Meus queridos netos:
Um aspecto fundamental da minha vida sobre o qual ainda não vos falei é o que diz respeito à minha relação para com Deus.
Nascida numa família católica tradicional, fui baptizada com poucos meses de idade, tornando-me assim católica, apostólica, romana e, o mais maravilhoso de tudo, filha de Deus e revestida da Sua Luz. Quando cresci o suficiente para me portar bem na Igreja, ia todos os Domingos à Missa com os meus pais e irmãos. Estávamos muito longe do revolucionário Concilio do Vaticano Ii: a Missa era rezada em Latim, com o sacerdote de costas voltadas para a comunidade e a minha cultura religiosa era baseada nas homílias, em português, sobretudo quando se referiam às parábolas de Jesus, algumas das quais, como a do Bom Samaritano, fui encontrar mais tarde nos meus livros da Escola Primária.
À noite, depois da ceia, rezávamos, todos juntos, por uma enfiada de intenções: pelas almas do Purgatório, pelos doentes e moribundos, por todos os pecadores, pelos viajantes, pelos que não têm que comer ou que vestir e assim por diante. Quem orientava a oração familiar era a minha Mãe e todos a seguíamos, de pé, excepto o meu Pai que tendo em conta o seu cansaço com as lides da lavoura, tinha o privilégio de rezar sentado.
É claro quem sempre eu compreendia muito bem as intenções por que rezava: por exemplo, o que eram as Almas do Purgatório, mas nenhum de nós, as crianças, se atrevia a fazer perguntas sobre matérias tão misteriosas. E era por isso que, às vezes, saltitando de pé para pé, já cansada, lá entoava a litania, mas sem grande convicção.
O padre, então encarregado da nossa paróquia e de mais outras duas pertencentes a freguesias vizinhas, era já bastante velho e tornara-se um pouco rotineiro. Reunia nas suas missas quase todos os paroquianos – grande raspanete levava algum que faltasse… Os homens estavam separados das mulheres e crianças, mas todos eram seus amigos, tendo por ele o maior respeito.
Quando chegou a altura de fazer a minha Primeira Comunhão, depois de algumas lições de Catequese, onde se aprendia, entre outra coisas obscuras para crianças de cinco ou seis anos que os inimigos do Homem eram três: Mundo, Diabo e Carne. O meu mundo era a minha aldeia e, mais tarde, o dos mapas e dos globos escolares; o diabo sabia eu muito bem o que era: um monstro horrível, com chifres e garras afiadas, sempre pronto a castigar os meninos que se portassem mal; mas a carne? A carne é que era o busílis porque, embora raramente, o meu Pai comprava-a na feira, além de que matávamos o porco e comíamos toda carne, muitas vezes, embora nunca durante a Quaresma.
Devo dizer, no entanto, que não me perturbavam muito esses mistérios, insondáveis para mim. Mais me preocupou e fez sofrer o facto de, no dia da minha Comunhão, para a qual eu sabia que devia estar em jejum natural, me ter deixado tentar por um pequeno cacho de uvas, pois, perto do meio-dia, a fome já apertava. Depois de muitas hesitações, lá arranjei coragem para falar do pecado à minha Mãe que, antes da Missa, me levou ao Senhor Prior, para ele me dar a competente absolvição. Livre de tão grande aflição, já pude gozar, à vontade, a minha festa: o meu vestido novo, branco e o almoço melhorado desse dia.
Já com o Crisma foi mais grave: já com os meus treze ou catorze anos andava na Escola Comercial e, depois duma prelecção colectiva em que nos explicaram, sumariamente, o significado desse Sacramento, juntaram um imenso grupo de alunas que escolheram, para Madrinha, cada uma a professora de quem mais gostava e, terminada a cerimónia nunca mais se falou nisso.
E ainda mais me chocou e entristeceu o Crisma dos meus filhos: frequentavam, na altura, um Colégio interno, de orientação católica, mas nós, os Pais, só soubemos que tinham sido crismados, na cerimónia presidida pelo Bispo, quando eles nos escreveram a dizê-lo e a mandar-nos, cada um, a pagela comemorativa que lhes tinha sido oferecida.
Aí, já tinha corrido muita água sob as pontes, já tinha tido lugar o Concílio do Vaticano II, donde emanou o Catecismo da Igreja Católica e que tão grandes e importantes reformas trouxe para a Igreja Católica.
Na próxima carta, falar-vos-ei da minha caminhada de Fé, que, graças a Deus, continua.
Beijinhos dos Vóvós
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