Nunca pensei que os "olhos do meu coração, no dizer de S. Paulo, revelassem pormenores por mim julgados completamente esquecidos...
Segunda-feira, 21.07.08

 

Queridos netos:

 

Eis-nos, então, de novo, em Portugal, agora em Guimarães onde, com o nascimento de D. Afonso Henriques, o nosso primeiro e valoroso rei, fomos pela primeira vez e até hoje separados de Castela e tornados independentes, a partir dum pequeno Condado, o Condado Portucalense que, com o esforço e a valentia dos nossos primeiros Reis se alargou progressivamente, graças aos territórios conquistados aos Mouros, até ao longínquo Algarve e, mais tarde, para Além-Mar, para mundos desconhecidos e geralmente hostis, onde os Portugueses demonstraram a sua fibra de heróis. Mas não quero transformar este relato numa lição de História de Portugal, embora tenha o maior empenho em que, um dia, ela seja tão fascinante para vós como o foi e continua a ser para mim.

Guimarães, pois. E antes de mais o Castelo, com as suas torres ameadas e os seus meios de defesa contra o vizinho leonês, sempre ávido de se apoderar do que perdera, mas também com as suas salas e dependências civis onde ainda hoje se recebem visitas ilustres ou se celebram datas relacionadas com o esplendor de Portugal ou com as suas glórias. Visitado este espaço quase sagrado, aproveitámos o intervalo entre duas ameias para admirar a vista geral da cidade.

Subimos depois à Penha, onde se eleva, talhado num enorme bloco de granito, um imponente monumento a Gago Coutinho e Sacadura Cabral, com estes nomes gravados e encimado por uma águia de asas abertas, símbolo da glória conquistada por estes dois portugueses, pioneiros da aviação e os primeiros a fazerem, com o seu quadrimotor, a primeira travessia atlântica, aérea, de Lisboa a Porto Seguro, no Brasil.

Regressámos a Braga, já preparada para a Semana Santa, com figuras de santos em tamanho natural colocadas nos pontos mais propícios à admiração dos fiéis, no decurso das múltiplas procissões, destinadas a percorrer aquelas ruas. Com muita pena nossa, o tempo estava chuvoso, o que obrigara a tapar com plásticos todos os grupos escultóricos, de que mal pudemos apreciar a grandiosidade e a beleza. Aproveitámos para conhecer, por dentro, a sumptuosa decoração da antiga Sé, anterior à Fundação de Portugal, bem como o seu claustro que tem apenas, de notável, uma enorme e perfeita fonte e, no meio desta, um pináculo encimado por, creio eu, um Cristo com os instrumentos do Seu martírio.

Apesar do mau tempo, ainda fomos visitar o Santuário do Sameiro, com o seu vasto terraço guardado por enormes estátuas e as paredes exteriores decoradas com azulejos, onde grupos de Anjos tocam e cantam os seus louvores a Deus, Na Póvoa de Lanhoso visitámos a Igreja e o Castelo, tirámos várias fotografias e tivemos o desgosto de deixar cair pela ravina um rolo já concluído mas salvo pela perícia dum rapaz ágil e destemido.

Rumámos depois para a Serra da Estrela. Mas, a dada altura, quando a subíamos a partir da Covilhã, surgiu-nos numa curva, um “Mercedes” completamente desgovernado, procurando encostar-se à encosta rochosa da montanha, certamente para poder travar a sua marcha, talvez por avaria dos seus travões, pelo que vinha fora de mão. O Vôvô, que conduzia o nosso carro, numa manobra muito arriscada, conseguiu afastar-se a tempo para a berma contrária, livrando-nos de um gravíssimo choque frontal. Ao raspar pela montanha abaixo, o “Mercedes” perdeu o tampão de uma das suas rodas, que viemos encontrar um pouco mais à frente. Os rapazes quiseram levá-lo para a nossa casa de Luanda e depois de Lisboa, onde se manteve exposta, até ainda há bem pouco tempo, como uma espécie de talismã e lembrança dum perigo que podia ter tido consequências trágicas. Refeitos do susto, continuámos a subir a Serra, onde os rapazes brincaram um pouco com a neve, fomos em busca da nascente do Rio Mondego, ensinámos-lhes a Lagoa Comprida e a dos Cântaros e todas as maravilhas do ponto mais alto do Portugal Continental.

Em Vila Real de Trás-os-Montes, mais do que a cidade debruçada sobre o Corgo, interessou-nos a terra onde nasceu Miguel Torga, com o negrilho por ele tantas vezes celebrado e as ruínas de Panóias, de que eu tanto ouvira falar e agora verificava tratar-se de túmulos cavados na rocha, valiosos pela sua antiguidade e pelo testemunho que nos dão da passagem dos romanos também por estes confins do mundo.

Resolvemos voltar a Távora, para passarmos o Dia de Páscoa de cujo ritual eu já tinha saudades e ali era celebrado com muito mais devoção e simbolismo do que na cidade. Depois do almoço típico, com anho assado, o folar bem amarelinho de ovos e açafrão natural, amassado com bom azeite das nossas oliveiras e a enorme bola de carnes que também é do vosso agrado, seguiu-se a Visita Pascal. Uma mesa primorosamente enfeitada, oferecia vários mimos, entre eles bolos de azeite e vinho generoso (ou do Porto, como erradamente se nomeia), amêndoas cobertas e, além da côngrua, posta a um canto para depois ser entregue ao sacristão, a tradicional laranja onde se cravava a moeda de cinco escudos destinados ao peditório. Assim se recebia o prior que, precedido pela Cruz, entrava na sala, abençoava a família, convidados e vizinhos presentes e, provado o vinho com algum pequeno bolo, se retirava para, em breve, dar por concluído o compasso, já que a casa da minha irmã ficava no fundo do povo e era uma das últimas, antes de Casaltelo.

Desta vez demorámos pouco tempo em Távora, mas ainda fomos visitar as obras, um assombro para aquelas gentes isoladas do mundo, da barragem no rio, quase defronte de Tabuaço. Deslocámo-nos ao Convento de S. Pedro das Águias, perdido nos ermos e com a particularidade de ter a porta principal voltada para a encosta rochosa.

No caminho de regresso, depois de nos determos um pouco no local onde teve lugar a Batalha de Aljubarrota, cujo significado não deixámos de assinalar, passámos pelo Buçaco, com o seu Palácio sumptuoso que era, e é, um hotel de cinco estrelas num parque com um lago e um jardim geometricamente talhado à francesa e, num recanto aprazível da frondosa mata, fizemos um regalado piquenique com as deliciosas sanduíches de pão caseiro e presunto curado no ponto, com que tínhamos sido abastecidos pela minha irmã. Tínhamos também queijo, fruta e sumos, estes últimos comprados por ali perto. O tempo estava muito agradável e, apesar de cansados, ainda fomos tentados por uma rápida visita a Conimbriga, onde, o que mais maravilhou os nossos filhos foram os magníficos mosaicos romanos, especialmente aquele que nos mostra, no centro da enorme e trabalhada moldura, um elegante cavalo, montado por uma personagem, certamente nobre e levado à arreata por um plebeu.

E era tempo de voltar a Portalegre, para os Bisavós matarem saudades nossas e gozarmos, juntos, os já poucos dias daquelas férias fantásticas, cujo relato teve de ser muito resumido.

Depois, os rapazes regressaram ao Colégio, onde o Quim nos surpreendeu, uns meses mais tarde, com um exame da 4ª classe que lhe mereceu um aprovado com distinção. O Zé passou, com muito boas notas, para o 2º ano do Ciclo Preparatório, que seria, agora, o 6ºano do Ensino Básico.

Entretanto, além das visitas regulares a Tondela, continuaram os passeios do Vôvô e meus, por vezes acompanhados pelos Bisavós, sempre ansiosos por mudarem de ares. O Bisavô tinha um grupo de amigos de tertúlia, por ele chamados catuas, palavra do dialecto timorense para dizer idosos. Quando saía connosco, tinha de os avisar e, no regresso, ficava obrigado a pagar-lhes os cafés, o que ele fazia com muito gosto, enquanto contava as peripécias dos passeios. Dava gosto vê-lo, logo de manhã cedo, de chapéu na mão, ansioso pela largada.

Mas basta, por hoje. Beijinhos da Vóvó.

 

                                                 1971

       Os vossos pais em Guimarães com o nosso AUDI

e juntos ao monumento a Gago Coutinho e Sacadura Cabral

 

 

 

publicado por clay às 10:53 | link do post | comentar | ver comentários (2) | favorito
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