Meus queridos Netos:
Na minha última carta relatava-vos como tinha sido a minha estreia, na antiga colónia de Angola. Como então vos contei, ia eu a caminho de uma localidade chamada Pedra do Feitiço, de muito má fama, segundo um livro do escritor Ferreira da Costa com aquele título, subindo o gigantesco Rio Zaire, numa pequena embarcação super carregada de mercadorias destinadas a um tal senhor Francisco que tinha uma loja lá.
Então, eu e o Neves procuramos no barquinho um assento, um saco de fuba para cada um. À frente, acocorado, ia um dos tripulantes. Junto à máquina, por baixo do toldo, o segundo tripulante. De pé, equilibrando-se em cima de um tambor de 200 litros, o nosso “Imediato”, fumando uma grande cachimbada!
Alfredo Camba, era o nome dele. Camba em Kimbudu quer dizer amigo. Veio de Luanda trabalhar para a região dos Mussurongos, teve várias ocupações, vários patrões, até que se dedicou à navegação do rio, há mais de vinte anos, pelo que poucos conheciam os segredos do Grande Rio como ele. Segredos esses que eram muitos, como vim depois a descobrir…
Começámos a subi-lo quase sempre à vista da margem angolana, onde as águas pareciam mais serenas, ao contrário do que víamos acontecer ao largo, onde elas corriam em forte torrente rumo ao mar. De tempos a tempos Camba, do alto do seu pedestal, deixava escapar uma ordem, que mais parecia um ininteligível grunhido, prontamente acatada pelo encoberto homem da máquina que também era o homem do leme. E era assim que o barco mudava de direcção, ora para a esquerda, distanciando-se da margem, ora para a direita, aproximando-se dela, mas sempre em direcção a montante. E o homem do leme, na posição em que se encontrava, nada podia ver, julgo eu, guiando-se apenas pelos urros do Camba que não deviam ser assim tão ininteligíveis como eu supunha.
A margem angolana do Zaire, junto à sua desembocadura, foi para mim um dos espectáculos da Natureza mais estupendos, belos e até misteriosos que eu vi. Era uma mancha verde, imponente, de mangues, formando mangais cerrados. De tantos em tantos metros, abria-se entre o mangal um canal profundo e escuro em direcção à terra firme, às vezes ainda distante. Como mais tarde viria a verificar, numa aventurosa viagem de piroga que fiz, esses canais juntavam-se a outros no interior do mangal, formando verdadeiros labirintos, que os habitantes das margens percorriam em pirogas, e só eles, porque quem os não conhecesse bem dificilmente conseguiria sair do labirinto, onde só se vislumbrava, em cima, o céu, e dos lados, verdura sem fim. E havia ainda a bicharada que a povoava, desde jacarés, cobras, aranhas venenosas, peixes variados e até aves de rapina. O mangue é um grande arbusto aquático, formando extensos mangais. É um ecossistema costeiro, de transição entre os ambientes terrestres e marinho, característico de regiões tropicais e subtropicais, com uma vantagem ecológica: ajudam a purificar as águas.
E, serpenteando, conforme as conveniências da rota escolhida pelo Camba, lá continuávamos a subir o rio. Mas agora com mais dificuldade, exigindo maior esforço ao fraco motor da embarcação. A corrente, à medida que avançávamos, tornava-se mais forte, de tal maneira que o barco por vezes parecia não sair do mesmo local. Era o efeito da maré-baixa. Esta, embora estivéssemos já a alguns quilómetros do oceano, fazia-se sentir, deixando caminho livre à forte expansão das águas do imenso rio, rumo ao mar. E de tal forma era a sua força, que elas iriam avançar pelo mar dentro várias milhas, facto denunciado pela cor barrenta da água, aos que nela navegassem ao largo da costa.
Mas Camba e seus ajudantes mantinham-se calmos, como se tudo estivesse a correr na maior das normalidades. Eu e o Neves assistíamos a tudo com a máxima confiança na experiente tripulação, apenas nos queixando das nossas posições incómodas, sentados há várias horas nas rijas sacas de fuba. Nem espaço havia para podermos, em breves momentos, desentorpecer as pernas. Mas que importava isso, se ambos éramos muito jovens e sedentos de boas aventuras?!
A dada altura, vimos a montante, uma imenso vulto avançar em nossa direcção. O que seria? Passado um bocado vimos que era um enorme navio, potente e muito rápido, que, ajudado pela forte correnteza, passou por nós a menos de cem metros, a toda a velocidade, mas a tempo de vermos que era um lindo paquete de passageiros, de cor cinzenta, com lindas moças na amurada contemplando os mangais. E havia festa a bordo, pois deu-nos tempo de ouvir uma banda de música e gritos de alegria. Era um navio belga que vinha de Matadi, um porto importante do Rio Zaire muito mais acima, a caminho da Bélgica, com funcionários e suas famílias que tinham terminado as suas comissões de serviço no Congo Belga. Daí a festa e a alegria que ia a bordo e que, naquele momento, muito invejámos!
Mas o nosso cruzamento com o paquete estava agora a criar-nos fortes problemas. O enorme navio belga agitou as águas do rio, e depressa chegaram até nós muitas ondas que faziam com que o nosso gasolina parecesse uma casca de noz balouçando perigosamente com a sua carga mal amanhada. Um dos tambores de 200 litros rolou e como estava vazio, desapareceu pelo rio abaixo como uma bóia. Alguns sacos de fuba mudaram de posição o que não foi nada bom para os nossos glúteos, já bastante massacrados! Mas os três homens da tripulação continuaram serenos o que nos serenou também.
O mangal começou a ficar para trás. Agora as margens eram planas, com vegetação rasteira prolongando-se até ao horizonte, sem vestígios de presença humana mas, de quando em vez, víamos alguns veados e até uma pacassa (espécie de boi selvagem) pastando tranquilamente. A outra margem, a do Congo Belga, começava agora a ficar mais visível, pois o rio, à medida que nos afastávamos da sua foz, ia ficando mais estreito e com mais forte corrente. O nosso barquito lutava cada vez com maior dificuldade. Então Camba disse-me que não era só pela força da corrente que tal sucedia, mas pela carga excessiva que levava, o que fazia com que o tubo de escape do motor viesse quase sempre mergulhado na água, dificultando o seu funcionamento, facto que certos engasgos no ruído do motor já tinham denunciado. A noite iria cair rapidamente como acontece nos trópicos, teríamos percorrido, quanto muito, apenas metade do percurso e a embarcação quase não se movia. Começámos a ficar inquietos, eu e o Neves, mas a calma e certa passividade dos três angolanos sossegavam-nos.
Teria sido escolhida a rota certa? Era a pergunta que me vinha ao pensamento. Sim, sem dúvida, como posteriormente se confirmou. O problema residia noutros factores: a maré-baixa, a forte corrente daí resultante, a reduzida potência do motor do gasolina e, principalmente, a carga excessiva que transportávamos. Vimos passar o grande paquete de que falo atrás, algumas embarcações de grande porte e até uma pesada grua de desassoreamento. Se nos tivéssemos metido na rota deles, teríamos sido inexoravelmente arrastados para o mar. O gigante Rio Zaire tinha de facto os seus segredos e estes eram conhecidos, nas suas mansas margens, pelos habitantes locais, que as sulcavam nas suas pirogas com um à vontade de séculos, e, longe das margens, por navios de grande porte, graças a estudos hidrográficos realizados com o auxílio das técnicas mais modernas.
Cismando sobre este tema, pensei em Diogo Cão e nas nossas caravelas de antanho que o subiram muito para lá donde nós estávamos, lutando certamente com grandes dificuldades, no distante século XV. Como se sabe, Diogo Cão subiu este rio, então completamente desconhecido, até lhe aparecer um obstáculo intransponível a cerca de 150 quilómetros da foz, as célebres Pedras de Ielala, onde gravaram a seguinte inscrição: «Aqui chegaram os navios do esclarecido rei Dom Joam o Segundo de Portugal D.º Campº Anes pº da Costa». Certas fontes afirmam que venceram o rio e chegaram até aquele local à força de remos! De qualquer forma grandes e intrépidos eram os nossos navegadores daquela época!
A Pedra de Ialala
Estava eu cogitando sobre tais feitos do passado quando, abruptamente, uma forte sacudidela do gasolina me fez voltar ao presente. Tínhamos acabado de encalhar num banco de areia, já a noite caía, espalhando negrume por toda a volta e nas nossas almas também!
E agora, como sair daquela situação? Os tambores vazios de 200 litros rolaram ruidosamente uns contra os outros, ficando o Neves entalado entre os mesmos. Ele, que sempre se mostrou muito assustado com tudo, gritou: “o barco vai afundar-se e nós vamos morrer todos aqui, meu Deus”. Confesso que também fiquei apreensivo, chegando a pensar que os ditos tambores seriam a nossa tábua de salvação, servindo-nos de bóias. Mas afastei logo a ideia por impraticável e perigosa.
Mas existia o Camba (amigo)! “Camba, o que foi isto?”. “Senhor, a maré ficou tão vazia que gasolina encalhou. Vamos esperar até maré ficar cheia”. Dito isto, com a maior displicência lançou uma pequena âncora à água, entalou o cachimbo na cintura e deitou-se sobre a carga, cobrindo-se com uma manta. Foi a primeira vez que o vi sem ser de pé! Os outros dois seguiram-lhe o exemplo, depois do maquinista ter desligado o motor e nós, eu e Neves, que remédio, pensámos fazer o mesmo.
A noite estava cada vez mais que escura. Ao longe, na margem do Congo-belga, uma pequena luz tremeluzia e nada mais. O silêncio, agora, sem o irritante ruído do motor, no princípio pareceu-nos estranho mas não tardou muito a ouvirmos sons ainda mais estranhos. O que mais nos inquietava era um resfolegar constante, umas vezes ao largo do rio, outras mais próximo, do lado da nossa margem. O calor do dia transformou-se e começámos a sentir frio que vinha não se sabia de onde. Começámos a ser massacrados por nuvens de vorazes mosquitos Às apalpadelas demos com um fardo mais macio que abrimos ansiosamente e, céus, eram mantas que se destinavam às prateleiras da loja do Sr. Francisco mas que agora, providencialmente, nos iam defender do frio e, ainda mais importante, dos malditos mosquitos. Então, confiantes no Camba, lá nos recostámos o melhor possível sobre a carga, enrolados nas mantas.
Dormir? nem pensar. O Neves não parava de se lamentar, “vamos morrer, vamos morrer” tive de o mandar calar várias vezes. Mas o pior era os sons estranhos e muito fortes que se ouviam e que me inquietavam também. A dada altura tive a impressão de que algo roçara no nosso barco e que este se tinha inclinado ligeiramente para um dos lados. Agora é que fiquei deveras assustado...
Meus queridos, esta carta também já vai longa e o resto da aventura terá de ficar para a próxima, para não vos cansar muito.
Até breve! Beijinhos do vosso Vôvô