Nunca pensei que os "olhos do meu coração, no dizer de S. Paulo, revelassem pormenores por mim julgados completamente esquecidos...
Quarta-feira, 27.01.10
 
                        Meus queridos netos:
                                   Para não ser tida como facciosa, resolvi começar pela transcrição das próprias palavras de Andersen: “Que transição ao entrar em Portugal vindo de Espanha! Era como sair da Idade Média para entrar no presente. Via, à minha volta, casas acolhedoras caiadas de branco, matas cercadas por sebes, campos cultivados e nas grandes estações podia-se sempre tomar qualquer refresco. Aqui haviam chegado também, como uma brisa, as comodidades dos tempos modernos da Inglaterra ou do restante mundo civilizado”. Andersen passou por Elvas, por Abrantes mas a sua verdadeira surpresa foi… Imaginem! a vila do Entroncamento! “Na estação encontrámos um hotel verdadeiramente luxuoso e moderno. Pelo menos, assim me pareceu, pois na viagem desde Madrid havia perdido o hábito de todas as comodidades. O Rei de Portugal, depois do seu regresso de Espanha, aí havia pernoitado. Tinha uma grande e bonita sala de jantar e servia boa comida e bebidas frescas. Até chá e vinho do Porto se podia tomar. Estávamos, pois, no meio da civilização”.
                                   Por volta das quatro da madrugada, foi a chegada a Lisboa e o escritor, a conselho do companheiro de viagem, foi passar o resta da noite ao Hotel Durand, perto da Rua das Flores. Como era domingo, resolveu procurar uma carruagem que o levasse à Quinta do Pinheiro, residência dos seus amigos O’Neill, a meia milha de Lisboa. E vejamos com que diferentes olhos vai observando a paisagem e as gentes portuguesas: “…Seguimos por praças e ruelas com casas de aspecto pobre, para fora de portas, entre muros em ruínas, pela estrada de Sintra. O grande aqueduto sobre o vale de Alcântara e os muitos pomares frondosos prestavam beleza aos arredores. Camponeses e camponesas montados em burros, carros chiando sob o peso das cargas, mendigos pedindo em altos gritos à borda da estrada davam-lhe animação”.
                                   A Quinta do Pinheiro, onde foi efusivamente recebido pelo seu amigo Jorge e pela mãe deste, a Senhora O’Neill, que em vão tinham esperado pela sua chegada no paquete de Bordéus, é assim descrita por Andersen: “É uma casa velha, um pouco arruinada, de dois andares, paredes cor-de-rosa, portas verdes e janelas como as da maior parte das casas antigas de Lisboa. Uma fila de estatuetas destaca-se ao longo das cornijas do telhado. No interior, as divisões são numerosas, muitas das quais estão completamente vazias ou apenas têm uma cama armada, um velho quadro ou um simples móvel. A vista estende-se por todo o redor, sobre verdes montes e vales”. E acrescenta: “As janelas do meu quarto dão “… para uma parte do vale de Alcântara, sobre o qual, de construção arrojada e grandiosa, com arcos de altura vertiginosa, se estende o grande aqueduto: os “Arcos da Águas Livres”. De tal modo este o impressionou que a descrição continua e dele fez um desenho ainda hoje existente na Casa-Museu, em Odense, sua terra natal. A casa do Pinheiro estava rodeada por um jardim murado, todo florido quando Andersen chegou e que lhe inspirou alguns poemas. Diz ele: “Na realidade, tão bem me sentia aqui que pouco ansiava por ver a grande cidade próxima”. Perto, ficava o palácio e jardins do Conde de Farrobo, com o seu teatro, bem como o magnífico Palácio do Marquês de Fronteira, que descreve entusiasticamente. Em ambos foi recebido com muita deferência e cordialidade.
                                   Lisboa deslumbra-o, contrariando todas as ideias que tinha preconcebido através de leituras e relatos: “ As ruas são agora largas e limpas; as casas confortáveis, com as paredes cobertas por azulejos brilhantes de desenhos azuis sobre branco; as portas e janelas de sacada são pintadas a verde ou a vermelho, cores que se vêem por toda a parte, mesmo nos barris dos aguadeiros. O passeio público, um jardim longo e estreito no meio da cidade é à noite iluminado a gás e aí se ouvem concertos. As árvores em flor desprendem um perfume bastante forte; é como se estivéssemos numa loja de especiarias ou numa confeitaria que preparasse e servisse gelados de baunilha”. Refere os edifícios e sítios principais: o Teatro D. Maria II, a Rua do Ouro toda tomada pelos ourives e seus “esplendores”, a Praça do Comércio “que se estende até à margem pavimentada do Tejo”, a praça Luís de Camões, preparada para receber a nova estátua do poeta (cuja obra ele conhece e exalta) e até o Hotel Bragança, de tão grande renome na época. Mas não deixa de referir alguns pormenores que, para nós, são no mínimo bastante estranhos e pitorescos: “Nas ruas principais há vida e movimento. Passam, ligeiros, cabriolés e arrastam-se, pesados, os carros de bois dos camponeses de aspecto antediluviano. Pode-se ver um leiteiro com duas ou três vacas que ordenha na rua, seguido muitas vezes dum grande vitelo com açamo de coiro, a custo extraindo a sua ração fixada de leite”.
.                                  A sua vida em Lisboa deve ter sido bem preenchida, pois privou com António Feliciano de Castilho, cuja obra admirava e com quem trocou correspondência e até foi recebido, com toda a pompa, pelo rei D. Fernando. O rei fez questão em ser ele próprio a mostrar-lhe os jardins reais, que o deixam fascinado. E é a propósito de D. Fernando que Andersen recorda os últimos tempos da História de Portugal, desde a ida de D. João Vi para o Brasil até às lutas liberais.
                 Com o aproximar do calor do Verão, mudam-se para a casa de campo que Jorge O’ Neill tem em Setúbal, o que os obriga a uma demorada e cansativa viagem. Mas, como nós também já estamos a ficar cansados desta deambulação, terei de recorrer a mais cartas para resumir estas impressões tão saborosas do escritor que nos ajudou a sonhar e a crescer com as suas deliciosas histórias.
Beijinhos, pois, e até breve.
O Aqueduto das Águas Livres desenhado por Andersen:
 

Fonte: Livro "Uma Visita em Portugal em 1866" de H.C.Andersen, traduzido por Silva Duarte

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Domingo, 24.01.10

 

                                                                                                             

                     Meus queridos netos:
 
                                                Há dias, percorrendo uma pequena feira do livro, houve um título que atraiu a minha atenção: “UMA VISITA A PORTUGAL EM 1866 – Hans Christian Andersen. Sim, sim, aquele escritor cujos contos embalaram as sestas da Cristininha, lidos por mim, em voz alta e depois, por ela própria, seduzida por aquelas fantasias, ora alegres ora melancólicas: O Polegarzinho, O Patinho Feio, O Soldadinho de Chumbo, A Pequena Sereia (que está representada por uma célebre estátua, à entrada do porto de Copenhaga) e muitos outros de igual beleza e renome. O Zezinho, que ainda só tem quatro anos, quando aprender a ler, certamente se interessará também por eles.
                                               Mas voltemos ao assunto principal da minha carta: Portugal, em 1886, visto pelo grande escritor dinamarquês, cuja fama lhe valeu ser escolhido para patrono do Dia Internacional do Livro Infanto-Juvenil, que ocorre a 2 de Abril, data do seu nascimento, em Odense, em 1805.
                                            Hans Christian Andersen conheceu, em Copenhaga, José e Jorge O’Neill, filhos do gerente comercial duma firma muito importante, a Torlades O’Neill de Lisboa e cônsul-geral da Dinamarca nesta cidade. Falando fluentemente dinamarquês, sueco, norueguês, alemão, inglês, francês, espanhol e português, quis que os filhos seguissem o seu exemplo, enviando-os primeiro para a Dinamarca, onde, durante quatro anos, conheceram o povo e a língua e, depois, para a Suécia, com idêntica finalidade. Foi durante a sua estadia em Copenhaga, em casa do Almirante Wulff, onde ficaram hospedados, que conheceram Andersen, visita habitual daquela família.
                                               Passaram alguns anos sem terem notícias uns dos outros. Para apresentar um amigo que lho pedira, Andersen escreveu uma carta de recomendação a Jorge O’Neill que, com o falecimento do pai, herdara o cargo de cônsul da Dinamarca. Assim se reataram as relações que, não tardou muito, deram lugar a um caloroso convite para visitar Portugal (Andersen era muito viajado e já tinha estado em Espanha, que nessa primeira visita, sendo jovem, o impressionou favoravelmente) e hospedar-se em casa da família O’Neill, o que aceitou com muito agrado.
                                               Como podem calcular, a viagem da Dinamarca até Portugal, nesse remoto ano de 1866, não era tarefa fácil. Passou pela Alemanha, Holanda e Bélgica, quedou-se um mês em Paris e partiu para Bordéus, onde devia apanhar um barco para Lisboa. Devido ao mau tempo no Golfo da Biscaia, o navio atrasou-se tanto e a viagem apresentava tão grandes perigos que Andersen resolveu fazer a viagem por terra. E, assim, partiu de comboio para Madrid, com uma paragem para rever a Catedral de Burgos, mas, em Espanha, tudo o desgostou. Diz ele: “Este país tão decantado não me dava agora o prazer que dele tirara da última vez. Logo ao entrar, encontrei muitos rostos sombrios e carrancudos. Em San Sebastián e em Burgos também, o pessoal do hotel era rude. Num barbeiro havia um circulo de homens de barba hirsuta e esfarrapados Tudo aí era desgostante, até mesmo os dedos do barbeiro a cheirar a alho”. A viagem continuou, com Andersen enregelado e incomodado com “o espesso fumo de maus charutos” que “empestava a carruagem”. Segundo confessa, “Na minha anterior visita, Madrid não me agradou e desta vez ainda menos. Senti-me mal disposto, deslocado e insatisfeito. Nem os quadros incomparáveis de Murillo e Velásquez conseguiram derramar luz em mim”. Como o troço de caminho de ferro que devia ligar Madrid a Lisboa, embora construído e inaugurado pelo rei, ainda não estava aberto ao público, a viagem teve de continuar numa pequena diligência “onde mal cabiam o cocheiro, o correio e dois passageiros”, por uma estrada quase intransitável, por planícies desoladas e ermas. E é assim que descreve a primeira paragem, em Talavera de la Reina: “Camponeses enxameavam já a praça do mercado, com longas capas em farripas e chapéu de aba larga que lhes dava a aparência de bandidos. Uma multidão ainda mais andrajosa de pedintes, homens e mulheres, cercou-nos diante da miserável estalagem, onde uma velha, de modo bem pouco apetecedor, nos preparou chocolate. Punham-nos literalmente as mãos em cima, puxavam-nos pelos braços e pelas pernas, para apanharem uns xelins de cobre. Era como se estivéssemos rodeados de pólipos esfarrapados”. Após uma curta paragem de uma hora, em Trujilho, para a primeira refeição quente de todo o dia, continuaram a tormentosa viagem até Mérida, onde chegaram, com a carruagem puxada por bois, cerca das quatro da madrugada e, enquanto lhes transportavam as bagagens para a estação, Andersen ainda tentou, com um companheiro de viagem, dar uma olhada às ruínas romanas da cidade mas, diz ele: “Sentia-me tão fatigado e tão pouco disposto a admirar relíquias da Antiguidade que, de mau grado e coxeando, com os olhos semi-cerrados de sono, mal vi as velhas pedras. Foi-me muito mais agradável ouvir a locomotiva resfolegar e ver o seu fumo rodopiar no ar”. E ei-los em Badajoz! “Finalmente, havia uma cidade a ver, a única verdadeiramente importante em todo o trajecto de Madrid”. Aí, repousou algumas horas até embarcar no comboio que o havia de trazer a Lisboa, onde chegaria, sempre por caminho–de  ferro, na manhã do dia seguinte.
                                               E agora, como já estamos na nossa terra, deixo para a próxima carta as impressões de Andersen sobre Portugal e despeço-me com muitos beijinhos, do Vôvô e meus… está claro.
  
Escultura de HANS CHRISTIAN ANDERSEN existente no Central  Park  da cidade de Nova Iorque (Fonte: Google)
 
 
 
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Sábado, 16.01.10
Meus queridos netos:
 
Depois daqueles dois anos felizes, a nossa vida dá, então, outra volta de 360º: o Vôvô foi o primeiro classificado num concurso para director administrativo das Obras Públicas e regressámos a Luanda, onde nos fixámos de vez, o que me permitiu ser contratada para o Liceu Salvador Correia, hoje Liceu Mutu ya Kevela.
O Liceu era um imponente quadrado com uma torre que se via de longe e uma entrada constituída por três amplas portas, encimadas por um frontão triangular, onde estava inscrito, em caracteres bem visíveis, o nome do Liceu. Lá dentro, havia amplos pátios e corredores com arcarias, para onde davam as salas de aula e outras instalações. Pintado de amarelo quase bege, tinha, nas traseiras, um amplo espaço que servia de parque de estacionamento para os carros dos professores e de campo para as brincadeiras dos alunos quando não estavam nas aulas. Situado num ponto alto da cidade, para ali convergiam, passando sobre a Baía, as brisas frescas do Atlântico, doce refrigério na época do calor, em que tinham lugar prolongados períodos de aulas. Foi, para mim, o liceu mais aprazível por onde passei.
O corpo docente, que chegou a ter cerca de centena e meia de professores e a funcionar em três turnos, de manhã, de tarde e à noite, era muito interessado, coeso e afável, nunca me tendo eu apercebido de que entre tanta gente, alguma vez tivesse havido problemas ou zangas. Aliás, eu fazia parte dum grupo de professoras que todos os meses se reuniam, em casa duma delas ou na minha, para o chazinho e o convívio que as ocupações docentes não permitiam. Éramos bastantes, mas lembro-me, em particular, da Teresa Velhinho, da Maria da Piedade (a Piriquita) e da Maria Estefânia, que mais tarde foi vice reitora.
Os alunos? Pois como não evocar os alunos, a alma e a razão de ser do Liceu? Dum modo geral, lembro-me de que eram disciplinados, respeitadores e a maior parte interessados na aprendizagem. Eu sempre leccionei o sexto e sétimo anos, na disciplina de Português e, para completar o horário, uma turma que estava comigo do terceiro ao quinto ano, geralmente em Francês. Era essa a turma mais barulhenta: adolescentes que precisavam de interagir e aos quais, por vezes eu tinha de “meter na ordem”, sempre convicta, então como agora, de que não se pode aprender sem trabalho e concentração.
De quando em quando, havia uma situação como aquela em que, tendo eu explicado e feito repetir várias vezes, a um aluno, a definição de verbos transitivos e intransitivos, o rapazinho desabafou, pondo-se no meu lugar, com grande gáudio da turma: “Arre, que és burro!”. Eu também achei graça mas, claro, não alinhei na risota. Era tida, por todos, como uma professora muito exigente mas cheguei a dar um vinte a um aluno que veio doutro país de África e que, tendo embora algumas dificuldades no francês escrito, falava aquela língua mais desembaraçadamente do que eu. Dezanoves dei alguns, a alunos excepcionais que me calharam em sorte e dezassete, comigo, já era muito bom mesmo. Se fosse agora, com a inflação das notas por causa das vagas em certos cursos universitários, certamente que a minha tabela teria perdido alguma da sua exigência. Mas a esse respeito não posso deixar de me lembrar de certo aluno que, ao repetir, pela terceira vez, o exame do sétimo ano e apesar duma muito fraca prestação, obteve, finalmente os dez de que precisava, não só para premiar a sua persistência, mas, sobretudo, para me ver livre dele como candidato.
As minhas funções no Liceu Salvador Correia prolongaram-se até Julho de 1975, apesar de o Liceu estar frequentemente fechado, o que nos levou a mandar o Zé para Portalegre, onde, apoiado pelos Avós, concluiu, com êxito, o último período do quinto ano, com grande “pasmo” dos seus professores, que não esperavam ver chegar do “Ultramar” um aluno tão bem preparado. Eu fiquei porque, sendo professora metodóloga, tinha alunos estagiários que, sem aquela formação completa, garantia dum lugar de professor efectivo em Portugal, ficariam no desemprego.
Nesse último ano, após o 25 de Abril, ainda fiz parte, sob a orientação dum Ministro da Educação angolano e, partilhando experiências com alguns diplomados também angolanos que, do exílio, tinham regressado à sua Pátria, dum grupo que visava transformar-se em Instituto de Investigação Pedagógica. Funcionava, à noite, no próprio Ministério, mas ignoro o seu destino posterior. E também passei por uma experiência única na minha vida: ver a minha sala de aulas invadida por um grupo de estudantes munidos dum altifante para aí convocarem os colegas para uma R. G. A., a ocorrer nessa noite. Mas tudo se passou em boa ordem, não tendo eu, ao contrário doutras pessoas minhas amigas ou conhecidas, sido alvo de qualquer agravo ou falta de respeito, apesar dos tempos conturbados que já então se viviam.
Para a próxima, prometo ser mais breve, senão lá fogem os meus leitores, enfastiados de tão longos “ testamentos”.
Beijinhos e até breve.
   
 
publicado por clay às 00:37 | link do post | comentar | favorito
Sábado, 09.01.10

                                                                  

                        Meus queridos netos:
                                  
            Antes de mais, um esclarecimento: no meu tempo, havia os liceus dos alunos, onde eles iam aprender as matérias e a vida e os liceus dos professores, que ali procuravam realizar a sua vocação de mestres e de amigos, fundindo os dois num só: liceu de alunos e professores. Agora, tudo mudou e os liceus transformaram-se em escolas, (E B ou B S) e também me parece que, salvo raras excepções, o seu espírito é outro.  
          Além dessa, mais mudanças ocorreram: então, os alunos começavam os seus estudos pelos quatro anos da instrução primária. Se fossem aprovados nos exames, entravam numa escola técnica ou num liceu e ali ficavam  até fazerem o sétimo ano, que precedia a entrada no ensino universitário. Mais tarde, criaram o ciclo preparatório, que era constituído pelos dois primeiros anos do liceu, entrando-se aqui, portanto, para o segundo ciclo, o secundário, que ia do terceiro ano até ao nono. Seguiam-lhe mais dois anos, antes de lhe ter sido acrescentado um décimo segundo ano, propedêutico, isto é, indispensável àqueles que pretendessem frequentar a universidade. Pelas escolas técnicas também se podia lá chegar, mas era mais complicado e fica para outra vez.
Mas hoje quero falar-vos dos meus liceus. Sem me alongar sobre um colégio na Caparica, onde dei aulas durante o ano em que escrevi a minha tese de licenciatura e de que só recordo as madrugadoras travessias do Tejo no típico cacilheiro que, nesse tempo, ainda era frequentemente seguido por um grupo de golfinhos brincalhões e de dois colégios em Lisboa, no primeiro ano em que o Vôvô esteve a trabalhar na Ilha Terceira e de que guardo memórias pouco agradáveis, devo referir, em primeiro lugar, o Liceu Antero de Quental, em Ponta Delgada, cuja evocação desse ano de sonho, já foi assunto duma carta para vós, a que dei o título “Um ano de férias… a trabalhar” (blogs Setembro de 2007).
Depois, apesar das amizades que aí criei com colegas e alunos, da beleza da Ilha e do bom acolhimento geral, não resisti às saudades de Lisboa, onde fizera todos meus estudos e onde me esperava um lugar, prestes a vagar, de professor assistente na Faculdade de Letras. Fui colocada no Liceu Maria Amália, onde, durante os três anos que ali trabalhei, arranjei novas amigas, não só professoras mas também algumas alunas que jamais esquecerei. Foi durante esse período, em Outubro de l958 e ao fim dum curto namoro pois já nos conhecíamos bem, que casei com o Vôvô, após alguma, curta, hesitação inicial, pois teria de deixar novamente Lisboa por Angola, onde o Vôvô já tinha trabalhado durante quatro anos, o que lhe valera uma licença especial para completar a sua licenciatura, em Lisboa.
 O que mais me preocupava, é que havia fortes possibilidades de irmos viver para o interior, o que cortaria pela raiz o meu sonho, de sempre, de ser professora. Graças a Deus, as coisas tomaram outro rumo, por vezes bem doloroso: de facto, tive então o maior desgosto da minha vida com a perda do meu primeiro filho, dois dias após o seu nascimento, a que se seguiu uma funda depressão pós-parto de que me recompus, até porque, em breve, fiquei à espera de novo bebé, o Zé António. O Vôvô estava a trabalhar como Secretário no Palácio do Governo, e eu, no início do novo ano lectivo, a dar aulas no Liceu Paulo Dias de Novais.
 Quando tudo parecia estar estabilizado, fomos mandados “com armas e bagagens” para a Caála, no planalto do Huambo, a cerca de 2500 metros de altitude, onde o Zé chegou com oito dias e o Quim viria a nascer passado pouco mais dum ano. Lá fomos por via aérea, em direcção à cidade de Nova Lisboa, hoje Huambo. Naquele tempo, se bem me lembro, era um avião de apenas seis lugares, pelo que a alcofa onde o tio Zé ia, teve de ser colocada ao fundo, na cauda da pequena aeronave! Quanto ao tio Quim, também tivemos uma pequena aventura, felizmente sem consequências graves para nós. Digo para nós, porque o mesmo não posso dizer de um pobre veado que se nos atravessou na estrada, em plena noite, quando o Vôvô me transportou de urgência no nosso velho “carocha” para o Hospital de Nova Lisboa, onde o tio viria a nascer. O bicho, certamente encandeado pelos faróis do carro, deixou-se atropelar, saltando por cima do tejadilho e caindo atrás. Se tivesse embatido no pára-brisas, o caso, então, seria bem mais grave.
 A transferência do Vôvô para a Caála foi um milagre para mim, pois me permitia dar aulas no Liceu de Nova Lisboa, a vinte minutos, de carro, da nossa casa, através uma boa estrada quase toda numa longuíssima recta. Aí encontrei e substituí, na disciplina de francês, a Dorinda Agualusa, (mãe do agora célebre escritor) e outros colegas, igualmente simpáticos e colaborantes na minha contínua aprendizagem da escola real. Foram dois anos muito agradáveis, em que conquistámos bons amigos, como a Maria Fernanda e os seus tios e conhecemos aquele maravilhoso planalto, de bom clima, de que jamais esquecerei os imensos campos cobertos de cosmos de várias cores e com dálias a brotar por toda a parte e a embelezar os canteiros da Avenida, bem como, misturadas com muitas outras flores, o pequeno mas encantador jardinzinho que o Vôvô mandara fazer para mim e que precedia a entrada principal. Aí tivemos os primeiros sobressaltos da Guerra Colonial, de que também já vos falei e baptizámos, na capelinha de Nossa Senhora do Monte, primeiro o Zé e depois o Quim.
Mas aguardem, meninos, que  estas andanças  ainda vão a meio.Antes de continuar, porém, aqui ficam para os dois os muitos beijinhos dos Vóvós

                                   Liceu Maria Amália Vaz de Carvalho em Lisboa

 

 

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Sábado, 02.01.10

 

 

 

 "NATIVIDADE MÍSTICA", é um dos quadros mais famosos de Botticelli. A RTP2, neste Natal, deu-nos um belo e completo documentário sobre esta obra-prima. Sandro Botticelli foi um pintor italiano da Escola Florentina do Renascimento que viveu entre os anos  1445 e 1510. Outra das suas obras mais conhecidas é "O Nascimento de Vénus"

 

 

                         NATAL DA CIMEIRA DOS POVOS

 

I


Jesus, tão pequenino
em sua gruta!
Como hei-de ousar
pedir-Te que intervenhas
junto dos povos
que precisam de Ti,
pois se encontram em luta
permanente.
Jesus, como hei-de ousar?

 

Julgam-se poderosos,
senhores da vida e morte
dos que regem.
E não entendem
que és Tu quem determina a sua sorte
e a sorte dos que apoiam
ou perseguem.

 

Vêem-Te pobrezinho

no presépio,
sem riquezas, sem coroa,
sem arminhos.
Esquecem que és o Deus
que nos foi dado,
menino para crescer junto de nós
e connosco viver,
tal como nós
rodeado de espinhos.

 

  

II


Vinde todos, de todos os lugares

e sentai-vos à mesa da concórdia.
Olhai para os que sofrem
e morrem de pobreza,
no mundo inteiro,
aos milhares, cada dia.
Trocai o ceptro por misericórdia,
reparai no Menino
e encontrareis
o caminho da paz e da alegria.


Clementina Relvas

 

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