Nunca pensei que os "olhos do meu coração, no dizer de S. Paulo, revelassem pormenores por mim julgados completamente esquecidos...
Domingo, 25.10.09

Meus queridos netos:

 

Quando nós queremos construir uma opinião sobre alguma coisa – e muito em particular sobre alguém – não nos podemos limitar a usar uma só perspectiva. Com os olhos do nosso coração, temos de ver o direito, o avesso, ou seja, saber muito bem do que estamos a falar e medir bem as palavras, pois, como diz o ditado: «Palavra fora da boca/é pedra fora da mão».

 

Antes de mais, temos o dever de não generalizar: nem toda a gente é malcriada, estúpida, criminosa ou seja lá o que for. Nem todos os portugueses são corruptos, alérgicos ao cumprimento das leis ou subsídio-dependentes. Nem todos os ingleses são snobs, como nem todos os franceses são arrogantes. Nem todos os judeus ou irlandeses são forretas, como nem todos os americanos limitam o seu conhecimento ao país onde nasceram.

 

Mas, mesmo sem generalizar, é um dever de caridade aceitar os outros como são, o que não implica seguir os seus caminhos que julgamos errados e até nos obriga, sempre que possível, à correcção fraterna: tentar afastá-los do erro com paciência, usando de palavras se não amigas pelo menos delicadas e compassivas.

 

Temos de prestar uma porfiada atenção ao lugar onde falamos e com quem: uma coisa é um desabafo em privado, na nossa casa e outra é implicar, nas nossas opiniões pessoais, amigos ou estranhos que, em casa alheia, se sentem impedidos de refutar o que ouvem, embora muito lhes desagrade. E até no desabafo em privado e com amigos, se se tratar dum segredo que nos foi confiado, temos de nos interrogar com que sensatez agimos, esperando que outros calem o que nós revelámos.

 

Antes de julgar os outros, temos de olhar para nós. E, se usarmos a medida acertada, havemos de encontrar muitos defeitos e algumas virtudes. Com a mesma medida julgaremos os outros, se ainda nos sobrar coragem para tanto. Isto em vez de nos deixarmos levar por juízos alheios, que, muitas vezes, não passam de frases vazias, imprudentes, do «falar por falar», mas que podem ferir ou trazer prejuízos pois não se trata de vozes a ecoar no deserto.

 

Desejando que estas minhas palavras vos ajudem nas relações com os outros, vossos amigos ou não, calo-me por agora para vos mandar muitos e afectuosos beijinhos da Vóvó.

 

 

publicado por clay às 01:29 | link do post | comentar | favorito
Domingo, 18.10.09

 Meus queridos netos:


Depois de o Vôvô vos transmitir, com tanta graça, a velha História da Carochinha, que também encantou a minha infância, vou tentar reciclar, para o vosso tempo, essa famosíssima criação da literatura tradicional.


Não sei se, como diz o Vôvô, a acharam pirosa mas certamente, pelo menos enquanto a liam, não se importaram com saber como é que o João Ratão casou com a Carochinha, depois do extraordinário desfile de tão patuscas personagens e das habilidades com que pretendiam arranjar noiva.


Não é mais nem menos inverosímil do que as aventuras do Harry Potter e dos seus bruxedos, nem das narrativas de dragões e de vampiros que tanto deliciam os jovens leitores deste nosso tempo.


Pois então aí vai a minha Carochinha, reciclada para os meus netos e seus amigos:

 

Para já, «Não era uma vez…». Aconteceu realmente e acontece todos os dias: ia realizar-se um casting, para escolher a personagem principal para uma telenovela, já amplamente publicitada. Como habitualmente, apresentaram-se várias candidatas, todas bonitas, embora algumas delas mais do que outras. Antes da chamada para serem avaliadas pelo júri, aguardavam todas numa sala de espera, com o coração pequenino de ansiedade e procurando, desde logo, fazer valer os seus respectivos méritos:


- Eu frequentei uma escola de dança, onde também tive aulas de representação e toda a gente dizia que eu tinha muito jeito.


- Eu já fiz um pequeno papel numa telenovela, quando ainda era criança e todos diziam que estava ali uma futura actriz.


- Eu aproveitei uma curtas férias dos meus pais, em Londres, para fazer um workshop para actuação em telenovelas.


E assim por diante…


Na mesma sala, mas fazendo grupo à parte, todos muito calados, estavam alguns rapazes entre os quais se destacava um, de porte atlético e feições perfeitas, para o qual todas olhavam, rezando que fosse aquele o escolhido para galã, pois cada uma contava vir a contracenar com ele. Feita, pelo júri, a esperada selecção, todas ficaram estarrecidas: o cobiçado rapaz fora, de facto, o escolhido mas, para sua parceira, o voto foi para uma das meninas que, na sala, se mantivera sempre em silêncio, pensando, lá para consigo:


- Todos os que me rodeiam dizem que sou bondosa e bonitinha, que tenho graça e talento, mas a verdade é que nunca pisei um palco. Também simpatizo com o Rafael, mas, se for outro o meu par, só quero é que ele seja simpático, esforçado e que ambos façamos a dupla que se espera de nós. Mas talvez seja desejar demais…


Passaram-se as semanas de ensaios, seguiu-se a longa gravação dos episódios até ao final da telenovela. E, também, o convívio da Helena com o Rafael, que se apaixonaram perdidamente e já tinham planos para casar.


Só que um dia, malfadado dia! o Rafael foi fazer uma farra com os amigos e, no regresso, entusiasmados com a potência do carro, largaram numa velocidade descontrolada e foram estatelar-se contra a guarda da estrada, batendo nela com a frente do carro e causando a morte imediata do condutor e do Rafael, que seguia a seu lado.


A telenovela foi um sucesso de audiências, mas a Helena pensou que nunca mais poderia representar qualquer outro papel, viúva, inconsolável do seu herói, no ecrã e na vida.

                                …………. 

  Enganou-se redondamente a Helena: não contou com a sua juventude, a sua beleza e energia transbordantes, nem com as voltas que o mundo dá. Passado o tempo do luto, encontrou, na Faculdade onde voltara para terminar o seu curso de Relações Internacionais, o Bruno, que levou algum tempo a conquistá-la. Casaram algum tempo depois, vindo a partilhar com ele uma longa vida cheia de aventuras e de agradáveis emoções, às vezes em países estrangeiros, para onde as suas profissões os levava e aos filhos de ambos que, entretanto, vieram afastar da sua vida toda a tristeza e toda a dor passadas, deixando apenas, lá longe, uma recordação boa de se lembrar. E atribuindo-lhe um novo papel, que ela procurou sempre desempenhar com o brilhantismo que sabia e gostava de pôr em tudo.

 

E por hoje é tudo. Beijinhos da Vóvó.

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Terça-feira, 13.10.09

Queridos netos:

 

Como vos prometi no post anterior, aqui estou a reproduzir a história da nossa carochinha, tal como ela se encontra no livrinho de que vos falei.

 

                                 História da Carochinha

Era uma vez uma carochinha muito lavada e muito bonita à sua janela.
Passa um rebanho de galos e diz um:
- Olhem a carochinha, como ela está lavada e bonita à sua janela!  Carochinha,carochinha, queres casar comigo?
- O que fazes tu?
- Sujo-te a casa e faço: cu-cu-ru-cu.
- Não te quero.
Daí a pouco passa um rebanho de carneiros e diz um:
- Olhem a carochinha, muito lavada e bonita à sua janela: Carochinha, queres casar comigo?
- O que fazes tu?
- Sujo-te a casa e faço: bé! bé!
- Não te quero.
Daí a pouco passou um ratinho, olhou para a carochinha e disse:
- Olhem a carochinha muito lavada e bonita à sua janela! Carochinha, carochinha, queres casar comigo?
- Que fazes tu?
- Varro-te a casa, lavo-te a roupa, saio contigo à missa e faço chi! chi!.
- Entra.
Entrou o ratinho, que depois de casar com a carochinha, se ficou a chamar João Ratão.
Dias depois foram ambos à missa, e na igreja disse João Ratão:
- Estou com tanta debilidade!
E a carochinha respondeu:
- Vai num instante a casa, abre o armário, tira um bocado de pão, molha uma sopa na panela e come. Aqui te espero.
Foi João Ratão, e fez o que a carochinha lhe tinha dito; quando, porém, meteu o pão na panela, ficou-lhe dentro o braço, acudiu com o outro e lá ficou também; apressou-se em apanhar os braços com a boca, e a cabeça caiu na panela, e bem assim o corpo todo do João Ratão.
Esperou a carochinha o seu João Ratão e como se demorasse, foi ela sozinha, muito envergonhada, para casa. Dirigiu-se à cozinha e quando foi dar volta ao jantar viu o corpo do marido dentro da panela. Ficou muito aflita e pôs-se a chorar por detrás da porta-
- Carochinha, porque choras tu?
- Pois não hei-de chorar! João Ratão morreu!
E a porta respondeu:
- Já que João Ratão morreu, eu parto-me.
Passou um bando de passarinhos: disse um.
- Carochinha, carochinha, porque choras tu?
- João Ratão morreu e a porta partiu-se
E os passarinhos responderam:
- E nós depenamo-nos,
Passaram umas meninas com umas cantarinhas na mão e disseram.
- Carochinha, carochinha, porque choras tu?
- Pois não hei-de chorar! João Ratão morreu, a porta partiu-se e os passarinhos depenaram-se.
E as meninas responderam:
- E nós partimos as cantarinhas,.
Passou o rei e disse:
- Carochinha, carochinha, porque choras tu?
- Pois não hei-de chorar! João Ratão morreu, a porta partiu-se, os passarinhos depenaram-se e as cantarinhas partiram-se…
- E eu corto as barbas, respondeu o rei.
Passou a rainha e disse:
. Carochinha, carochinha, porque choras tu?
- Pois não hei-de chorar! João Ratão morreu, a porta partiu-se, os passarinhos depenaram-se, as cantarinhas partiram-se e o rei cortou as barbas.
E a rainha respondeu:
- Já que o rei cortou as barbas, assento-me eu nas brasas.

 

E acabou-se a história…


Bonita, não é? Mas muito “pirosa” dirão vocês e digo eu também, agora que já estou velho e vivo numa época muito diferente. Mas antigamente era assim que as avós contavam histórias aos seus netos, que repetiam até adormecerem e os fazia sonhar com elas. Quando me ofereceram este livrinho, pulei certamente de alegria, pois naqueles tempos eram escassos os objectos para crianças, não havia a fartura de hoje e muito menos lojas especializadas que apenas vendem brinquedos, jogos, livros, eu sei lá…como as que existem em certos Centros Comerciais. E os pais e avós achavam tudo muito caro pois o dinheiro não abundava, exactamente como ainda hoje acontece em certos países atrasados como em África, por exemplo. Naquele tempo, muitos rapazes brincavam com bolas feitas com trapos que metiam em meias velhas e as meninas com bonecas, também de trapos, que as mães e avós cosiam e decoravam.

 

Mas a “História da Carochinha”, era tão popular em tempos passados, que até deu o nome ao livrinho de que falo atrás, que, apenas com oitenta páginas, publica mais sete pequenas histórias igualmente populares como a “História do João Parvo”, a “Mão do Finado”, etc e até mereceu um prefácio de Albino Forjaz de Sampaio, um conhecidíssimo e talentoso escritor falecido em 1949, embora nele se refira principalmente ao conto do “Aladino e a sua Lâmpada”, outro maravilhoso e inesquecível conto.

Os tempos são outros, mas o cinema não destronou o teatro, a televisão não acabou com o cinema, os DVD não esvaziaram as salas de cinema.

E os livros serão sempre livros, há-os bons e maus, vocês saberão escolhê-los, mas leiam livros sempre…

E assim termina a curta história dos livros que vocês vêem quando vêm cá à nossa casa.

Beijinhos do Vôvô

 

publicado por clay às 15:35 | link do post | comentar | favorito

 Hoje, excepcionalmente,  quem vos escreve é o vosso Vôvô:

 

Meus queridos netos:

Como vocês viram, o último post da Vóvó, que antecede este, refere-se a leituras, livros, etc. e as virtudes que se colhem das tarefas com eles relacionadas. Ora tal tema não me passou nada despercebido, tal como tudo quanto a Vóvó escreve no seu blog. E então, resolvi “meter a minha colher”, como popularmente se diz, pois a Vóvó não se importa que o Vôvô o faça de vez em quando. E aqui estou eu a falar-vos de livros…

 

 

Vocês já sabem que ela é uma perdida por livros, afinal com tudo que se relacione com cultura, mesmo na sua acepção mais lata. Quando viajamos por terras que ainda não conhecemos, ela, assim que vislumbra uma livraria, não resiste a entrar nela, nem que seja por momentos, mas às vezes por largo tempo saindo com livros comprados. Em Moscovo, uma vez, entrou numa livraria, só com livros em língua russa, e por lá andou algum tempo com muito interesse por tudo quanto via, mas não trouxe livro nenhum consigo, porque eram todos escritos em alfabeto cirílico...

 

Quando era mais nova, as Feiras dos Livros, que, em Lisboa, começaram por ser no Rossio, depois na Avenida da Liberdade e agora no Parque Eduardo VII, eram por ela visitadas minuciosamente, uma e mais vezes, muito concorrendo para o abastecimento da nossa hoje comum biblioteca que chegou a ter quatro mil livros, mas que tivemos de reduzir quando mudámos para a casa onde agora vivemos porque é muito mais pequena e agora somos apenas dois a viver nela e porque tem um bem precioso, que a anterior não possuía: elevadores. Os livros infantis demo-los a uma Instituição e os de menor valor artístico e intelectual foram oferecidos a várias pessoas interessadas.

 

Mesmo assim ainda hoje possuímos cerca de três mil volumes, todos catalogados, por títulos, autores, géneros e até número de páginas, numa base de dados, podendo assim ser consultados, por uma simples pesquisa, da estante e respectiva prateleira onde se encontram.

 

No tempo em que o vosso Vôvo era pequenino, não havia escola no sítio onde ele vivia, em Timor. Por isso, as primeiras letras foram-lhe ensinadas pela vossa Bisavó Inês, (lembro-me de ela escrever Ignez…) por uma cartilha então usada por todos, a Cartilha de João de Deus, o famoso educador e poeta. Lembro-me bem que a cartilha era de uma edição que tinha na capa uma gravura que representava precisamente uma mãe com o livrinho no colo, ensinando uma criança sentada a seus pés. Ora, era exactamente assim que a vossa Bisavó me ensinava a ler e com uma particularidade extraordinária: a cartilha ficava virada para ela e eu aprendi a ler, vendo as letras ao contrário! Tal hábito ficou-me para sempre e ainda hoje leio facilmente qualquer texto que esteja assim colocado, o que causava espanto a alguns colegas quando fui para o Liceu.

 

O vosso Bisavô, meu pai, também tinha vários livros, e a todos devorei. Lembro-me bem de que tinha uma colecção muito completa, de capa avermelhada, de Camilo Castelo Branco. Mas o que mais me entusiasmou na altura, foi “O Conde de Monte Cristo” de Alexandre Dumas, pai: a apaixonante história do homem que, acusado de ter roubado um pão, foi parar a uma masmorra no Castelo de If e ali conheceu o português Abade de Faria e a forma extraordinária como conseguiu evadir-se e tornar-se Conde e riquíssimo. Quando era ainda mais pequeno li e reli o "Coração" de Edmundo de Amicis; um dos seus contos, o do Marco à procura da mãe, foi recentemente um grande êxito da nossa televisão, e a "História da Carochinha e do João Ratão"?:. Estes dois livrinhos ainda hoje fazem parte da nossa Biblioteca, embora já muito velhinhos, de tão manuseados que foram.

 

 

Mais tarde, quando fui para África, levei alguns livros comigo. Ainda era solteiro, nem conhecia  a Vóvó. Na Alfândega de Lisboa, um senhor muito façanhudo, de luvas brancas, remexeu-me a mala de uma ponta à outra e verifiquei o interesse que ele pôs nos livros que levava, lendo com cuidado as lombadas de todos eles. A certa altura disse-me, para grande espanto meu, que esperasse, pois que ia chamar o doutor. Esperei largo tempo, o navio já apitava, quando ele apareceu mas só, dizendo que trazia ordens para apreender um dos livros. E retirou um volume pouco volumoso que eu ainda não tinha lido: “A Nação Una” da autoria do General Norton de Matos. E disse-me que estava com sorte porque o doutor estava de bom humor… Até hoje nunca encontrei este livro à venda, pois gostava de o ler finalmente!

 

Muito mais tarde, já casado com a Vóvó, começámos a formar a nossa Biblioteca, com centenas de volumes, frequentando com regularidade a Livraria Lello, de Luanda. Com a chegada dos acontecimentos revolucionários pós 25 de Abril, pensámos salvar o que fosse possível. Então, resolvemos fazer, com os melhores, pacotes de cinco quilos, e enviá-los pelo correio para Portalegre, para casa do vosso Bisavô.

 

Com este expedito mas caro processo, ainda conseguimos transferir muitos volumes, que o vosso Bisavô, com a falta de espaço que tinha, foi arrecadando atrás de um guarda-vestidos, posto de canto no quarto de dormir. Outros foram oferecidos a angolanos interessados e desejámos que lhes fossem muito úteis.

                                           *

Mas antes de terminar esta cartinha, não resisto à tentação de falar novamente da “História da Carochinha”. É natural que vocês já tenham ouvido estas expressões, ditas de forma depreciativa: “isso são histórias da carochinha” ou “vai lá contar histórias da carochinha a outro!” Por vezes até em discussões sobre política que ouvimos na TV…

 

E era assim tão má e desprezível a História da Carochinha?


É o que vereis na minha próxima carta.

 Beijinhos do Vôvô.                               

publicado por clay às 12:06 | link do post | comentar | favorito
Sábado, 03.10.09

Meus queridos netos:

 

Desde que aprendi a ler, sempre a leitura foi o meu prazer maior. Embora então não houvesse, como agora, numerosos autores especialmente dedicados a escrever livros infantis e juvenis, que, além de conteúdos interessantes, quer sejam mais realistas ou mais fantasiosos, têm ainda o atractivo (sobretudo os infantis), de serem extremamente apelativos, quando não de grande qualidade artística na sua apresentação gráfica.


Não vos posso dizer, com segurança, quais os livros infantis que se editavam no meu tempo; para adolescentes, lembro-me dos da Condessa de Ségur, do Coração, de Edmundo de Amicis, d’As mil e uma noites, dos livros de Max du Veuzit (que, aliás, era acusada, pelas nossas professoras de serem prejudiciais à formação moral das adolescentes, pois só alimentavam as suas fantasias, alheando-as do mundo real). O que não impediu, seu grande sucesso, não havendo praticamente nenhuma rapariga que não tivesse lido e relido, pelo menos John, o chauffeur russo, da sua autoria. Outra escritora que também foi muito popular entre as jovens desse tempo foi Odete de Saint Maurice, avó das irmãs Medeiros, filhas de António Vitorino de Almeida, sobretudo graças ao seu romance Sou uma rapariga do liceu e aos seus programas radiofónicos.


Claro que, no fim da adolescência, eram-nos recomendadas as obras de Júlio Dinis, de Almeida Garrett, de Alexandre Herculano e poetas como João de Deus, Augusto Gil, além dos poetas medievais, Gil Vicente e Camões que estudávamos no liceu. Mas a verdade é que, quem, como eu, tinha o "vício" de ler, desde sempre aproveitou os livros, poucos, de que podia dispor. À falta de livros infantis, ouvi inúmeros contos tradicionais, que a minha Mãe sabia de cor e nos contava, uma e muitas vezes, ao serão ou quando tinha algum tempo livre. Penso que a sua principal fonte de inspiração foram os Tradicionais Contos Portugueses, embora esse livro, da autoria de Teófilo Braga (escritor açoriano que também foi Presidente da República) nunca lho tenha visto nas mãos. Mas, editado em 1883, teve tão grande expansão que, mesmo nas aldeias mais remotas, contos como Os dez anõezinhos da tia Verde Água, As três cidras do Amor ou o Caldo de pedra, eram contados às crianças e muito apreciados por todos. Ou talvez nem tivessem lido o livro e se limitassem a recorrer à tradição, onde o escritor tinha ido recolhê-los.


Nestas circunstâncias e tanto quanto me recordo, as minhas primeiras leituras, antes de vir para Lisboa, limitaram-se a Os Lusíadas, a Bíblia e um livro de ambiente medieval, cuja acção, lendária, teria decorrido nos princípios do século treze, se chamava Genoveva de Brabante, o nome da heroína e que algum meu familiar tinha adquirido em fascículos. A sua influência foi tal que, ainda hoje, ao consultar o Google, encontrei várias referências a esta obra e até quem desejasse comprá-lo, para oferecer à sua bisavó.


Claro que, mais tarde, e, sobretudo, desde que comecei a frequentar o Curso de Filologia Românica, procurei ler os clássicos portugueses e estrangeiros (principalmente os franceses) e também os modernos e contemporâneos com os quais consegui constituir uma biblioteca notável, embora muitos dos livros que li me fossem emprestados, ou lidos em bibliotecas públicas.


Mas o que não posso deixar de vos dizer é que encontrei livros bons e livros maus e também que deixei alguns de parte, ou pela sua má qualidade literária, ou porque não me interessavam naquela fase da vida, ou porque tinham um conteúdo que me chocava pela crueza e, por vezes, masoquismo com que representavam a vida e frequentemente se reflectia numa linguagem grosseira a que sou decididamente "alérgica".


Daí que, aconselhando-vos a leitura como a melhor maneira de conhecer o mundo e a nós mesmos, peço-vos que, sempre que tal for possível, procureis livros próprios para a vossa idade e eviteis aqueles que nos arrastam para ambientes e circunstâncias tão degradantes, iguais (ou piores) àquelas de que vos chegam ecos pela comunicação social. É claro que tereis de viver no mundo como ele é (dividido entre o Bem e o Mal), mas espero que sempre se vos depare um caminho recto, assim como a possibilidade e a perspicácia para fazer a melhor escolha. Na vida, como nos livros, no cinema, na Internet - temas para cartas futuras.


Por agora, muitos beijinhos da Vóvó

 

 

 

 

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