela «Domus Municipalis», impressionante pela originalidade daquela antiquíssima construção e pelo papel que, em tempos longínquos desempenhou na vida cívica do burgo.. Em Chaves, também não deixámos esquecido o vetusto Castelo, com as suas ameias ponteagudas, mas o que mais nos impressionou foram as típicas varandas e os velhos solares, muito bem conservados. Ficámos intalados na Estalagem Santiago, muito confortável e, depois dum curto passeio à beira-Tâmega, ainda tivemos tempo para ir espreitar o rally, a decorrer em Carvalhelhos. Atravessámos a deslumbrante paisagem das barragens e não quisemos deixar de ir a Montalegre, no Barroso, onde comemos o melhor bife das nossas vidas.


Seguiu-se então o Minho: em Braga visitámos o Bom Jesus, trepámos toda aquela escadaria com os seus passos do Calvário e, em Viana do Castelo, subimos ao Monte de Santa Luzia, admirando um panorama que parecia não mais acabar e fomos ver as citânias, impressionantes na sua antiguidade e manifesta prova de que o Mundo começou há muitos e muitos anos. Claro que passámos por outros sítios inesquecíveis: Vila do Conde Póvoa do Varzim, Ofir, Caminha e, por Valença, entrámos na Galiza.


Passámos por Vigo, admirando as espectaculares rias baixas, a deixarem emergir as numerosas Islas Cies, mas seguimos para Santiago de Compostela, onde a majestosa catedral de granito não iludiu as nossas expectativas. Estava-se em Ano Santo, o que nos possibilitou assistir à cerimónia do botafumeiro, um descomunal turíbulo que oito homens balançavam para encher com perfume de incenso todo o interior da Igreja, em cujas varandas superiores se acolhiam, em tempos idos, os peregrinos sujos e doentes. que tornavam o ar irrespirável e malsão.

 

 

Foi essa antiquíssima cerimónia e o gesto simbólico de dar uma cabeçada na escultura do Apóstolo, na esperança de, assim, verem acrescentados os seus dotes intelectuais, que maior impacto tiveram nos dois rapazinhos. A nós, além da sensação de pequenez que tivéramos, logo à chegada, perante a gigantesca mole granítica da Catedral, a harmonia grandiosa da Praça do Obradoiro, com o conhecido e caro Hostal de los Reys Católicos, a artística escadaria conhecida por Ferradura, deslumbrou-nos, sobretudo, o interior da Catedral, com os seus magníficos altares, especialmente o altar-mor, dedicado a Santiago, onde se encontra uma escultura do Apóstolo, cuja capa todos querem abraçar, os órgãos monumentais que, nas grandes ocasiões, inundam de música todo o espaço como se os anjos do Céu se tivessem congregado ali para louvar a Deus e nos transportarem até Ele., o rico Museu da Catedral e o claustro com suas arcadas, donde se avistam as bem lançadas torres e coruchéus.


Seguimos, então, para La Coruña, onde o monumento dos Anjos músicos representou, para nós, as boas vindas da “Galícia, terra meiga» e pudemos apreciar, do alto da Torre de Hércules, a vasta e interessante panorâmica da cidade e do mar que a rodeia. Regressávamos, agora, por Vigo mas, entretanto, alguém fez uma esmorradela no nosso Audi, logo se prontificando a mandar arranjar a chapa e a dar-nos uma pequena indemnização para, em Portugal, restaurarmos a pintura e, assim, não perturbarmos muito a nossa viagem. Aproveitámos a inesperada pausa para subir ao Monte Castro, magnífico Miradoiro donde se avista não só a cidade mas também um largo espaço das rias e se pode admirar um monumento aos galeões que, no princípio do século dezoito, naufragaram naquelas águas: três âncoras elegantemente justapostas sobre uma vasta base de mármore. À noite, no hotel, assistimos pela primeira vez ao Festival da Canção, vendo a Tonicha representar Portugal com a simples mas melodiosa canção “Menina”, muito divulgada, depois, pela Televisão e pelas rádios.


Ainda visitámos a Catedral de Pontevedra e eu, que tanto admiro a poesia de Rosalía de Castro, tentei uma peregrinação à casa da poetisa galega, prémio Nobel da Literatura, mas encontrava-se em grande estado de degradação, fechada e com tábuas espalhadas em redor, talvez o começo dos preparativos para a sua reconstrução. Quisemos terminar a nossa viagem à Galiza com a visita à Catedral de Tuy, ali perto da fronteira portuguesa, mas encontrámo-la encerrada.


Assim, regressámos a Portugal para completar um circuito que, como vêem, foi enriquecedor de todos os pontos de vista. Mas como já devem estar cansados de nos acompanhar nesta longa viagem, a ela voltarei na próxima carta pois as férias da Páscoa ainda mal vão a meio.

 

A nossa longa estadia em Angola sem virmos a Portugal e o desconhecimento que os nossos dois filhos (agora já mais crescidos) tinham do nosso querido país mais que justificavam esta autêntica peregrinação que acabo de vos relatar com continuação na próxima carta.


Muitos beijinhos e abraços desta Vóvó que, enquanto Deus lhe der forças para isso, não trocará por nada esta queda de andarilha.

 

publicado por clay às 00:56 | link do post | comentar | favorito
Domingo, 13.07.08

 

O VELO DE OURO

Fiquem nas estantes
os livros de fadas,
de bruxas e lendas,
porque esta Menina,
com seus treze anos
já quer outras prendas:

 

um lindo vestido
da cor que não há,
tintas de pintar
as ondas na praia,
rendinhas de alvura
que o pincel lhe dá.
E aquele DVD
de amores e aventura
que espera encontrar
quando for a altura.

 

Por ora, a Menina
quer portar-se bem,
quer ter boas notas,
quer viver a vida
feliz, sem escolhos,
até poder ver-se
na luz doutros olhos.

 

Que Deus a proteja,
à nossa Menina,
longe, à beira-mar.
Já faz treze anos
a oito de Maio,
com as rosas todas
a desabrochar.

 

 

 

E o seu coração,
grande e generoso,
já foi o botão
de rosa, que agora
a nossa Menina,
quase uma senhora,
guarda, qual tesouro
a ser encontrado
por um argonauta
que nele reconheça
o seu velo de ouro.

 

 

Lisboa, 8 de Maio de 2008

 

Clementina Relvas

 

 

sinto-me:
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Segunda-feira, 07.07.08

 

Meus queridos netos:


Aqui vai, finalmente, depois de tantas outras solicitações que se adiantaram, na minha memória, à concretização das férias adiadas por razões que já desenvolvi anteriormente, o relato, que vos prometi, dum dos últimos fins de semana passados em Luanda, antes de partir, sozinha, para Portugal, com a intenção, malograda, de fazer, em Lisboa, o estágio para professora efectiva.


Por essa altura, tinha sido aberta ao público, distando apenas cerca de cento e cinquenta quilómetros da capital, uma reserva de caça que viria a passar, durante a guerra, por deploráveis vicissitudes, pois a maioria dos animais selvagens que lá havia, e eram inúmeros e variados, foram abatidos ou por pura crueldade ou para alimentar populações mas, sobretudo, guerrilheiros esfomeados. Mas esta chacina ocorreu mais tarde, já nós tínhamos vindo embora.


Naquela altura, por volta de 1969, eu estava extremamente cansada, à beira dum esgotamento nervoso que não se fez esperar e, para descansarmos um pouco do trabalho que se tinha vindo a acumular sobre os nossos ombros, resolvemos ir todos passar um fim de semana à Quiçama.


A reserva estava dotada de boas infra-estruturas, embora lhe faltasse, ainda, o restaurante, aliás já em vias de construção. Mas havia uns bungalows de pedra e cal, com tectos de colmo, a melhor protecção para o calor dos trópicos. Todos eram compostos por um quarto e uma casa de banho privativa, oferecendo, portanto, apesar de pequenos, condições de conforto muito apreciáveis por um preço quase simbólico.

 

Na falta do restaurante, tinham sido construídos dois enormes jangos, isto é, um telhado de colmo assente em grossos troncos de árvore, sem qualquer tipo de parede para deixar que o ar circulasse livremente. Um deles destinava-se às pessoas que queriam cozinhar e ali encontravam grelhadores, espaço destinado à preparação dos alimentos e um cómodo lava-loiça. O outro tinha mesas pedra, onde os visitantes se juntavam às refeições.


Nós tínhamos levado alguma comida previamente confeccionada em casa mas também carne para grelhar, tudo bem acondicionado numa caixa geleira. Noutra, puséramos as bebidas: água, cerveja, Coca-Cola e outros refrigerantes mas, a dada altura, tivemos o privilégio de utilizar o frigorífico do guarda do Parque, pessoa muito afável e colaborante.


Partimos numa sexta-feira, depois de virmos dos respectivos empregos e já lá fomos dormir um sono bem reparador, apesar do contínuo piar das aves que na maioria desconhecíamos e dum ou outro bramido de animais, que assim comunicavam uns com os outros. Logo de manhã bem cedo, pois em Luanda amanhece sempre às seis e meia, o Vôvô tratou de ir contratar um jeep e um batedor, que dizia conhecer muito bem o terreno e os animais. Daí a bocado, partimos. Eu ia ao lado do Vôvô, que conduzia, seguindo as instruções do nosso guia e, na caixa aberta, atrás, iam o Zé, o Quim e o referido batedor.


Ao princípio, tudo correu bem: avistavam-se enormes manadas de veados, palancas, impalas e outros animais que passavam tranquilamente ou em correria, quase sempre ao longe. De vez em quando era um coelho que se escapulia à frente do jeep e também nos cruzámos com algumas cobras. Dessas eu não gostava nada, em primeiro lugar porque sempre tive aversão aos répteis mas também porque, ainda na Caála, a caminho de Nova Lisboa, uma cobra conseguiu infiltrar-se no nosso carro e aí foi um verdadeiro pânico até que o Vôvô a descobriu e, com um pau, conseguiu afugentá-la do nosso caminho.


Atravessámos zonas povoadas por grandes árvores, algumas centenárias, mas também outras planas, de vegetação rasteira, por onde geralmente preferíamos seguir. Aí, além do capim, cresciam plantas variadas e estranhas, que enchiam o ar de perfumes intensos e variados. Aí se esqueciam todos os problemas e quase nos sentíamos transportados ao Paraíso.


Mas eis senão quando, ao sairmos duma curva mais apertada, nos deparámos com dois enormes elefantes que, mesmo ali à nossa frente, a poucos metros, abanavam as suas grandes orelhas e emitiam bramidos nada tranquilizadores. E não pensem que eram como os que vemos nos Jardins Zoológicos ou nos Circos. Eram enormes, verdadeiras montanhas de carne. O Vôvô, que sempre teve, e ainda tem, reacções rápidas ao volante, meteu uma marcha-atrás e recuou com a máxima velocidade possível, pois a picada era estreita e sinuosa. Olhando para trás enquanto fazia a difícil manobra, ficou estupefacto quando descobriu que o nosso batedor-guia já havia saltado do jeep e fugia a sete pés, abandonando-nos. O Vôvô até costuma dizer por graça que não pôde dar mais velocidade à marcha-atrás porque teve receio de atropelar o fugitivo! E só o fomos reencontrar no acampamento, onde chegámos, passado algum tempo, depois de o Vôvô ter feito uma inversão de marcha logo que encontrou um sítio seguro para a fazer. Boa aventura esta para contar…Eu continuava a sentir o coração acelerado, os rapazes, um pouco inconscientes do perigo que tínhamos corrido, achavam que aquele episódio fora o máximo dos máximos e o Vôvô foi o único que manteve, tanto quanto possível, o seu habitual sangue frio e uma atitude pragmática. Quando interpelou o guia, mostrando-lhe como, no momento do perigo, ele nos tinha abandonado à nossa sorte, ele esclareceu, prontamente:


- Ó patrão, o que eu tive foi medo mesmo porque, quando elefante abana assim as orelhas, é sinal de que vai atacar e o melhor que guia faz é fugir.


Como tudo tinha acabado em bem, apesar do grande perigo que nos tinha ameaçado, tratámos de recompor as forças com um excelente almoço na companhia dos outros «safaristas», a quem logo contámos a nossa aventura que também eles acharam perigosa, insurgindo-se contra a cobardia do nosso batedor.


- São pretos, que se lhes há-de fazer? – comentou alguém.


Mas esta era uma observação de puro e condenável racismo, que nós logo ali repudiámos, pois ainda hoje penso que qualquer pessoa naquela situação só pensaria na maneira mais rápida e eficaz de se pôr a salvo, sem olhar para trás. É claro que, se fosse eu, ali teria ficado, petrificada de «medo mesmo».


Já tínhamos desistido de ir em busca de mais adrenalina quando um casal com dois filhos nos convidou a ir, ao fim da tarde, assistir, do alto dum morro, ao banho dos elefantes. O Vôvô tinha ficado tão farto de safaris que preferiu ficar no acampamento a gozar a deliciosa temperatura do fim do dia. Mas o Zé, o Quim e eu aceitámos sem hesitar tão sedutor convite e em boa hora o fizemos.


Era ao pôr-do-sol. Um verdadeiro pôr-do-sol deslumbrante, na sua variadíssima paleta de cores que tornavam fantasmagórico, lá em baixo, o majestoso rio Quanza, com as suas águas mansas espraiando-se como se não quisesse acatar limites. No meio do rio, uma grande manada de elefantes de todos os tamanhos tomava o seu banho refrescante e revigorador. A água que expeliam pelas longas trombas sobre os seus pacíficos companheiros, parecia uma chuva de oiro que não iria parar nunca. Ali ficámos até ter caído a noite, a observar aquela cena verdadeiramente idílica. E o que mais me tocou o coração foi ver a diligência e carinho com que os mais velhos se ocupavam das muitas crias da manada, brincando com elas enquanto as aspergiam da refrescante água do rio. A espaços, ouviam-se bramidos de pura felicidade que punham em fuga as inúmeras e graciosas garças brancas, já acomodadas para a noite nas verdes ramadas do arvoredo que corria ao longo das margens. E era então um céu coalhado de asas brancas, um autêntico hino à Natureza, que todos gostaríamos de ver eternizados naquela paz e formosa harmonia para sempre, para sempre.

 

Até à próxima, meus queridos. Beijinhos da Vóvó

 

 



publicado por clay às 19:08 | link do post | comentar | favorito
Terça-feira, 01.07.08


Meus queridos netos:

 

Numa carta anterior contei, com muitos pormenores, as primeiras férias que passámos em Portugal, quando trabalhávamos em Angola


O tempo foi passando, floriram na altura própria as acácias rubras, uma vez, outras vezes, ficaram para trás os anos do Colégio da D. Júlia, as aulas de natação no Clube Nuno Álvares e, apesar da guerra, que ainda não chegara a Luanda, a nossa vida decorria tranquila e feliz. Como me parece que já vos disse, o Vôvô desistiu de ter férias porque, depois de ter feito a experiência de ir, à tarde, connosco às praias da Ilha, viu-se a braços com tanto trabalho acumulado que não podia deixar de ir de manhã e à tarde às Obras Públicas, onde aliás ninguém, seguindo o exemplo do Director, deixava de cumprir escrupulosamente os horários, sem férias nem folgas. Ora, tanto eu como os vossos Pais tínhamos as férias escolares na época do maior calor, pelo que, muitas vezes com a Luísa e também com a Tininha e o Toni íamos no meu carro até à Ilha, onde nos refrescávamos nas ondas quase sempre calmas do Oceano Atlântico e descansávamos dum ano de trabalho.

 

Todos juntos nos divertíamos e comíamos, esfomeados, o rico lanche que sempre levávamos connosco. Ao Domingo, depois da Missa, o Vôvô aproveitava então, não só a praia, como a companhia dos nossos amigos e respectivos filhos. Cada um levava o seu almoço que era partilhado por todos e, esse grande grupo, já conhecido de toda a gente e muito bem disposto, por ali se ficava em amena cavaqueira até o sol, muito vermelho, ficar bem perto da linha do horizonte, A noite caía abruptamente, por volta das seis da tarde e era o regresso a casa. Alguns casais iam juntos ao cinema, mas nós gostávamos mais de sair em família. Durante esse tempo fizemos alguns passeios de que já vos falei, festejámos os anos e a Primeira Comunhão dos nossos filhos, sempre com muita gente e alegria.


E, quase sem darmos por isso, chegou a altura de gozarmos a segunda licença graciosa. Bem precisados estávamos dum descanso, mas a verdade é que «o homem põe e Deus dispõe»: Ora, nesse ano de 1969, abriu, a nível nacional, o estágio para professoras efectivas com trezentas e sessenta vagas, mas só na Metrópole. Ponderados os prós e os contras e apesar do grande estado de cansaço em que eu me encontrava, decidimos, o Vôvô e eu, que o melhor a fazer era concorrer, o que, uma vez admitida, em segundo lugar, implicou a minha deslocação para Lisboa, onde se me juntariam, no fim do ano lectivo, o Vôvô, O Zé e o Quim, para então darmos início às tão ambicionadas férias. Isto porque, apesar das diligências do Secretário Provincial da Educação, não havia qualquer certeza de abrirem estágios em Luanda.


Nas vésperas da minha partida, fizemos um animado safari à Reserva da Quissama, de que falarei na próxima carta. Mas foi com grande tristeza que me separei da família. Instalei-me, como era nosso costume, na Casa de Santa Zita, à Estrela, não só porque já conhecia o ambiente e as pessoas (até lá tinha uma colega que fez dali o seu lar) mas também porque ficava perto do Liceu Pedro Nunes, onde eu iria estagiar. Ora, o primeiro choque resultou logo do facto de eu me ver, sozinha, num sítio onde tinha passado dias felizes, quando gozámos a primeira licença graciosa. Tudo me fazia lembrar o Marido e Filhos, tudo me parecia desprovido de qualquer sentido.


No Liceu, contei com a simpatia do Reitor, que me tinha conhecido em Luanda e do metodólogo de Francês, casado com uma colega, ambos muito simpáticos. As aulas iam decorrendo dentro da normalidade, até que um dia o metodólogo de Português me encarregou de «ir meter na ordem» uma turma do então sétimo ano, que um colega não fora capaz de interessar, deixando-a cair numa anarquia completa. A primeira aula foi dada pelo metodólogo, comigo a assistir e a verificar que, de facto, me não esperava uma tarefa fácil, pois se tratava de alunos viajados, com um nível cultural fora do comum e muito exigentes.

 

Não foi, contudo, muito difícil de os fazer aceitar as minhas regras e tudo parecia correr normalmente. Chegou, entretanto, o feriado de Todos-os-Santos e eu resolvi ir a Portalegre, acompanhar os Bisavós na visita ao Cemitério. Foi uma infeliz ideia, pois comecei a ser sacudida por crises de choro incontroláveis, tremuras e não conseguia dormir. Deixando, preocupados e tristes, os Bisavós que não sabiam o que fazer, regressei a Lisboa e apelei a pessoas amigas que me encaminharam para a Clínica de Belas, onde fiz uma cura de sono (com medicamentos), durante doze dias. Tive a grande sorte de encontrar um psiquiatra inexcedivelmente simpático e dedicado, que me rodeou de carinho, me fez aceitar que a minha prioridade era a família e se prontificou a medicar-me por correspondência, se resolvesse voltar a Luanda.


No Liceu Pedro Nunes, todos se preocuparam com o meu estado, tendo Reitor proposto anular-me as faltas em excesso, embora se confessasse admirado como é que eu tinha deixado não só a família como a consideração de que vira eu desfrutar em Luanda, da parte de colegas, alunos e pessoas amigas.


Entretanto tinha sido autorizado o funcionamento do estágio em Luanda e imediatamente pedi a transferência, ficando perante o dilema de desistir e perder a oportunidade por que tanto ansiara ao longo da minha carreira ou iniciar um estágio em tratamento dum esgotamento nervoso. Não foi uma decisão fácil, que o médico disse que tinha de ser eu a tomar, para me não sentir frustrada. Das primeiras vezes que voltei ao meu Liceu, em Luanda, só o pude fazer acompanhada. No primeiro dia de aulas, tive uma crise de vómitos, mas lá fui. E a verdade é que, mal entrei na sala do 4º A, perante aquelas meninas tão atentas e preocupadas comigo, todas as angústias me passaram. Depois, com as cartas do meu médico de Lisboa, a compreensão das metodólogas, a infatigável ajuda do Vôvô, que me dactilografava todos os trabalhos e me levava, ao fim da tarde, a espairecer, olhando o pôr do sol na ponta da Ilha e a calma vida familiar, consegui o meu objectivo: acabei o estágio em primeiro lugar entre oito candidatas, o que me valeu ter sido logo escolhida para metodóloga de Francês, pois cedi o Português à minha amiga Ana Maria, que se sentia mais à vontade a orientar essa disciplina.

 

Do meu esgotamento ficaram, por longos anos, dificuldades de sono, o que não me impediu de orientar os meus estagiários até 1975 (ano em que regressámos definitivamente a Portugal, como já disse em carta anterior) e de integrar, por duas vezes, o júri nacional que se deslocou a Moçambique, da segunda vez na companhia do Vôvô.

 

Em Moçambique, fomos recebidos pelo Tio Ernestino, que tinha passado uma vida ao serviço dos Caminhos-de-ferro daquela colónia e pela sua mulher, duas almas generosas que, sem filhos, ajudaram muita gente, servindo de pais a quem os não tinha. Viviam numa quinta que tinham adquirido na Matola, próxima da capital, naquele tempo Lourenço Marques, hoje Maputo, e que o Tio teve de deixar, já viúvo, por causa da descolonização.

 

Apareceu-nos um dia em nossa casa, em Lisboa, só com a roupa que trazia vestida e uma mala quase vazia. Depois de ter conseguido, com muito esforço e obstinação, sempre acompanhado pelo Vôvô, a reforma que lhe era devida por mais anos de trabalho do que os estipulados pela lei, em má hora, quis voltar e voltou à sua casa na Matola, onde acabou por ser bárbaramente agredido por assaltantes, que o atiraram para uma cama de Hospital, donde só saiu para regressar a Lisboa, numa cadeira de rodas. Voltou a ficar algum tempo em nossa casa, acarinhado por todos nós e, quando fomos trabalhar para os Açores, teve de ir para um Lar de idosos, onde apesar de explorado, dizia sentir-se feliz e aí morreu, com mais de noventa anos. Mas antes, ainda conseguiu ser operado no Hospital de Santa Maria de Lisboa, onde lhe extraíram um ferro que uma "cirurgiã" soviética, ao serviço do regime que se instalou em Moçambique, lhe colocara no interior de um joelho, o que tolhia qualquer movimento da perna. E assim, para sua grande alegria, deixou a cadeira de rodas. Conta o Vôvô, que sempre o acompanhou, que viu uma vez um professor-médico do Hospital de Santa Maria expor na vidraça de uma janela da enfermaria onde o Tio estava acamado, perante os estudantes medicina estupefactos, as radiografias do joelho com o ferro, dizendo: “isto que vocês aqui vêem é como se tivessem atravessado este ferro na dobradiça de uma porta!.... Pobre velho!”


Esta carta vai muito longa e bastante triste mas, para vos compensar, prometo contar-vos, na próxima, o tal safari de que falei mais atrás.


Até lá, muitos beijinhos carinhosos da Vóvó Clementina
 


 

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