Nunca pensei que os "olhos do meu coração, no dizer de S. Paulo, revelassem pormenores por mim julgados completamente esquecidos...
Segunda-feira, 07.07.08

 

Meus queridos netos:


Aqui vai, finalmente, depois de tantas outras solicitações que se adiantaram, na minha memória, à concretização das férias adiadas por razões que já desenvolvi anteriormente, o relato, que vos prometi, dum dos últimos fins de semana passados em Luanda, antes de partir, sozinha, para Portugal, com a intenção, malograda, de fazer, em Lisboa, o estágio para professora efectiva.


Por essa altura, tinha sido aberta ao público, distando apenas cerca de cento e cinquenta quilómetros da capital, uma reserva de caça que viria a passar, durante a guerra, por deploráveis vicissitudes, pois a maioria dos animais selvagens que lá havia, e eram inúmeros e variados, foram abatidos ou por pura crueldade ou para alimentar populações mas, sobretudo, guerrilheiros esfomeados. Mas esta chacina ocorreu mais tarde, já nós tínhamos vindo embora.


Naquela altura, por volta de 1969, eu estava extremamente cansada, à beira dum esgotamento nervoso que não se fez esperar e, para descansarmos um pouco do trabalho que se tinha vindo a acumular sobre os nossos ombros, resolvemos ir todos passar um fim de semana à Quiçama.


A reserva estava dotada de boas infra-estruturas, embora lhe faltasse, ainda, o restaurante, aliás já em vias de construção. Mas havia uns bungalows de pedra e cal, com tectos de colmo, a melhor protecção para o calor dos trópicos. Todos eram compostos por um quarto e uma casa de banho privativa, oferecendo, portanto, apesar de pequenos, condições de conforto muito apreciáveis por um preço quase simbólico.

 

Na falta do restaurante, tinham sido construídos dois enormes jangos, isto é, um telhado de colmo assente em grossos troncos de árvore, sem qualquer tipo de parede para deixar que o ar circulasse livremente. Um deles destinava-se às pessoas que queriam cozinhar e ali encontravam grelhadores, espaço destinado à preparação dos alimentos e um cómodo lava-loiça. O outro tinha mesas pedra, onde os visitantes se juntavam às refeições.


Nós tínhamos levado alguma comida previamente confeccionada em casa mas também carne para grelhar, tudo bem acondicionado numa caixa geleira. Noutra, puséramos as bebidas: água, cerveja, Coca-Cola e outros refrigerantes mas, a dada altura, tivemos o privilégio de utilizar o frigorífico do guarda do Parque, pessoa muito afável e colaborante.


Partimos numa sexta-feira, depois de virmos dos respectivos empregos e já lá fomos dormir um sono bem reparador, apesar do contínuo piar das aves que na maioria desconhecíamos e dum ou outro bramido de animais, que assim comunicavam uns com os outros. Logo de manhã bem cedo, pois em Luanda amanhece sempre às seis e meia, o Vôvô tratou de ir contratar um jeep e um batedor, que dizia conhecer muito bem o terreno e os animais. Daí a bocado, partimos. Eu ia ao lado do Vôvô, que conduzia, seguindo as instruções do nosso guia e, na caixa aberta, atrás, iam o Zé, o Quim e o referido batedor.


Ao princípio, tudo correu bem: avistavam-se enormes manadas de veados, palancas, impalas e outros animais que passavam tranquilamente ou em correria, quase sempre ao longe. De vez em quando era um coelho que se escapulia à frente do jeep e também nos cruzámos com algumas cobras. Dessas eu não gostava nada, em primeiro lugar porque sempre tive aversão aos répteis mas também porque, ainda na Caála, a caminho de Nova Lisboa, uma cobra conseguiu infiltrar-se no nosso carro e aí foi um verdadeiro pânico até que o Vôvô a descobriu e, com um pau, conseguiu afugentá-la do nosso caminho.


Atravessámos zonas povoadas por grandes árvores, algumas centenárias, mas também outras planas, de vegetação rasteira, por onde geralmente preferíamos seguir. Aí, além do capim, cresciam plantas variadas e estranhas, que enchiam o ar de perfumes intensos e variados. Aí se esqueciam todos os problemas e quase nos sentíamos transportados ao Paraíso.


Mas eis senão quando, ao sairmos duma curva mais apertada, nos deparámos com dois enormes elefantes que, mesmo ali à nossa frente, a poucos metros, abanavam as suas grandes orelhas e emitiam bramidos nada tranquilizadores. E não pensem que eram como os que vemos nos Jardins Zoológicos ou nos Circos. Eram enormes, verdadeiras montanhas de carne. O Vôvô, que sempre teve, e ainda tem, reacções rápidas ao volante, meteu uma marcha-atrás e recuou com a máxima velocidade possível, pois a picada era estreita e sinuosa. Olhando para trás enquanto fazia a difícil manobra, ficou estupefacto quando descobriu que o nosso batedor-guia já havia saltado do jeep e fugia a sete pés, abandonando-nos. O Vôvô até costuma dizer por graça que não pôde dar mais velocidade à marcha-atrás porque teve receio de atropelar o fugitivo! E só o fomos reencontrar no acampamento, onde chegámos, passado algum tempo, depois de o Vôvô ter feito uma inversão de marcha logo que encontrou um sítio seguro para a fazer. Boa aventura esta para contar…Eu continuava a sentir o coração acelerado, os rapazes, um pouco inconscientes do perigo que tínhamos corrido, achavam que aquele episódio fora o máximo dos máximos e o Vôvô foi o único que manteve, tanto quanto possível, o seu habitual sangue frio e uma atitude pragmática. Quando interpelou o guia, mostrando-lhe como, no momento do perigo, ele nos tinha abandonado à nossa sorte, ele esclareceu, prontamente:


- Ó patrão, o que eu tive foi medo mesmo porque, quando elefante abana assim as orelhas, é sinal de que vai atacar e o melhor que guia faz é fugir.


Como tudo tinha acabado em bem, apesar do grande perigo que nos tinha ameaçado, tratámos de recompor as forças com um excelente almoço na companhia dos outros «safaristas», a quem logo contámos a nossa aventura que também eles acharam perigosa, insurgindo-se contra a cobardia do nosso batedor.


- São pretos, que se lhes há-de fazer? – comentou alguém.


Mas esta era uma observação de puro e condenável racismo, que nós logo ali repudiámos, pois ainda hoje penso que qualquer pessoa naquela situação só pensaria na maneira mais rápida e eficaz de se pôr a salvo, sem olhar para trás. É claro que, se fosse eu, ali teria ficado, petrificada de «medo mesmo».


Já tínhamos desistido de ir em busca de mais adrenalina quando um casal com dois filhos nos convidou a ir, ao fim da tarde, assistir, do alto dum morro, ao banho dos elefantes. O Vôvô tinha ficado tão farto de safaris que preferiu ficar no acampamento a gozar a deliciosa temperatura do fim do dia. Mas o Zé, o Quim e eu aceitámos sem hesitar tão sedutor convite e em boa hora o fizemos.


Era ao pôr-do-sol. Um verdadeiro pôr-do-sol deslumbrante, na sua variadíssima paleta de cores que tornavam fantasmagórico, lá em baixo, o majestoso rio Quanza, com as suas águas mansas espraiando-se como se não quisesse acatar limites. No meio do rio, uma grande manada de elefantes de todos os tamanhos tomava o seu banho refrescante e revigorador. A água que expeliam pelas longas trombas sobre os seus pacíficos companheiros, parecia uma chuva de oiro que não iria parar nunca. Ali ficámos até ter caído a noite, a observar aquela cena verdadeiramente idílica. E o que mais me tocou o coração foi ver a diligência e carinho com que os mais velhos se ocupavam das muitas crias da manada, brincando com elas enquanto as aspergiam da refrescante água do rio. A espaços, ouviam-se bramidos de pura felicidade que punham em fuga as inúmeras e graciosas garças brancas, já acomodadas para a noite nas verdes ramadas do arvoredo que corria ao longo das margens. E era então um céu coalhado de asas brancas, um autêntico hino à Natureza, que todos gostaríamos de ver eternizados naquela paz e formosa harmonia para sempre, para sempre.

 

Até à próxima, meus queridos. Beijinhos da Vóvó

 

 



publicado por clay às 19:08 | link do post | comentar | favorito
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