Nunca pensei que os "olhos do meu coração, no dizer de S. Paulo, revelassem pormenores por mim julgados completamente esquecidos...
Domingo, 28.03.10

               Quando andava pelos meus trinta e cinco anos e porque sofria de incómodas dores nas omoplatas, pensava muitas vezes que se Deus me permitisse viver durante mais sete ou oito, para acompanhar a fase mais delicada do crescimento dos meus bebés, seria uma felizarda.

 

             Os anos foram passando, os meus filhos tornaram-se adultos e, quando já me aproximava dos sessenta, declarou-se-me, sem aviso prévio, um carcinoma do ovário. Fui submetida a uma histerectomia, a várias sessões de quimioterapia muito violentas e, feitos os exames adequados, foi-me dito que todo o mal tinha sido erradicado.

 

           Apesar disso, fui seguida, por mais de quinze anos, no IPO de Lisboa, sempre com diagnóstico favorável e boa qualidade de vida. Até que um dia, e porque o médico que então me acompanhava, se ia reformar, me submeteram a exames mais rigorosos e vieram a descobrir que o carcinoma tivera uma recidiva e, sem que eu sentisse qualquer sintoma, já me tinha secado um uréter e um rim. Duas operações em dois anos seguidos sem que o tumor pudesse ser erradicado, outras, várias, quimioterapias e agora, passados mais de cinco anos, continuo a fazer uma vida normal para a minha idade.

 

            Depois da primeira operação tive uma linda netinha que ajudei a criar, mais tarde um netinho que ainda não fez quatro anos, celebrei as minhas bodas de oiro de casada, continuei a viajar, mantive-me nos meus grupos de oração e de formação religiosa e aqui estou eu, ao computador, não tanto para dar o testemunho de que o cancro é, muitas vezes, uma doença crónica com a qual se pode viver e frequentemente curável, mas para reconhecer, com muita gratidão, que o tempo de Deus não é o nosso tempo. Ele virá, quando for da Sua Vontade, mas sem que eu faça a menor ideia do quando ou do como.

 

            Entretanto, todos os dias Lhe agradeço o dom da vida, procurando corresponder aos Seus planos, planos de Pai clemente e compassivo, sempre ao nosso lado para nos ajudar.

               Quando andava pelos meus trinta e cinco anos e porque sofria de incómodas dores nas omoplatas, pensava muitas vezes que se Deus me permitisse viver durante mais sete ou oito, para acompanhar a fase mais delicada do crescimento dos meus bebés, seria uma felizarda.

 

             Os anos foram passando, os meus filhos tornaram-se adultos e, quando já me aproximava dos sessenta, declarou-se-me, sem aviso prévio, um carcinoma do ovário. Fui submetida a uma histerectomia, a várias sessões de quimioterapia muito violentas e, feitos os exames adequados, foi-me dito que todo o mal tinha sido erradicado.

  

           Apesar disso, fui seguida, por mais de quinze anos, no IPO de Lisboa, sempre com diagnóstico favorável e boa qualidade de vida. Até que um dia, e porque o médico que então me acompanhava, se ia reformar, me submeteram a exames mais rigorosos e vieram a descobrir que o carcinoma tivera uma recidiva e, sem que eu sentisse qualquer sintoma, já me tinha secado um uréter e um rim. Duas operações em dois anos seguidos sem que o tumor pudesse ser erradicado, outras, várias, quimioterapias e agora, passados mais de cinco anos, continuo a fazer uma vida normal para a minha idade.

 

            Depois da primeira operação tive uma linda netinha que ajudei a criar, mais tarde um netinho que ainda não fez quatro anos, celebrei as minhas bodas de oiro de casada, continuei a viajar, mantive-me nos meus grupos de oração e de formação religiosa e aqui estou eu, ao computador, não tanto para dar o testemunho de que o cancro é, muitas vezes, uma doença crónica com a qual se pode viver e frequentemente curável, mas para reconhecer, com muita gratidão, que o tempo de Deus não é o nosso tempo. Ele virá, quando for da Sua Vontade, mas sem que eu faça a menor ideia do quando ou do como.

 

            Entretanto, todos os dias Lhe agradeço o dom da vida, procurando corresponder aos Seus planos, planos de Pai clemente e compassivo, sempre ao nosso lado para nos ajudar.

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Segunda-feira, 22.03.10

 

 

                               Meus queridos netos:

 

                                               Hoje vou usar o meu blogue para “conversar” com a Cristininha. Em Maio, ela fará quinze anos e, embora o pessimismo do texto que me ofereceu tenha muito a ver com a fase da adolescência que está a atravessar, gostaria de temperar esse pessimismo com a experiência que tenho colhido ao longo de muitos anos de vida e de oração.

 

                                               A metáfora que ela escolheu para caracterizar o mundo em que vivemos, “O CAMPO DE FUTEBOL”, foi uma ideia feliz e soube desenvolvê-la com coerência, uma linguagem rica e adequada e, sobretudo, uma capacidade de análise que não é vulgar nesta idade. Mas, vejamos:

                                               “Bom não chega. Toda a gente quer superar o seu melhor. Atingir a perfeição é o que queremos. Que bom seria, desde que a nossa meta fosse positiva, informada por valores humanos e espirituais a bem de todos os homens. S. Paulo, que depois duma juventude gasta a perseguir cruelmente os cristãos, se converteu, fez de Cristo o centro da sua vida, dando-lhe como objectivo converter pagãos através da pregação do Evangelho e, claro, do seu exemplo, diz, na Carta aos Filipenses 3, 12-: “ Não que eu já tenha alcançado a meta, ou que já seja perfeito, mas prossigo a minha carreira para ver se de algum modo a poderei alcançar, visto que já fui alcançado por Jesus Cristo: Irmãos, não penso que já a alcancei, mas uma coisa faço: esquecendo-me do que fica para trás (a referida perseguição que, como judeu zeloso da antiga Lei de Moisés, moveu aos convertidos ao cristianismo) e avançando para o que está adiante, prossigo em direcção á meta, para obter o prémio da soberana vocação de Deus em Cristo Jesus”.

 

                                               Claro que a superação de que falas é a competição desenfreada, na ânsia de alcançar bens materiais e uma boa posição na sociedade e essa, sim, só pode deixar-nos insatisfeitos, pois há sempre outros mais ricos, ou mais poderosos ou mesmo mais perfeitos do que nós.

 

                                               Tu adiantas: “Não temos equilíbrio. Não temos limites. Quem faz os limites? Quem nos impõe regras? Quem decide sobre nós?” A frase “Somos senhores de nós próprios, já não é válida”. Mas é aí que tu e muita gente se engana. Quem faz os limites é Deus ou, se não fores capaz de acreditar em Deus, a consciência moral de que todo o homem é dotado, mas que pode valorizar ou ir destruindo, pouco a pouco, com os defeitos de que noutro ponto falas, com tão grande e justificada violência: “Mentiras atrás de mentiras, histórias ocultadas, meio contadas” e o desconhecimento dos outros que nos rodeiam, com os seus problemas e aflições. Como se, e vou servir-me das tuas palavras, usássemos óculos escuros ou criássemos bolhas de água à nossa volta, para não vermos, para não nos sentirmos obrigados a partilhar.

 

                                               E então sim. Como tu tens razão! Essas pessoas não passam de ”jogadores num campo de futebol, treinados para ganhar. Para superar o inimigo. Para correr até à vitória. Passar por maus bocados. Sufocar até à exaustão. Quebrar os ossos pelo caminho e, no fim, quando já não se aguenta mais, sentar-se no banco. Ser-se trocado por um melhor, mais fresco, cheio de energia”.  “Já não prestamos”. Mas não é forçosamente assim. Há aqueles que sabem parar no momento adequado e, tendo preparado o seu futuro, continuam o seu caminho de perfeição: em cargos administrativos, como treinadores, com fundações humanitárias em que procuram realizar-se ajudando o próximo.

 

                                               Dizes que “Ninguém aprende com o passado (…) Todas as vezes se repetem as mesmas cenas. Os mesmos ódios, as mesmas ilusões”. Ora, S. Paulo aprendeu e arrepiou caminho. Outros trilharam sempre o caminho da santidade. Outros procuraram fazê-lo, levando uma vida recta, santificando-se no serviço missionário ou simplesmente humanitário. Eis aqui o desmentido às tuas generalizações: há quem se importe com os outros, há quem, com sacrifício pessoal, ajude os sem abrigo ou os que estão desamparados.

 

                                               E, quando o campo de futebol fica vazio, “a energia voa para longe, os gritos de apoio se desvanecem, a esperança no olho dos adeptos já não existe», há uma força superior que não deixa sozinho nenhum homem de boa vontade: Deus.

 

                                               Por isso, num dos seus mais recentes documentos, o Papa Bento XVI, afirmava: «O homem, sem Deus, não sabe quem é, nem para

onde vai».

                                               Beijinhos dos Vóvós que desejam ver-vos realmente felizes, no caminho de Deus.

 

 

 
                     Um campo de futebol. Fonte: Google
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Quarta-feira, 17.03.10

                 Meus queridos netos:

No último domingo de Janeiro, resolvi finalmente ir visitar o Museu Nacional do Azulejo que, “mea culpa”, ainda não conhecia, aproveitando a ocasião para ver a exposição “Casa Perfeitíssima”, dedicada à comemoração dos quinhentos anos da fundação do Mosteiro da Madre de Deus, em 1509, pela rainha D. Leonor, mulher de D. João II e irmã de D. Manuel I.

A Rainha D. Leonor foi uma figura invulgar do Renascimento, tanto do ponto de vista humanista (mecenas da cultura em geral – protectora de Gil Vicente - e das artes em particular, com especial relevo para os pintores nacionais, flamengos e italianos) como do ponto de vista religioso. Foi imbuída do espírito da Devotio Moderna, que, na esteira da Imitação de Cristo, de Tomás de Kempis, advogava um cristianismo simples e tolerante e a prática da meditação metódica, sem se afastar da ortodoxia.  

 Foi essa doutrina que procurou transmitir às sete religiosas que, após terem ajudado a fundar o Convento de Jesus, em Setúbal, segundo a Ordem Sagrada de S. Francisco, vieram criar esta pequena comunidade de clarissas colectinas de Santa Clara, tão presente na arte sacra do Mosteiro. Essa comunidade foi depois aumentada por outras religiosas e a própria Rainha D. Leonor, uma vez viúva, aí permaneceu longas temporadas, como verdadeira clarissa, embora não tenha professado para manter a sua casa e os seus rendimentos, o que lhe permitiu não só fundar e enriquecer com muitas obras de arte o Mosteiro da Madre de Deus, financiar as Capelas Imperfeitas, do Mosteiro da Batalha e o Hospital de Todos os Santos , fundar as termas das Caldas da Rainha e impulsionar, sob a orientação de D. João II, as Misericórdias, que inauguram o papel do Estado no domínio da assistência aos necessitados.

Presente na Exposição, além da Capela Particular da soberana com quatro cerâmicas de Lucca della Robia, representando os quatro evangelistas e seus símbolos e uma sala onde, além de outras obras de arte, se encontra o Livro de Horas da Rainha e uma Bíblia que lhe foi oferecida pelos reis de Castela, encontra-se também a escultura do pelicano que, segundo a lenda, não hesita em rasgar o peito para de lá tirar o alimento para os seus filhos, remetendo a um ideal de salvação – Cristo dando a vida por todos os homens – protecção, justiça e solidariedade que ainda hoje é o timbre das Misericórdias espalhadas por todo o  país.

            Revisitei, portanto, a Igreja da Madre de Deus, uma jóia da nossa arquitectura, restaurada depois do terramoto de 1755,  e que constitui um repositório notável de azulejos figurativos, a azul e branco, bem como de talha dourada, segundo os cânones barrocos Dali se passa ao Museu Nacional do Azulejo, onde se ensina o fabrico do azulejo e, em várias salas, se expõem exemplares raros e valiosíssimos deste nosso tesouro artístico, desde os princípios (árabes) até aos nossos grandes artistas contemporâneos, embora com ênfase particular nos séculos XVII e XVIII, em que essa arte atingiu, entre nós, o seu apogeu.

            Prova da humildade de tão insigne Rainha é o seu túmulo, que nem as obras mandadas executar por D. João IIi e que resultaram no imponente claustro grande, mudaram de lugar ou de aparência.

            A Cristininha que fique atenta porque, numa próxima visita a Lisboa, lá irei com ela, não para visitar a referida exposição que já terá terminado, mas o Museu Nacional do Azulejo e, sobretudo, a rica e belíssima Igreja da Madre de Deus.

            Até lá, os beijinhos dos Vóvós e… até breve.       

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Sexta-feira, 12.03.10

 

 

Meus queridos netos:

 

Este inverno tem sido muito rigoroso, com frio e chuva quase constantes e, embora já se comecem a ver, aqui e ali, algumas amendoeiras floridas, mal consigo esperar pela primavera, com as árvores a encherem os nossos olhos de flores, os jardins expondo as suas paletas de cores variadas e o sol presente em todo o lado, na ânsia de tudo transfigurar.

 

 
                             Foi essa nostalgia que me levou, no passado sábado, a visitar, com o Vôvô, a exposição internacional, patente na Fundaçâo Calouste Gulbenkian que, sob o inspirado título, “A perspectiva das coisas”, nos mostra o que de mais significativo se produziu na Europa, nos sécs. XVII e XVIII, num domínio específico da pintura: a natureza morta. Nele se aliam, inevitavelmente, a beleza e a variedade dos elementos da Natureza com o gosto e a perfeição técnica do artista, para suscitar o nosso olhar e, embora só através da imaginação, os nossos outros sentidos, especialmente o tacto, mas também o paladar. De facto, deparam-se-nos rosados pêssegos, cujo veludo da casca apetece acariciar e tão manifestamente suculentos que até nos fazem crescer água na boca; ou nozes de casca entreaberta mostrando o seu conteúdo, se não mesmo este, já solto, pronto a comer. Um dos frutos mais presentes nestas naturezas mortas são os limões, inteiros, partidos ao meio ou semi-descascados e as uvas, de bagos tão delicados e luminosos que chegamos a ter o impulso de nos aproximar e… provar, deliciarmo-nos com o seu doce néctar.
                               Mas o que verdadeiramente me tinha chamado àquela exposição foram, como já disse, os quadros de flores e foi um deslumbramento: quase toda a variedade de flores, artisticamente dispostas em jarras que também merecem uma menção, não só pela sua beleza intrínseca, como pela perfeição, quase táctil, com que estão representados os materiais de que são feitas, seja o metal, o vidro, ou uma simples cerâmica de Talavera de la Reina. Embora também me tenha impressionado uma dessas jarras, caída sobre uma mesa com as flores tombadas, num ramo que, nem por isso, deixa de ser mais fascinante.
                               Como é próprio da natureza morta, a figura humana, não está presente, excepto em duas notáveis excepções: O retrato duma personagem, emoldurado numa profusão de lindíssimas flores e outros objectos e a figura duma dona de casa que, duma janela em trompe-l’oeil, observa as peças de caça, mortas e colocadas, do lado de fora, sobre uma banqueta, deixando uma delas escorrer o seu sangue com um insuperável realismo.
                               Mas, aqui chegada, tenho de confessar que foram esses quadros de caça morta (lebres, faisões, perdizes, narcejas, patos e até pavões) bem como os dos peixes prontos a serem cozinhados, apesar de toda a mestria posta na sua representação realística, que mais me chocaram. Mas há dois que quero realçar: um conjunto de peixes e outros elementos culinários dispostos sobre uma mesa, porque, olhando com muita atenção, mal se vislumbrava um gatinho que só parecia estar prestes a lançar-se sobre aquele festim e um grande quadro, magnífico, representando um pavão vivo e um cisne morto.
                               Esta representação, bem como o interesse dado a objectos frágeis, (conchas, copos ou até pedaços de vidro) preparou-me para enfrentar o núcleo mais dramático da exposição: o núcleo IX, com o sugestivo título “Questões de vida ou de morte”. Para representar a brevidade da vida e inevitabilidade da morte, os pintores recorreram a objectos simbólicos: relógios, ampulhetas, caveiras e às próprias flores que, tendo uma tão curta duração, são um adequado símbolo da Vanitas, vaidade das vaidades, tudo é pó…, que enforma, com igual intensidade, a poesia, sobretudo a do séc. XVII.
                               Assim foi a visita, feita com tanto proveito intelectual como fruição de beleza, à Fundação Calouste Gulbenkian.
                               Beijinhos dos Vóvós
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Segunda-feira, 08.03.10

CamContador freeisetas

 

      

                A abelha dourada esvoaçava à sua volta. A flor em botão escutava o seu zumbido mas não percebia. Era ainda muito nova. Nascera naquela manhã, não tinha experiência da vida.
                Depois, com o calor, uma das suas pétalas entreabriu-se um pouco, mas a abelha continuava a implorar: zzz-zzz-zzz.
                Ao fim de algum tempo, a rosa começou a compreender, pois as rosas sabem falar vária línguas, entre elas as das abelhas. De resto, toda a gente via logo qual era o intenso desejo da abelha.
                A rosa abriu-se um pouco mais e a abelha não se poupava a esforços para atingir o seu fim: chegar ao coração da rosa. E, ao fim de algum tempo, era já um lamento o seu zumbido: z- z- z…     
Finalmente, a rosa compreendeu. Mas gostava tanto de ver as outras flores,  as borboletas e toda a vida que se agitava à sua volta, naquele dia de sol, com o regatinho a brilhar por entre os juncos, que não se decidia a abrir, generosamente, as suas pétalas. Tinha medo da morte. Amava a vida.
A abelha já quase nem tinha forças para zumbir, pedindo o pólen. Estava morta de fome e de cansaço. Mas a rosa fechava-se na sua juventude recente e no seu apego às margaridas da margem do regato, a brilhar ao sol, embora uma vozinha, dentro de si, lhe censurasse, nem ela sabia bem o quê.
Zzzzzz- zzzzz- zz- z…
Então as pétalas abriram-se espontaneamente e, quando à tardinha, um sopro de vento a desfolhou, adormeceu feliz, junto ao regato, que mansamente cantava, entre os juncos da margem, o louvor daquela vida breve mas fecunda.
                                                                                             
          Lisboa, há tantos anos que já nem sei
                          Clementina Relvas
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Sexta-feira, 05.03.10

 

Casa-Museu Frederico de Freitas - Madeira

Virgem com o menino adormecido

Pintura do Século XVII de Giovanni Baptista Salvi

 

                Meus queridos netos: 
 
                            Comecei o mês de Março com a realização dum desejo, que já receava não se concretizasse: visitar, no Palácio da Ajuda, na Galeria do Rei D. Luís I, a exposição comemorativa dos Quinhentos Anos da História da Madeira, temporariamente aberta ao público.    
                               É uma exposição muito bem organizada, mostrando, com clareza e sabedoria, alguns dos mais importantes espécimes de arte sacra dos Museus da Madeira: o Museu de Arte Sacra do Funchal, instalado no antigo Paço Episcopal, o Museu da Quinta das Cruzes e a Casa-Museu Frederico de Freitas, antigas residências senhoriais adaptadas à mostra de obras de arte.
 
                               Ao entrar na Galeria, chamou-me logo a atenção uma pequena pintura representando três rostos iguais, vistos de frente, e cujo misterioso significado, apesar da pesquisa na Internet, não consegui descobrir. Tem por título O Mensageiro e talvez seja uma representação, muito original, da Santíssima Trindade. Será? E também um S. Sebastião em pedra de ançã, muito mutilado, dos inícios do séc. XVI.
 
                               Nesta primeira sala, integrada no “ciclo do açúcar”, há também exemplares de cones onde se moldavam os pães de açúcar que, no século XVI, eram exportados para outros países, até que, com o reinado dos Filipes e a invasão, por potências estrangeiras, dos nossos mares essa rentável indústria entrou em decadência. Foi, no entanto, da Ilha da Madeira que saiu a tecnologia açucareira para S. Tomé, as Antilhas e o próprio Brasil que, mais tarde, ia ser o abastecedor da indústria de doçaria e de frutos cristalizados. O açúcar do Brasil vinha dentro de caixas, feitas de preciosas madeiras da Mata Atlântica e as enormes tábuas com que se faziam essas caixas, foram um material de excepção na mão dos carpinteiros locais, que, com elas, construíram aparadores que ficaram conhecidos pelo nome de caixa de açúcar. Provenientes do Museu da Quinta das Cruzes, podemos apreciar alguns desses móveis, embora muitos tenham ido para a Flandres, região com que a Madeira teve muitos e lucrativos negócios.
 
É essa a principal explicação para a presença, nesta mostra, de vários e magníficos exemplares de arte flamenga ou nela inspirados, como o encontro de Santa Ana e S. Joaquim defronte da Porta Dourada ou o imponente S. Nicolau, bispo de Mira e que ilustra a capa tanto do folheto como do valioso catálogo da Exposição. Nela encontramos quadros inesquecíveis, como uma Natividade de inspiração rafaelita, com uma Nossa Senhora de admirável beleza, S. José e claro, o Menino Jesus, todos rodeados por anjos encantadores. Também me cativou vivamente um quadro onde o Menino Jesus está, adormecido, ao colo de Nossa Senhora, o Martírio de Santa Úrsula e das Onze Mil Virgens, as muito impressivas representações de S. Pedro, S. Paulo, S. Tiago, S. Bento. E há, também, alguns notáveis exemplares de pintura social: um retrato, pintado talvez na Flandres, no séc. XVII, do 3º Marquês de Castelo Rodrigo, bem como uma cena de taberna, de inspiração holandesa. Da Quinta das Cruzes veio ainda uma notável colecção de pequenos quadros (pinturas e aguarelas), representando paisagens, costumes e trajes da Madeira do séc. XIX, de quando já imperava o ciclo do turismo.
 
                               Impressionante, também, é a beleza das alfaias em prata, de que sobressai, pelo seu tamanho e esmero artístico, uma urna da ourivesaria de Lisboa, do séc. XVIII, encimada por um magnífico Agnus Dei e o Seu estandarte. Mas há ainda candelabros notáveis, ou melhor, os enormes anjos que os empunhavam e duas cruzes processionais, uma delas oferecida pelo rei D. Manuel I à Sé do Funchal.
                               Claro que todas estas obras de arte e muitas outras que não me é possível enumerar, não se encontram assim, a esmo, como nesta minha descrição: acompanham os ciclos de desenvolvimento da Ilha. Depois do ciclo do açúcar de que falei logo de início, veio o ciclo do vinho, especialmente do vinho generoso. A casta mais apreciada era e é a malvazia, assim chamada por ter tido origem, tanto quanto se sabe, em Napoli de Malvazia, ainda na Idade Média. Tendo-se perdido aí, foram os madeirenses buscar os vidonhos à Ilha de Creta e dela fizeram um vinho de renome mundial. Exportado para muitos países do Mundo, desde a Inglaterra, à América e à Rússia, é citado por autores célebres como Shakespeare e Tolstoi, em livros imorredoiros.
                               Neste ciclo priveligiam-se as relações com a Inglaterra e a França e daí a presença de mobiliário proveniente destes países, como cadeiras de braços, escrivaninhas, uma mesa de estrado, etc. Mas não faltam porcelanas Ming, um cofre goês, feito de tartaruga, madrepérola e prata e até azulejos de Sevilha, trazidos nos barcos que faziam carreira para Acapulco.
                               Sobretudo no séc. XIX, deu-se um grande incremento do turismo: atraídos pelo clima ameno e discutíveis qualidades terapêuticas das águas madeirenses, estiveram na Ilha célebres personagens da sociedade europeia, entre as quais a Imperatriz Elisabeth da Áustria, que já no meu tempo se tornou muito popular. Era a personagem romântica Sissi, o apelido por que era conhecida, interpretada por Romy Schneider. E, já no séc. XX, além do crescente turismo de massas, passou muitas temporadas no Hotel Reid’s, o famoso herói da Segunda Guerra Mundial, Winston Churchill, que na Madeira encontrou, como muitos outros viajantes, inspiração para a sua pintura e o bem merecido descanso para todas as canseiras passadas.
                               Foi o terceiro ciclo do desenvolvimento madeirense, que lhe deu renome mundial pela beleza natural das paisagens, assim como pela afabilidade e alegria das suas gentes. Este ciclo, agora tão dramaticamente marcado pela terrível catástrofe que já referi no meu anterior blogue, em breve retomará o seu esplendor como o merecem os seus esforçados habitantes.
                               Beijinhos, incontáveis, dos Vóvós
 
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Segunda-feira, 01.03.10

  

Estrelícias - Flor abundante na Madeira

 

Meus queridos netos:

 

Ainda há tão pouco tempo lamentava, neste mesmo espaço, a tragédia que quase aniquilou o Haiti, onde tantas pessoas perderam a vida, levadas por um sismo devastador que encheu de horror e compaixão, traduzida numa imensa onda de solidariedade, gente de todos os cantos do mundo e eis que, no fim da semana passada, a desgraça veio bater à nossa porta: chuvas diluvianas abateram-se sobre a Ilha da Madeira, transformando, em cerca de uma hora, aquele paraíso de vegetação luxuriante, hotéis de luxo, bonitas moradias e um povo alegre e acolhedor, num caos de lama e de lágrimas.


De facto, para quem, como o Vôvô e eu, conhecia a beleza daquele autêntico presépio, com o casario a trepar pelas encostas, a sua incomparável costa marítima, pontuada por tantas povoações airosas, floridas e impecavelmente cuidadas, a sua floresta de laurissilva, já classificada como património da Humanidade, a variedade de frutos e de flores, em grande parte exóticos, como que a estabelecer a ponte entre o Continente e as terras de África, era quase insuportável ver aquelas avalanches de lama e enormes pedras, precipitando-se das terras altas em direcção à cidade, fazendo transbordar as ribeiras, inundando casas e ruas num autêntico dilúvio inesperado e dramático.


Viam-se estradas subitamente aluídas, carros a serem arrastados pela corrente imparável que se erguia, aqui e ali, em altas vagas, fazendo fugir, aterrorizadas, as pessoas apanhadas desprevenidas ou então, cheios de enormes pedras, com os vidros estilhaçados e as carroçarias reduzidas a sucata, rodeados por um mar de lama e de destroços. Não se podia acreditar! Mais parecia um filme-catástrofe mas, infelizmente, tudo era bem real.

 

 Viam-se pessoas, despojadas de todos os seus bens, lamentarem não tanto os prejuízos sofridos como os familiares ou amigos a que a catástrofe tinha tirado a vida ou se encontravam desaparecidos, com poucas probabilidades de virem a ser salvos. Pelo menos duas famílias tinham perdido sete dos seus oito membros…


Mas, sempre no meio destas calamidades há manifestações de que o homem, no fundo de si mesmo, guarda um grande tesouro de bondade: de solidariedade, de compaixão e até de heroísmo como aquele bombeiro voluntário que, depois de, com muito custo, ter conseguido pôr a salvo cinco familiares, não pôde ficar indiferente aos pedidos de socorro duma vizinha. Sabendo bem o perigo que corria, voltou atrás para a ajudar e ambos foram engolidos pela enxurrada. Foi hoje a enterrar. Um herói do nosso tempo e da vida quotidiana.
Isto para não falar dos inúmeros apoios que têm chegado de todo o lado ao quartel do exército que foi o primeiro refúgio para os que tudo perderam e aí acharam um tecto, refeições quentes, roupas e carinho.


Milionários dispuseram-se a fazer grandes doações para a reparação dos estragos, pessoas modestas retiraram alguns euros do pouco que tinham para os seus gastos e, pasme-se! até os políticos que há poucos dias se “engalfinhavam”para retirar ao orçamento da Madeira uns milhões que achavam exagerados, se deslocaram ao local da tragédia e…fizeram as pazes.


E ele há coisas! Então não é que um chorudo Totoloto saiu, inteirinho, a alguém que, exactamente nesse infausto dia, tinha registado o seu boletim numa tabacaria da Madeira? Esperemos que, também essa pessoa, se disponha a partilhar a sua boa sorte com as vítimas de tão impressionante catástrofe.


Beijinhos da Vóvó e do Vôvô


24/02/2010

 


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