Meus queridos netos:
Fiz em Março oitenta anos e, depois da viagem a Israel e à Jordânia de que, na devida altura, vos fiz um circunstanciado relato e que eu tinha considerado a minha última grande viagem, a fechar com «chave de oiro» as minhas reiteradas tentativas de conhecer países e gentes, neste ano dedicado à comemoração dos dois mil anos do nascimento de S. Paulo, o Apóstolo dos pagãos e meu santo predilecto, não resisti ao apelo que me chegou da minha paróquia, a de Nossa senhora do Amparo de Benfica, para refazer, sobretudo com os olhos do coração, a última viagem de S. Paulo, desde Malta até Roma.
Ao contrário de S. Paulo, tivemos à nossa disposição aviões, navios e autocarros dotados de todo o conforto mas não deixámos de, entre preces, salmos e hinos, visitar os lugares até onde o levou o seu zelo apostólico e a sua total obediência a Cristo Jesus: Não partimos de Jerusalém, nem embarcámos no antiquíssimo porto de Cesareia, não éramos prisioneiros de Roma, nem sofremos tempestades e fome, mas fomos parar a Malta, onde o Apóstolo, durante o ano 60-61, saído miraculosamente dum naufrágio, fundou a primeira comunidade cristã em terras do Ocidente.
Chegámos a La Valletta, via Roma, pelas vinte e uma e trinta e ficámos instalados no Hotel Dolmen, num quarto com três camas, mas uma casa de banho exígua. Tínhamos à nossa espera, no quarto, dois pratos de comida, que mal provámos, pois estávamos cansados e os snacks fornecidos a bordo dos aviões tinham sido suficientes para nos saciar o apetite.
Malta é um pequeno arquipélago de cinco ilhas, mas só duas verdadeiramente Importantes: Malta e Gozo. Está situado em pleno Mar Mediterrâneo e tem apenas 320 kms. de superfície. Além dum antiquíssimo passado pré- histórico, por ali passaram os fenícios, romanos, árabes, normandos,´franceses e esteve sob dominação inglesa até l964. Daí lhe advém uma mestiçagem e um encanto raros no mundo, o que, aliado á grandiosidade dos seus edifícios, `originalidade das suas muralhas, ao seu clima sempre ameno e às suas belezas naturais, faz desta terra um paraíso para férias.
La Valletta recebeu o seu nome de Jean Parisot de La Vallette,cavaleiro francês da Ordem de S. João (Hospitalários), que depois da sua heróica participação na guerra contra os turcos, na ilha de Rhodes, foi nomeado Grão-Mestre e comandou a resistência contra os Otomanos,. Embora já tivesse sido amuralhada pelos árabes no séc. IX, as várias invasões levaram a que as muralhas fossem reconstruídas e aumentadas em l565. Ameaçados pelos muçulmanos, os Cavaleiros de Malta, com a cooperação dos malteses, rodearam La Valletta e as cidades exteriores numa extensão de 45 kms de muralhas que se revelaram inexpugnáveis. Algum tempo depois deu-se a batalha de Lepanto em que os cristãos derrotaram os otomanos e o Papa deu a La Valletta o título de «ajuda dos cristãos».
Começámos a nossa visita por Rabat, (do árabe, os arrabaldes), passando por ruas e pracetas impecavelmente limpas e floridas. O nosso guia chamou-nos a atenção ,na Praça de Castela, para um imponente edifício, com a fachada em exuberante estilo barroco, com o escudo português, e que, desde 1574, serviu para albergar os cavaleiros vindos de Portugal e de Castela. Um pouco mais à frente, pudemos apreciar a estátua do Grão Mestre Manuel de Vilhena, que, além dela, tem um monumento funerário, tal como outro português ( Manuel Pinto da Fonseca), numa capela da Igreja de S. João, Co-Catedral e Oratório. Manuel de Vilhena construiu um magnífico palácio à entrada de Mdina e deu o nome ao Teatro Manoel, um dos mais antigos teatros em actividade de toda a Europa. Esta zona da cidade é constituída por ruas estreitinhas, descendo até ao mar. De todo o lado se avista a enorme cúpula da Basílica de Mosta, que não visitámos Fomos, sim, a um esplêndido miradouro, com uma vista espectacular sobre as três cidadelas no meio do mar e onde se encontra um memorial dedicado ao Marquês de Nisa que, com outros portugueses, ajudou os Malteses a expulsar o invasor francês. Ali se encontra, igualmente, uma bela escultura em bronze dos Gavroches. Com um clima tão ameno, tanta beleza a atrair o nosso olhar, apetecia ficar ali…para sempre. Gastámos algum tempo a passear no miradouro, olhando o mar em baixo, com as sua três ilhotas e os edifícios monumentais que as ocupam totalmente.
Em Rabat há a realçar a Catedral - Oratório de S. João, uma igreja barroca que impressiona pela riqueza barroca de talha em pedra e de dourados. O altar-mor é encimado por uma magnífica escultura representando o Baptismo de Cristo por S. João Baptista. Toda a cúpula é coberta por uma decoração constituída por ciclos de frescos, separados por arcos de pedra, com cenas da vida de S. João , mas também Cristo, santos e anjos. O chão da nave principal é ornamentada por 375 pedras tumulares em mosaicos, de cores e desenhos deslumbrantes. Toda a nave é um impressionante desfile de capelas laterais, qual delas a mais sumptuosa, referentes aos países que maior influência tiveram na Ordem dos Cavaleiros de Malta. Assim, na Capela de Castela, há dois monumentos funerários de grande imponência e beleza: o do Grão mestre Manuel Pinto da Fonseca, em pedra escura e pedras preciosas e com uma elegante escultura do Anjo da Fama, de mármore branco, tocando uma trombeta de metal, enquanto um Anjo mais novo, sentado, olha para o retrato do cavaleiro e apaga uma torcha, simbolizando o fim da sua vida; o monumento a D. Manuel de Vilhena mistura bronze e mármore verde, está rodeado por esculturas de anjos em bronze. Por cima do medalhão com o seu retrato doirado, está também um Anjo da Fama.
Na catedral há duas obras de Caravaggio: uma representação de S. Jerónimo e a impressionante «Degolação de S. João Baptista»: degolado como um animal, o carrasco segura-lhe a cabeça e prende-lhe as pernas para ele se não poder mexer. Ao lado esquerdo está uma rapariga segurando a bandeja em que irá transportar a cabeça do santo. É o único quadro do artista, que esteve fugido em Malta durante um ano, com a assinatura do autor, embora, na Catedral, haja ainda outra obra-prima de Caravaggio, representando S. Jerónimo. É ainda de notar um «Bota-fumeiro» de prata dourada, trabalhada, com o peso de 40 kgs e sustentado por dois anjos pendentes.
Depois de termos almoçado no Hotel Osborne , uma lasagna deliciosa, seguimos para Mdina. A passagem de S. Paulo por esta cidade dentro da cidade, está assinalada por uma catedral do séc. XII, construída pelos normandos num local onde, de acordo com a tradição, era o palácio de Publius que, segundo os Actos dos Apóstolos, aí teria acolhido S. Paulo à sua chegada a La Valletta. A Catedral medieval, que sofreu muitas modificações ao longo dos séculos, foi destruída por um terramoto em 1693 e reconstruída, em puro estilo barroco, pelo arquitecto Lorenzo Gafà.
A Igreja é, como todas aqui, de estilo barroco e tem por trás do altar-mor, uma riquíssima moldura dourada com um enorme quadro alusivo ao naufrágio de S.Paulo. O nosso prior celebrou a missa à 15h e, em seguida, fomos visitar a gruta onde S.Paulo viveu: é um espaço acanhado, em pedra tosca, clara e tem, ao fundo uma estátua de S. Paulo, em tamanho natural. Defronte da estátua há quatro lanternas acesas, em prata, artisticamente trabalhadas, a ladear uma lápide comemorativa da visita a este local do Papa João Paulo II, em 1990 (Fez três visitas a Malta). A estátua de S.Paulo, em mármore branco, é iluminada por uma caravela de prata, oferta dos Cavaleiros de Malta, que todos os anos aqui acorrem, de muitas partes do mundo, para as suas celebrações.
Ao lado da gruta há um espaço rectangular um pouco mais amplo, que já teve afrescos, quase totalmente destruídos por várias intervenções: Era uma prisão e, no tecto, a única zona deixada tosca, há vários buracos por onde os carrascos introduziam cordas e correntes para torturarem os prisioneiros.
Por todo o lado há imensas igrejas, capelas, nichos nas casas ou nas ruas, com imagens ou esculturas de santos, nomeadamente S. Francisco de Assis, Nossa Senhora, S. Paulo e muitos outros, conforme a devoção de cada um.
O mesmo verificámos quando nos dirigimos para Mdina, uma cidade que nunca foi tomada pelos muçulmanos, graças às suas imponentes muralhas. Nunca vi, em tão pouco espaço, tanta casa monumental: palácios, igrejas, casas de religiosas, todas com traça e ornamentos barrocos. Logo à entrada, depara-se-nos o Palácio Vilhena, mandado construir pelo português de que já falei e que faz parte da História de Malta. Percorremos a cidade a pé , com esforço, mas deliciados com tanta beleza e harmonia.
À saída situa-se a catedral de Mdina, dedicada a S. Paulo que, infelizmente, estava fechada.
Depois deste dia cheio de beleza e emoções, chegámos ao nosso Hotel, onde descansámos um pouco, fomos jantar e nos preparámos para dormir.
E hoje fico por aqui.
Beijinhos
Mapa de Malta e Gozo