Meus queridos netos:
Antes de mais, um esclarecimento: no meu tempo, havia os liceus dos alunos, onde eles iam aprender as matérias e a vida e os liceus dos professores, que ali procuravam realizar a sua vocação de mestres e de amigos, fundindo os dois num só: liceu de alunos e professores. Agora, tudo mudou e os liceus transformaram-se em escolas, (E B ou B S) e também me parece que, salvo raras excepções, o seu espírito é outro.
Além dessa, mais mudanças ocorreram: então, os alunos começavam os seus estudos pelos quatro anos da instrução primária. Se fossem aprovados nos exames, entravam numa escola técnica ou num liceu e ali ficavam até fazerem o sétimo ano, que precedia a entrada no ensino universitário. Mais tarde, criaram o ciclo preparatório, que era constituído pelos dois primeiros anos do liceu, entrando-se aqui, portanto, para o segundo ciclo, o secundário, que ia do terceiro ano até ao nono. Seguiam-lhe mais dois anos, antes de lhe ter sido acrescentado um décimo segundo ano, propedêutico, isto é, indispensável àqueles que pretendessem frequentar a universidade. Pelas escolas técnicas também se podia lá chegar, mas era mais complicado e fica para outra vez.
Mas hoje quero falar-vos dos meus liceus. Sem me alongar sobre um colégio na Caparica, onde dei aulas durante o ano em que escrevi a minha tese de licenciatura e de que só recordo as madrugadoras travessias do Tejo no típico cacilheiro que, nesse tempo, ainda era frequentemente seguido por um grupo de golfinhos brincalhões e de dois colégios em Lisboa, no primeiro ano em que o Vôvô esteve a trabalhar na Ilha Terceira e de que guardo memórias pouco agradáveis, devo referir, em primeiro lugar, o Liceu Antero de Quental, em Ponta Delgada, cuja evocação desse ano de sonho, já foi assunto duma carta para vós, a que dei o título “Um ano de férias… a trabalhar” (blogs Setembro de 2007).
Depois, apesar das amizades que aí criei com colegas e alunos, da beleza da Ilha e do bom acolhimento geral, não resisti às saudades de Lisboa, onde fizera todos meus estudos e onde me esperava um lugar, prestes a vagar, de professor assistente na Faculdade de Letras. Fui colocada no Liceu Maria Amália, onde, durante os três anos que ali trabalhei, arranjei novas amigas, não só professoras mas também algumas alunas que jamais esquecerei. Foi durante esse período, em Outubro de l958 e ao fim dum curto namoro pois já nos conhecíamos bem, que casei com o Vôvô, após alguma, curta, hesitação inicial, pois teria de deixar novamente Lisboa por Angola, onde o Vôvô já tinha trabalhado durante quatro anos, o que lhe valera uma licença especial para completar a sua licenciatura, em Lisboa.
O que mais me preocupava, é que havia fortes possibilidades de irmos viver para o interior, o que cortaria pela raiz o meu sonho, de sempre, de ser professora. Graças a Deus, as coisas tomaram outro rumo, por vezes bem doloroso: de facto, tive então o maior desgosto da minha vida com a perda do meu primeiro filho, dois dias após o seu nascimento, a que se seguiu uma funda depressão pós-parto de que me recompus, até porque, em breve, fiquei à espera de novo bebé, o Zé António. O Vôvô estava a trabalhar como Secretário no Palácio do Governo, e eu, no início do novo ano lectivo, a dar aulas no Liceu Paulo Dias de Novais.
Quando tudo parecia estar estabilizado, fomos mandados “com armas e bagagens” para a Caála, no planalto do Huambo, a cerca de 2500 metros de altitude, onde o Zé chegou com oito dias e o Quim viria a nascer passado pouco mais dum ano. Lá fomos por via aérea, em direcção à cidade de Nova Lisboa, hoje Huambo. Naquele tempo, se bem me lembro, era um avião de apenas seis lugares, pelo que a alcofa onde o tio Zé ia, teve de ser colocada ao fundo, na cauda da pequena aeronave! Quanto ao tio Quim, também tivemos uma pequena aventura, felizmente sem consequências graves para nós. Digo para nós, porque o mesmo não posso dizer de um pobre veado que se nos atravessou na estrada, em plena noite, quando o Vôvô me transportou de urgência no nosso velho “carocha” para o Hospital de Nova Lisboa, onde o tio viria a nascer. O bicho, certamente encandeado pelos faróis do carro, deixou-se atropelar, saltando por cima do tejadilho e caindo atrás. Se tivesse embatido no pára-brisas, o caso, então, seria bem mais grave.
A transferência do Vôvô para a Caála foi um milagre para mim, pois me permitia dar aulas no Liceu de Nova Lisboa, a vinte minutos, de carro, da nossa casa, através uma boa estrada quase toda numa longuíssima recta. Aí encontrei e substituí, na disciplina de francês, a Dorinda Agualusa, (mãe do agora célebre escritor) e outros colegas, igualmente simpáticos e colaborantes na minha contínua aprendizagem da escola real. Foram dois anos muito agradáveis, em que conquistámos bons amigos, como a Maria Fernanda e os seus tios e conhecemos aquele maravilhoso planalto, de bom clima, de que jamais esquecerei os imensos campos cobertos de cosmos de várias cores e com dálias a brotar por toda a parte e a embelezar os canteiros da Avenida, bem como, misturadas com muitas outras flores, o pequeno mas encantador jardinzinho que o Vôvô mandara fazer para mim e que precedia a entrada principal. Aí tivemos os primeiros sobressaltos da Guerra Colonial, de que também já vos falei e baptizámos, na capelinha de Nossa Senhora do Monte, primeiro o Zé e depois o Quim.
Mas aguardem, meninos, que estas andanças ainda vão a meio.Antes de continuar, porém, aqui ficam para os dois os muitos beijinhos dos Vóvós
Liceu Maria Amália Vaz de Carvalho em Lisboa