Nunca pensei que os "olhos do meu coração, no dizer de S. Paulo, revelassem pormenores por mim julgados completamente esquecidos...
Sexta-feira, 12.03.10

 

 

Meus queridos netos:

 

Este inverno tem sido muito rigoroso, com frio e chuva quase constantes e, embora já se comecem a ver, aqui e ali, algumas amendoeiras floridas, mal consigo esperar pela primavera, com as árvores a encherem os nossos olhos de flores, os jardins expondo as suas paletas de cores variadas e o sol presente em todo o lado, na ânsia de tudo transfigurar.

 

 
                             Foi essa nostalgia que me levou, no passado sábado, a visitar, com o Vôvô, a exposição internacional, patente na Fundaçâo Calouste Gulbenkian que, sob o inspirado título, “A perspectiva das coisas”, nos mostra o que de mais significativo se produziu na Europa, nos sécs. XVII e XVIII, num domínio específico da pintura: a natureza morta. Nele se aliam, inevitavelmente, a beleza e a variedade dos elementos da Natureza com o gosto e a perfeição técnica do artista, para suscitar o nosso olhar e, embora só através da imaginação, os nossos outros sentidos, especialmente o tacto, mas também o paladar. De facto, deparam-se-nos rosados pêssegos, cujo veludo da casca apetece acariciar e tão manifestamente suculentos que até nos fazem crescer água na boca; ou nozes de casca entreaberta mostrando o seu conteúdo, se não mesmo este, já solto, pronto a comer. Um dos frutos mais presentes nestas naturezas mortas são os limões, inteiros, partidos ao meio ou semi-descascados e as uvas, de bagos tão delicados e luminosos que chegamos a ter o impulso de nos aproximar e… provar, deliciarmo-nos com o seu doce néctar.
                               Mas o que verdadeiramente me tinha chamado àquela exposição foram, como já disse, os quadros de flores e foi um deslumbramento: quase toda a variedade de flores, artisticamente dispostas em jarras que também merecem uma menção, não só pela sua beleza intrínseca, como pela perfeição, quase táctil, com que estão representados os materiais de que são feitas, seja o metal, o vidro, ou uma simples cerâmica de Talavera de la Reina. Embora também me tenha impressionado uma dessas jarras, caída sobre uma mesa com as flores tombadas, num ramo que, nem por isso, deixa de ser mais fascinante.
                               Como é próprio da natureza morta, a figura humana, não está presente, excepto em duas notáveis excepções: O retrato duma personagem, emoldurado numa profusão de lindíssimas flores e outros objectos e a figura duma dona de casa que, duma janela em trompe-l’oeil, observa as peças de caça, mortas e colocadas, do lado de fora, sobre uma banqueta, deixando uma delas escorrer o seu sangue com um insuperável realismo.
                               Mas, aqui chegada, tenho de confessar que foram esses quadros de caça morta (lebres, faisões, perdizes, narcejas, patos e até pavões) bem como os dos peixes prontos a serem cozinhados, apesar de toda a mestria posta na sua representação realística, que mais me chocaram. Mas há dois que quero realçar: um conjunto de peixes e outros elementos culinários dispostos sobre uma mesa, porque, olhando com muita atenção, mal se vislumbrava um gatinho que só parecia estar prestes a lançar-se sobre aquele festim e um grande quadro, magnífico, representando um pavão vivo e um cisne morto.
                               Esta representação, bem como o interesse dado a objectos frágeis, (conchas, copos ou até pedaços de vidro) preparou-me para enfrentar o núcleo mais dramático da exposição: o núcleo IX, com o sugestivo título “Questões de vida ou de morte”. Para representar a brevidade da vida e inevitabilidade da morte, os pintores recorreram a objectos simbólicos: relógios, ampulhetas, caveiras e às próprias flores que, tendo uma tão curta duração, são um adequado símbolo da Vanitas, vaidade das vaidades, tudo é pó…, que enforma, com igual intensidade, a poesia, sobretudo a do séc. XVII.
                               Assim foi a visita, feita com tanto proveito intelectual como fruição de beleza, à Fundação Calouste Gulbenkian.
                               Beijinhos dos Vóvós
publicado por clay às 00:43 | link do post | comentar | favorito
Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.

Março 2010
Dom
Seg
Ter
Qua
Qui
Sex
Sab
1
2
3
4
5
6
7
8
9
10
11
13
14
15
16
18
19
20
21
23
24
25
26
27
29
30
31
últ. comentários
O Livro e o autorSugere-se a análise do Livro: “Da...
Venha conhecer o nosso cantinho da escrita... Visi...
Querida Professora Acabei de ler o comentário da m...
Cara Drª Clementina Relvas,Vim hoje visitar o seu ...
Querida Vovó... ou Querida Professora:Para quem cu...
Querida Professora ,Estive uns tempos sem vir ao s...
Cara Sandra:É sempre um grande prazer e compensaçã...
Olá Cristina,tive o prazer de conhecer a su...
Dra Clementina :Fiquei feliz por receber uma respo...
Lisboa, 20 de Maio de 2011Peço desculpa de só agor...
mais sobre mim
blogs SAPO
subscrever feeds