Quando o burrinho Filó nasceu, naquela pequena aldeia transmontana, havia muitos burros à sua volta: uns, os adultos, carregavam sacos de milho ou de centeio para o moinho da ribeira, feixes de lenha para a lareira, grandes molhos de erva para se alimentarem ou levavam à feira o próprio dono, à falta de melhor transporte, que mais não fosse um cavalo, que sempre era sinal de mais posses; os mais pequenos, e esses já eram poucos, brincavam na rua uns com os outros ou, se calhava encontrarem-se sozinhos nos quintais, perseguindo uma galinha que toda se espanejava à sua frente ou algum cachorro que ainda mal sabia ladrar.
Comida com fartura, em casa ou no lameiro, água fresca à discrição no velho fontanário e uma festa no lombo ou no meio da testa, era tudo o que precisavam e que lhes parecia não haver de acabar nunca. Mas a vida é cheia de ratoeiras e essas não cabiam nos seus projectos.
O Filó era um privilegiado: tinha pai, tinha mãe, dois irmãos mais velhos e uma catrefada de primos. Além disso, a dona era uma simpatia de pessoa, sempre a fazer-lhe festinhas, a chamá-lo pelo nome que ela própria escolhera e a escovar-lhe o pêlo até ficar luzidio como seda. O dono era mais sisudo, mas também boa pessoa. Que ele tivesse visto, nunca a vara, que empunhava para guiar os animais, fora usada para, com ela, os fazer andar mais depressa.
Aqueles donos, em seu entender, apenas tinham um contra: sem filhos pequenos – os dois, já adultos, tinham casado e ido morar para longe – era uma constante mágoa para o Filó ver os seus amigos com crianças escarranchadas no lombo, sempre alegres e ruidosos que era um gosto vê-los.
Mas o pior estava para vir. Um dia o dono lembrou-se de comprar uma pequena camioneta para o serviço da quintarola e, se tir-te nem guar-te, vendeu os seus burros a uns ciganos que por ali andavam em busca de bons negócios. Foi horrível. Mas o que mais lhe custou foi ouvir o dono dizer:
- Dá-me mais uma notinha e leva também o jumento pequeno, que não me serve para nada.
Sentiu-se inútil, claro, e desprezado como se aquele bocado de vida que lhe coubera até ali mais não fosse que um fingimento, um insuportável hipocrisia.
É verdade que, à sua dona, ainda lhe vieram lágrimas aos olhos e disse, condoída:
- Coitadinho do Filó! Tão estimadinho, tão engraçado com aquela estrela na testa, tão meu amigo que tanto se divertia a dar-me leves cabeçadas sempre que chegava à minha beira e agora…
Agora lá foram todos para o acampamento dos ciganos, onde havia muitos meninos mas que, fartos de ver passar por ali tantos cavalos e burros, não se interessavam por eles, até porque sabiam que a estadia nunca teria longa duração.. Um mês, nem tanto, para a família do Filó e mais quatro burros ainda possantes que tinham passado pela mesma tribulação. Tribulação que não se podia comparar à de um casal de burros, já velhinhos, tolhidos pelo reumatismo e que passavam o dia estendidos na palha, a um canto.
Dizia um:
- Vê-se mesmo que são burros.
Ao que outro replicava:
- Pois, não admira que já ninguém lhes dê valor. E eu até ouvi dizer que são uma espécie em extinção, que em breve não haverá mais nenhum.
Mas eu vos digo que bem se enganavam em tudo:
Uma manhã, por sinal uma daquelas manhãs de sol em que só apetecia correr atrás das galinhas e encher o acampamento de zurros de alegria, apareceu por ali um jovem casal que se mostrou extasiado:
- Olha, é mesmo aquilo de que precisamos para a nossa clínica. Seis burros adultos e mais quatro jumentinhos já dá para começarmos. E; com aquela CERCI ali ao lado, freguesia não nos vai faltar. E até se me corta o coração ao ver aqueles meninos deficientes a quem a hipoterapia havia de fazer muito bem.
- Eu quero aquele pequenino, com a estrela na testa – disse a rapariga, uma morena simpática e desembaraçada. Será a minha mascote. Vou chamar-lhe Flor, que é o que ele me faz lembrar, não sei porquê. E vou-me divertir a treiná-lo, nas horas vagas, de modo que todos os meninos o escolham para os seus jogos.
- Pois olha, quanto a mim, só uma coisa me preocupa: aqueles dois burros velhinhos, já tão trôpegos e para ali abandonados e maltratados.
- Vamos levá-los também. Ensinaremos as crianças a ocuparem-se deles: irão dar-lhes os remédios que vamos comprar e logo se vê o que acontece.
Fechado o negócio, lá foi o jovem casal, seguido pela récua de burros, até uma vila dos arredores, onde já tinham montado um pequeno hipódromo, com todos os apetrechos que a sua recente formação julgara indispensáveis.
E foi, de facto, um sucesso: os meninos deficientes, ajudados pelos dois instrutores, aprenderam a montar, começaram a comunicar com eles por meio de festinhas e palavras muito carinhosas ou, se não podiam falar, com gestos ainda mais meigos.
O Filo, agora Flor, em breve se tornou o ídolo não só da jovem instrutora mas de todos os meninos, que não deixavam passar um dia sem lhe trazerem cenouras, quadradinhos de açúcar e até uma flor com que lhe enfeitavam a pequena cabeçada. Em troca, e como já estava a ficar espigadote, deixava-os montar e dar pequenos passeios, com todo o cuidado para não caírem.
E os dois burros velhinhos? – perguntareis.
- Olhem, os remédios fizeram-lhes muito bem, curaram-lhes o reumatismo e já por ali trotam, alegres. sempre rodeados de crianças, cujo convívio lhes restituiu a alegria de viver. E, quem havia de dizer, passaram a ser os mais disputados pelas crianças, à medida que estas iam recuperando, porque eram os mais experientes e dotados duma paciência sem limites.
Clementina Relvas