Nunca pensei que os "olhos do meu coração, no dizer de S. Paulo, revelassem pormenores por mim julgados completamente esquecidos...
Quinta-feira, 29.01.09

 (À memória de meu Irmão Alfredo)

 

Até que o fio extremo
que nos prende à vida
já não vibra,
fica bambo, indiferente
e o caminho se abre ao assédio final.

 

E é então que Ela chega.
O ar enche-se de presságios,
todos os signos indecifráveis
se tornam claros e nítidos,
a ameaça difusa toma forma
e a Inominada exige
sua identidade unívoca e fatal.

 

Aproximam-se as Parcas
e uma delas
- uma só e a mais implacável –
corta o fio.

 

Mas já os nossos lábios,
cerrados para sempre e arrefecidos,
se apossaram da chave da metáfora
e só resta o silêncio como herança.

 
Lisboa, 24 de Maio de 1978
Clementina Relvas

 

publicado por clay às 17:23 | link do post | comentar | favorito

 

Meus queridos netos:


Já vinha de longe esta minha convicção de que a vida é uma teia, não como a de Penélope, para fazer e desfazer na tentativa de enganar o tempo, mas para tecer continuamente, sem interrupções ou desânimos, buscando em cada fio, em cada pedaço imaginado, a motivação para continuar.


Foi assim que ultrapassámos os últimos meses de 1975, já instalados em Lisboa. Não decorreram sem sobressaltos: notícias de ódios e perseguições, de retornados que, em desespero, se recusavam a sair de casa, passando o dia de pijama vestido, de hotéis de luxo transformados em centros de acolhimento onde, algumas pessoas que nunca tinham tido uma verdadeira casa cultivavam legumes nas banheiras e conviviam, à sorrelfa, com um galináceo ou similar. Depois, numa daquelas noites que fica para sempre na memória, a nossa rua encheu-se duma multidão imparável, que, ostentando faixas alusivas ao facto, vozeavam palavras de ordem sobre a morte de Franco: «Morram os fascistas», «O povo unido jamais será vencido», misturando o seu regozijo pelo desaparecimento do ditador com o ódio nacional às forças repressivas simbolizadas na PIDE e ideias muito vagas e confusas sobre uma nova ordem, fosse ela qual fosse.


Mas, apesar de tudo, a nossa teia lá ia sendo urdida sem embaraços de maior, a não ser a dor de termos em nossa casa o meu irmão Alfredo atingido irremediavelmente por um cancro na próstata, ao qual resistiu dois anos com os tratamentos e em seguida com um longo internamento no IPO. Para lhe dar assistência, a sua mulher, a tia Adelina, viera também viver connosco, o que foi bom não só para eles mas também para mim, que assim me via aliviada de quase todo o trabalho doméstico e livre para dar explicações a grupos de cinco alunos. Depois do falhanço do revolucionário «serviço cívico» que impediu, durante um ano, a entrada nas Universidades, foi criado o «ano propedêutico», acompanhado por lições na televisão, o que obrigava muitos alunos a procurarem explicadores.


O meu irmão morreu quando tínhamos programado um circuito da Itália e, na sua coragem que a doença nunca conseguiu vencer, foi ele próprio que, perante a nossa relutância de o abandonarmos naquela situação extrema, nos animou a não desistir da viagem, pois, no regresso, ele cá estaria à nossa espera. Cumpriu o prometido, mas passados poucos dias caiu em coma e partiu. Foi um choque muito grande para todos nós e que me inspirou o poema que se seguirá a esta carta.


Entretanto o tio Zé, e depois o Quim, fizeram o ano propedêutico e ingressaram na Universidade. Durante esses três anos, fizemos uma vida tranquila. Eles eram estudiosos e bem comportados, e, como  tínhamos pouco dinheiro, comprámos uma tenda que atrelávamos ao nosso belíssimo Audi, um dos poucos bens que conseguimos trazer de Angola, e, durante três anos, passámos as férias na Praia Verde, perto de Monte Gordo, gozando o belo sol do Algarve e a sã liberdade da vida em contacto com a Natureza.


Ainda fizemos um passeio a Madrid, que foi, na realidade, uma grande aventura: primeiro as dificuldades que o Vôvô teve para atravessar a grande cidade, com aquela caranguejola difícil de manobrar, em momento de grande movimento, por ruas e grandes avenidas desconhecidas, de tal forma que fomos mesmo dar ao Centro, mais propriamente às Portas del Sol. Era como se, chegados a Lisboa e quiséssemos ir ao nosso parque de Monsanto, fôssemos parar ao Rossio! Finalmente lá demos com o caminho certo que nos conduziu até ao bem apetrechado parque de campismo que ficava no lado oposto. Fizemos algumas visitas culturais e tudo correu bem até que, já no regresso, atraída por umas polposas melancias que se vendiam à beira da estrada, pedi ao Vôvô para parar. E ele lá parar parou, mas o pior foi retomar a viagem, já que, nessa altura, se apercebeu, felizmente a tempo, de que estávamos completamente sem travões. Havia ainda vários quilómetros a percorrer até chegarmos à fronteira de Vila Real de Santo António e, sem outro remédio, retomámos a marcha devagarinho, quase sempre em primeira, com todas as precauções, até chegarmos ao embarcadoiro do rio Guadiana, em Ayamonte, visto que naquele tempo ainda não existia a ponte que une os dois países. Mas aí é que foi o cabo dos trabalhos: era maré-baixa, havia uma prancha a servir de ponte muito inclinada entre a terra em cima e o barco em baixo e o patrão do barco, ignorante do que se passava connosco, a querer que o Vôvô avançasse com mais rapidez - pois havia outros carros na fila - e a falta de travões a dificultar a manobra. Mas, com muito cuidado, paciência e perícia, por que não dizê-lo, lá entrámos no barco, atravessámos o rio e… entrámos em Portugal, chegando à Praia Verde, sãos e salvos, e toca a montar a tenda, pois o cansaço físico e emocional era muito.


Ao fim de três épocas, começávamos a ficar saturados porque os filhos, além de já não demonstrarem o entusiasmo inicial que punham na montagem da tenda e outras actividades de campismo, começaram a deitar-se relativamente tarde e a passarem na cama as gloriosas manhãs de praia. O último ano de campismo foi o da entrada do Zé para Agronomia e da partida do Vôvô para os Açores, como já vos contei.


Que longa carta! Que longa teia com tantos fios!


Até breve e muitos beijinhos da Vóvó

 

publicado por clay às 15:49 | link do post | comentar | favorito
Quinta-feira, 22.01.09


Um espelho em que buscamos
o que era e já não é
ou que nunca foi, até,
e que só imaginámos.


Uma sombra fugidia
duma coisa que se quis
e que só nos fez feliz
quando já de nós fugia.

Clementina Relvas

 

publicado por clay às 00:03 | link do post | comentar | favorito
Sábado, 10.01.09

 

Meus queridos netos:


          O nosso regresso a Lisboa não foi nada do que tínhamos planeado: quando nos pareceu que o clima de guerra se adensava e quase todos os nossos amigos e conhecidos já tinham deixado Angola, trocando-a pelo Brasil, pela África do Sul e, sobretudo, pela Metrópole, não arriscando a chegada do dia da independência, que se anunciava tumultuosa, reservámos quatro bilhetes de avião para o fim do ano lectivo.


          Aconteceu, porém que, na altura das férias da Páscoa, já estava tudo tão alterado que resolvemos mandar o Tio Zé, então a frequentar o antigo quinto ano do Liceu (que corresponderia agora ao nono ano) para Portalegre, cidade em cujo Liceu frequentou o terceiro período e teve as notas mais altas da turma, o que muito surpreendeu colegas e professores, que não imaginavam o alto nível do ensino ministrado nas antigas colónias.


          Eu regressei, sozinha, mal acabou o ano lectivo e classifiquei os meus estagiários, para quem o diploma do estágio era a única via de concorrerem a um lugar num Liceu da Metrópole. A partir de certa altura, os estabelecimentos de ensino praticamente já não funcionavam e aulas houve que tiveram lugar na nossa casa.


          Eu bem gostaria de ter ficado mais algum tempo, pelo menos até assistir ao casamento da Tininha, da qual fui madrinha por procuração. Mas havia que aproveitar os bilhetes que iam ficando disponíveis e foi o Vôvô o padrinho que, contava depois, sentia a mãozinha da noiva tremer como uma ave assustada, quando se agarrou ao seu braço durante a cerimónia. E razão tinha para isso, pois já havia intensos bombardeamentos em certas zonas da cidade. Nessa noite, o Vôvô e o Tio Quim, depois do casamento, resolveram ficar em casa do Tio Alfredo, porque acharam imprudente regressar ao nosso bairro, no outro extremo da cidade, para os lados do qual o tiroteio e as explosões eram intensos, de tal forma que, no dia seguinte de manhã, quando o fizeram, o Vôvô receava encontrar a nossa casa feita em cacos. Mas, embora vissem algumas ruínas nas imediações, foi com grande alívio que a encontraram tal como a tinham deixado na véspera e ainda mais: o nosso empregado regava calmamente o jardim como se nada tivesse havido durante noite tão turbulenta! A Luísa, como foi dito numa carta anterior, já não era nossa empregada. Depois de tantos anos de exemplar serviço, o Vôvô conseguira-lhe um emprego num hotel de Luanda.


          Estava-se em meados de 1975, quase um ano e meio depois do 25 de Abril. Governava Angola um governo de coligação mas as relações entre dois partidos angolanos que dele faziam parte eram péssimas, do que resultariam, poucos anos depois, sangrentos acontecimentos, cujo prelúdio praticamente já havia começado. A independência do novo país estava marcada para Novembro.


          O Tio Quim só veio para Portugal passado um mês. Mais tarde, em Setembro, veio o Vôvô, que passou dois dias e duas noites no Aeroporto a aguardar o avião que lhe estava destinado, devido às constantes interrupções provocadas por breves mas ininterruptas greves. Conta ele que, a dada altura, todos os mantimentos se esgotaram no restaurante da gare pelo que resolveu voltar à cidade, onde apareceu em casa do meu Irmão Alfredo, para grande surpresa dele, que o fazia já em Lisboa, deliciando-se então, depois de muitas horas de jejum, com uma boa refeição que a Tia Adelina, não obstante as carências existentes, lhe foi logo preparar. Por sorte, o carro dos Serviços que tinha deixado no parque de estacionamento do Aeroporto, para que um funcionário o fosse depois buscar, ainda lá estava com a chave escondida no sítio combinado, e foi nele que fez o percurso de ida e volta no meio da grande confusão e tiros que se ouviam por toda a cidade.


          Conta ele ainda que, ao regressar ao aeroporto, constatou que um funcionário da Alfândega se entretinha a confiscar bilhetes da Lotaria Nacional premiados que certos passageiros levavam consigo pois, houve quem começasse a guardar cautelas premiadas, algumas só com a terminação, para as rebater em Portugal, porque era muito difícil transferir dinheiro e os escudos angolanos nada valiam cá. As nossas economias, em escudos angolanos, que tanto nos custaram a juntar, ficaram todas no Banco e tivemos de as deixar lá. Nos alto-falantes do Aeroporto uma voz portuguesíssima não parava de ordenar a entrega volutária dos ditos bilhetes de lotaria. O Vôvô tinha alguns e, para que não surgisse qualquer contratempo que  lhe atrasasse ainda mais o embarque, destruiu-os e atirou-os para os montes de lixo que “ornamentavam” o belo Aeroporto de Luanda. Diz ele, e com razão, que quem ficou a lucrar com o seu gesto foi a Santa Casa de Misericórdia de Lisboa. Oxalá muitos outros o tivessem feito também. Que, quando finalmente desembarcou no Aeroporto da Portela, em Lisboa, nem queria acreditar no que seus olhos casualmente viram: no meio da multidão atarantada andava o tal alfandegário português, o caçador dos bilhetes de lotaria, que, pasme-se,  tinha abandonado Luanda, antes dele, noutro avião da ponte aérea!


          Foram juntar-se a mim na casa da nossa grande amiga Celeste, que entretanto tinha ido passar férias no estrangeiro. Quando regressou, ajudou-nos a alugar um apartamento, onde fomos substituir uns amigos dela que iam viver e trabalhar para Paris. Mas, também em Lisboa, os tempos eram tão conturbados que, mal uma casa ficava vaga, era logo ilegalmente ocupada por pessoas que procuravam tirar proveito do ambiente revolucionário. Pelo sim pelo não, mal o nosso apartamento ficou desocupado, fomos logo dormir para lá, mesmo no chão, e assim procedemos até reunirmos mobílias e demais pertences, espalhados por vários sítios. Ainda tínhamos malas, amontoadas com milhares de outras, do cais da Rocha até Alcântara e por baixo da ponte, e uma delas, com discos, louças, talheres etc., já tinha sido saqueada quando, com muita dificuldade, a encontrámos. Escusado será dizer que, depois do que tínhamos abandonado em Luanda, tal perda não foi, para nós, um desgosto muito grande, com excepção, talvez, para alguns discos de vinil antigos com música e poesia do nosso agrado.


          Instalámo-nos, pois, nesse apartamento da Estrada de Benfica, espaçoso bastante para que ainda lá pudéssemos acolher o Tio Alfredo, que também acabou por vir, já muito doente, e a Tia Adelina, para ele se poder tratar no Instituto de Oncologia e, mais tarde, o Tio Ernestino, de Moçambique, como já referi numa carta anterior. Os nossos filhos matricularam-se no Liceu D. Pedro V, que ficava a cerca de meia hora de distância, a pé, da nossa casa e aí fizeram com muito boas notas os estudos até entrarem na Faculdade e o Vôvô já havia regularizado a situação deles, registando-os como cidadãos portugueses, o que foi fácil (numa altura em que tudo era difícil) porque tivemos o cuidado de trazer de Angola as respectivas certidões de nascimento.


          Em Outubro, chamaram-me do Liceu Maria Amália para ir ocupar o meu lugar de professora efectiva, mas, dado o meu frágil estado de saúde e as incertezas em que então se vivia, eu já me tinha reformado e não cheguei sequer a tomar posse, deixando uma profissão que tinha escolhido por vocação e onde me tinha sentido realizada e feliz. Mas não demorou muito tempo sem eu ter arranjado um bom grupo de explicandos, ou colegas dos nossos filhos ou familiares destes. Supriram um pouco a falta que me fazia o convívio com os alunos e, claro, também permitiam aumentar o pouco dinheiro que possuíamos e mais tarde as nossas reformas, que muito rapidamente se degradaram (o Vôvô também já se tinha aposentado), e que só começaram a ser pagas quase um ano depois, felizmente com todos os retroactivos. Em 1980, valeu-nos muito o Vôvô ter sido convidado para integrar a equipa de reconstrução, criada nos Açores, para acudir aos enormes estragos causados pelo terramoto que sacudiu o arquipélago naquele ano, como detalhadamente vos relatei numa carta anterior.


          Com estes altos e baixos e muita fé em Deus, lá fomos vencendo, um a um, os contratempos que se nos deparavam, embora alguns tivessem deixado marcas indeléveis nos nossos corações.


          Mas não quero falar em coisas tristes, pois de tudo me compensa a felicidade de ter dois queridos netinhos como vós.


Beijinhos e até breve.

 

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