Quando começaram a atirar imprestáveis para aquela sucata, lançaram para lá, à toa, uma velha enxada que o seu dono tinha usado durante muitos anos e guardado depois, saudosamente, já que, só lá de quando em quando, a utilizava para dar um jeito em canteiro mais esquecido.
Agarrada à enxada, ia uma sementinha que, com a queda, foi parar a um pequeno pedaço de terra ainda a descoberto, ao lado dum velho regador já sem o ralo e com muitos furos e amolgadelas.
Ao fim dalgum tempo, a sementinha espantou-se de sentir a terra húmida e, quase sem dar por isso, começou a inchar, a inchar e em breve saiu cá para fora um caulezinho de nada que se foi desenvolvendo, derramando-se em folhas e, por fim, num botãozinho duma flor.
Enquanto se desenvolvia, a sementinha agora planta ia-se entretendo a observar o que se passava a sua volta.
A princípio, assustou-se muito com os estrondos que faziam, ao cair, velhos frigoríficos já sem gás, máquinas de lavar entupidas de cálcio e até alguns automóveis que, ao vê-los, se ficava com a estranha impressão de que bem gostariam de contar as suas vidas recheadas de viagens e aventuras, mas rematadas por um fim dramático, como bem se podia adivinhar pelas suas destroçadas carcaças.
Depois, quando se sentiu já mais adaptada àquele estranho ambiente, começou a reparar em coisas mais pequeninas: máquinas de café, torradeiras e um velho regador que lhe tinha calhado por vizinho e que, sem ela dar por isso no fundo da sua prisão, lhe tinha ido preservando a vida pois, a cada vez que chovia, lá guardava ele o seu bocadinho de água que não se escapava pelos buracos e ia deixando cair, espaçadamente, sobre a sementinha e, mais tarde, no pé da pequena flor.
Ah! Ainda não revelei que o botãozinho desabrochara num malmequer de enormes pétalas brancas, distribuídas à volta dum centro amarelo, onde as abelhas iam desencantar o pólen, levando assim, para aquele sítio que parecia amaldiçoado, uma pequena festa de danças e de zumbidos.
Mas, há sempre um mas…
Claro que a flor, por mais resistente que fosse, não podia durar sempre. Simplesmente, aconteceu um milagre: quando retiraram a sucata para a reciclarem, ficou ali uma enorme mancha de terra, preta dos óleos e da sujidade que por ali se foram acumulando.
Aconteceu – e aí está o milagre – que o filho do patrão, um rapaz dos seus dezasseis anos, tinha recebido, como prenda de aniversário, uma moderníssima máquina digital, que jamais abandonava, sempre na esperança de tirar a tal fotografia, a fotografia duma vida. Vendo o esplendoroso malmequer, completamente sozinho naquele enorme e feio descampado, foi seduzido pelo contraste e logo lhe tirou uma fotografia, que lhe pareceu ser a tal.
De facto, algum tempo depois, houve um concurso para fotografias que tivessem por tema a ecologia. O rapaz concorreu cheio de esperança e com fundada razão: ganhou o primeiro prémio.
Não me digam que ainda não repararam num anúncio da Televisão que divulgou por milhões de pessoas a imagem do malmequer afortunado, não deixando que ele morresse nunca.
Mas ele sim, reparou. Ficou feliz e cheio de orgulho, mas com uma estranha dor a minar-lhe e coração: gostaria de ver, ali a seu lado, o velho regador que, meio desfeito, o tinha ajudado a passar de sementinha a flor, como uma mãe carinhosa que, cumprida a sua missão deixa o seu filho livre de seguir o seu destino.
Clementina Relvas