Nunca pensei que os "olhos do meu coração, no dizer de S. Paulo, revelassem pormenores por mim julgados completamente esquecidos...
Segunda-feira, 26.07.10

                              

 

Nessa tarde, a Vóvó teve uma grande alegria: recebeu a visita do Zezinho e do Papá, que veio saber da saúde, bastante abalada, da sua mãe. O Zezinho já tinha ouvido falar do problema, mas como pouco mais tem do que quatro anos e meio, dele não guardava a menor lembrança.

 

Depois dos efusivos beijinhos e abraços da chegada, foram ambos para o quarto da Vóvó, inventando sonos cansados e muito curtos. Boa noite, bom dia, conforme passava o minuto marcado no temporizador que dava o sinal de despertar. Mas as pilhas acabaram e o Zezinho, que tem um computador com magias, para aprender os números, as letras, as formas, algumas palavras de Inglês e também para se entreter com os jogos e com a música, quis experimentar o computador da Vóvó, colocado numa secretária, mesmo aos pés da cama. Teve uma certa decepção, pois não encontrou nele as fantasias do seu.

 

Escreveu o seu nome, os números de um a vinte e, esgotados os reduzidos saberes, a Vóvó foi-lhe mostrar o seu blogue, ilustrado pelo Vôvô com gravuras que o encantaram até… Até que descobriu a cabeça dum sapo verde, de olhos muito arregalados, que se moviam em todas as direcções e logo ali foi baptizado, pelos dois, com o nome de SAPO PISCA-PISCA.

 

O Zezinho, encantado, soltava gritinhos de alegria cada vez que os olhos do sapo se viravam para uma ou outra direcção. Ao fim dum certo tempo, resolveu passear-se pelo blogue, dizendo:

 

 - Olha, Vóvó, o sapo foi à rua e já volta.

- Então pergunta-lhe se, lá fora, está muito vento.

- Ó Sapo, apanhaste muito vento? – perguntou o Zezinho.

 

Entretanto a Vóvó, que se sentia cansada, deitou-se na cama ali ao lado, dizendo:

 

 - Olha, Zezinho, a Vóvó tem de se deitar um bocadinho porque está doente.

 - Outra vez? - perguntou, porque infelizmente já tinha ouvido idênticas queixas.

 

Voltou ao Sapo Pisca-Pisca, que teve de ir várias vezes à rua, até que, passado um bom bocado, deixou o computador e veio, suave como um anjo, segurar-lhe na mão, onde deixou um beijinho.

 

- Ai! Que beijinho tão bom! E por que é que me deste este beijinho?

 - Agora já não estás doente. Foi para passar o dói-dói.

 

A Vóvó ficou comovida e a dizer de si para si:

 

            - Que coisas lindas tem a vida!

 

                             Lisboa, 20 de Julho de 2010

                                                                                   

                                 Clementina Relvas

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Domingo, 18.07.10

                              

 

                                                                                                                                                                           

Meus queridos netos:

 

Quem é que compra os beijinhos e porquê? Tenho  de vos contar toda esta história, uma história do Zezinho, nosso neto e que é assim:

 

                        Quando ele era ainda um bebé, que nunca parava quieto, fazia muitas birras, sobretudo quando se metia a fazer qualquer coisa que lhe não saía bem, se entretinha a abrir todas as portas e a acender todas as luzes da sala, os pais procuravam acalmá-lo com beijinhos que geralmente rejeitava como sempre rejeitou a chupeta.

 

                        Foi crescendo (tem agora quatro anos e meio) e travou conhecimento, não só com os amiguinhos da Creche, mas também, progressivamente, com as brincadeiras do Panda e outros heróis da Televisão, mas também com personagens inventadas pelo Pai e outras que apareciam nas cantiguinhas com que a Mãe procurava interessá-lo. O Pai tinha o seu melhor aliado no Sr. Lei, sempre disposto a levar presos os meninos que se portam mal, fazendo-os ficar quietinhos e calados num canto do sofá da sala. Não por muito tempo, acrescente-se, já que o Sr. Lei gosta muito de meninos bem comportados e tem muito bom coração.

 

                        A primeira grande paixão do Zezinho foram os Faíscas, que levava para todo o lado, primeiro na carteira da Mãe e depois, quando já tinha muitos, numa pequena mochila, enfeitada com o Homem Aranha.

 

                        Foi por essa altura que ele começou a aninhar-se nos colos que lhe ofereciam os familiares mais próximos e começou a dar, ou melhor, a receber beijinhos. Encostava ao feliz contemplado a sua carinha delicada e sempre risonha, recebia os afagos, mas escapulia-se logo para mais uma traquinice.

 

                        Depois, deve ter pensado que, se ele gostava tanto de beijinhos, também gostariam deles os que lhos davam e começou a distribuir beijinhos a torto e a direito.

 

                        Até que um dia…

 

                        Um dia, ao despedir-se da Vóvó com muitos beijinhos, disse, apressadamente adeus ao Vôvô e correu para o elevador, dizendo:

 

                        - Não tenho mais beijinhos Vôvô. Amanhã compro mais, para ti.

 

A cena repetiu-se na visita seguinte, mas como o Pai fingisse vender-lhe beijinhos em troca dumas moedas imaginárias, o Zezinho voltou atrás, encheu o Vôvô de beijos doces e repenicados e lá partiu todo contente para, ao colo do Pai, carregar no botão zero do elevador.

                                  

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                   Clementina Relvas

                                  

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Quinta-feira, 15.07.10

Aqueles andorinhões, aves raras em Portugal, tinham-se instalado ali, na parede maltratada daquele antigo forte, rico de grandes buracos para neles se instalarem confortavelmente, o casal e as futuras ninhadas.

Tudo corria num mar de rosas, embora rosas fosse o que jamais haveria de se ver em redor, tanto o desinteresse dos soldados por essas delicadezas de mulher. E mar ainda menos, já que estes acontecimentos tiveram lugar no Alentejo interior e, ainda por cima, já com o Verão começado. Mas corria, isto é, o tempo passava, embora lento, convidando à sesta, até chegar o início da aventura anual. Os andorinhões aguardavam calmamente, se tal se podia dizer de andorinhões atarefados em angariar os insectos  com que iam alimentando os seus filhotes, até eles serem capazes de se aventurar fora do ninho e fazer-se ao largo, por esses céus além, rumo ao país de acolhimento para onde emigravam todos os anos.

 

Nesse dia, ao regressar a casa, a mãe, depois de ter regurgitado a maior parte do que tinha comido para o bico dos pequenos, disse, acreditem os leitores ou não, ao seu companheiro:

 

- Bem queria poupar-te preocupações, mas tenho de desabafar. Imagina com que aflição ouvi uma conversa meio azeda entre aquele nosso amigo que nestes dias mais quentes até nos tem trazido água fresquinha e o homem mal-encarado que, ultimamente, nos tem massacrado constantemente os ouvidos, sempre a martelar e a raspar.

- Ah! Já sei. É o mestre-de-obras e aquele senhor da natureza, ou do ambiente, qualquer coisa assim. E então que é que eles disseram para te causar tamanha preocupação?

- Olha, o mestre-de-obras, como lhe chamas, dizia que tinha de acabar com todos os nossos buracos porque, de tão oca, a parede era um perigo para quem por aqui passasse. Ia deitar abaixo todo este pano do muro e refazê-lo de novo para ficar descansado.

- Ó diabo! E o outro?

- O outro, muito zangado, dizia que isso era um crime ambiental, são as palavras dele, em que jamais consentiria, porque era o mesmo que condenar à extinção a nossa espécie, no seu dizer tão rara.

- Ó diabo! E o outro?

- O outro disse que não era nenhum selvagem e até já tinha dado ordens a três serventes para retirarem dos seus buracos, com todo o cuidado, os ninhos com as crias e levá-los para a reserva que fica ali em baixo, onde os pais não tardariam a ir-se juntar a eles. E até acrescentou que burros fomos nós em não termos ido logo para a reserva, onde nada nos faltaria.

- Ai, nós é que somos burros? É preciso ser estúpido e não perceber nada de animais, e ainda menos de aves, feitas para voar livremente por esse mundo fora. Ainda por cima nós, sempre habituados a ser livres.

- Mas ouve lá o resto que ainda não acabei. Essas, mais ou menos, foram as palavras que o da natureza lhe disse, acrescentando que não era contra a demolição do muro, realmente em mau estado, mas pelo adiamento das obras. Que faltava pouco mais dum mês para nós podermos partir e, então sim, poderiam restaurar aquela parte do forte, ou, ainda melhor, o forte todo que, como monumento nacional, bem precisado estava disso.

- E então, em que é que ficaram? Não me digas que vamos ser despejados.

- Espero que não. Porque me pareceu que o mestre-de-obras ficou hesitante, talvez a pensar como seria se fizessem isso com a família dele.

 

E, de facto, embora sempre com o coração apertado ou, como também se poderia dizer, com o coração nas mãos se os andorinhões tivessem mãos em vez de patas, o tempo foi continuando a passar, os filhotes a crescer e, seis semanas depois, lá foram eles sobrevoando terras e mares até àquela terra exótica que todos os anos aguardava a sua chegada.

 

                Lisboa, 5 de Julho de 2010

                     Clementina Relvas

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Quinta-feira, 08.07.10

Aquela numerosa família, era uma das que, só no Botswana, contribuía para, nas contas de traficantes de marfim e dos fazendeiros cobiçosos de vastos espaços para as suas plantações, se atingirem as cifras astronómicas dos muitos milhares destes paquidermes. O que as autoridades prometiam não agradava aos primeiros, nem aos defensores dos direitos dos animais e muito menos aos elefantes, se o seu cérebro descomunal tivesse o dom de adivinhar o futuro. Quanto aos fazendeiros, falava-se de altas compensações aos responsáveis.

 

A verdade é que, até agora, todas as manadas se dedicavam a percorrer diariamente, seguidas pelas crias, milhares de quilómetros da savana, só parando para comer a sua ração de folhas e de capim, se esfregar no tronco das raras árvores que encontravam de quando em quando e para as prolongadas e deliciosas banhocas nos charcos, cada vez mais secos, que lhes proporcionavam a sua melhor distracção.

 

Era já ao cair do dia, quando os poentes africanos tingiam, repentinamente, duma fantasmagoria de ouro e cor de laranja, os longínquos limites da Terra, que aquela família de elefantes se metia charco ou rio dentro e se rebolava na lama molhada para ter o bom pretexto de longa e abundantemente se aspergirem com a tromba, o seu natural e ecológico chuveiro.

 

Claro que quem mais se divertia eram os filhotes, atirando-se para o lamaçal onde não se cansavam de brincar uns com os outros e buscando depois, com as pequenas trombas erguidas, chamar a atenção dos mais velhos para a necessidade de mais uma chuveirada, se é que em animais tão, como dizer sem risco de equívoco, em animais tão pequenos já podia haver segundas intenções. Por ali se ficavam até a noite cair, prosseguindo depois a marcha, nesse dia ou no seguinte, até ao local que tinham por destino, a quilómetros e quilómetros de distância. Feitas as contas, se as soubessem fazer, toda a savana era sua.

 

Mas, de há uns tempos a esta parte, algo se sentia no ar que não augurava nada de bom. É verdade que havia menos elefantes desdentados pois, dizia-se, os traficantes de marfim estavam sob apertada vigilância e, se apanhados em acto de delito, sujeitavam-se a pesadas coimas e até mesmo a longas penas de prisão. Mas, por outro lado, constava que, embora com uma forte oposição dos seus defensores, os grandes fazendeiros procuravam obter enormes áreas de terra que, destinadas à agricultura e à pecuária, não podiam estar sujeitas à devastação causada pelos passeios dos elefantes. E então, que sugeriam?

Erguer-se-iam numerosas cercas bem sólidas e, em seu entender, suficientemente espaçosas para o dia-a-dia de cada família de elefantes.

 

- Mas isso é o que eles chamam uma prisão! E bem estreita para as nossas necessidades - dizia o chefe da manada.

- É mesmo não perceberem nada de elefantes habituados à savana - acrescentava outro.

- Eu não quero ser intriguista, mas a minha prima já me veio falar duma história de corrupção, que eu não entendo o que seja – opinava uma mais velha.

- Nós somos tantos e temos tanta força, porque não organizamos uma revolta de elefantes e não os impedimos de construirem as cercas?- sugeriu um pequenote que só sonhava com filmes que nunca vira e com heróis de banda desenhada que já algumas vezes lhe tinham aparecido entre as patas, deixadas por algum miúdo, mais interessado no safari.

 

Este foi um assunto de que tomei conhecimento num documentário exibido na Televisão e que me tirou o sono. Excepto as conversas dos elefantes, claro, porque é um problema do nosso tempo e não daquele em que os animais falavam. Mas não são conversas difíceis de imaginar…

 

E também não faço ideia do pé em que se encontra uma tão grande monstruosidade, que espero se não torne real.

                   Lisboa, 6 de Julho de 2010                                  

                        Clementina Relvas

 

 

 

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Sexta-feira, 02.07.10

            

                        Todos os meus amigos conhecem os grandes prazeres que me enfeitam a vida: viajar (e muito mundo eu corri), ler e comunicar. Ora, há algum tempo, porque estou mais velha e tropeçona e devido a problemas de saúde, só tenho podido usufruir dos dois últimos.

 

                        Com a morte do nosso Nobel da Literatura, José Saramago, cuja obra sempre me cativou desde o Levantado do Chão, resolvi ler a Viagem do Elefante, livro que o meu marido me ofereceu e me proporcionou momentos de grande interesse e até de boa disposição. De facto, mais do que as histórias que inventa, aprecio neste autor a maneira como trata a língua portuguesa, buscando para o seu vastíssimo vocabulário sentidos absolutamente inesperados e, quando se justifica, cheios de humor.

 

                        E vem esta singela homenagem a propósito de quê? Não sei se muito a propósito, porque a leitura que eu levara para ocupar o tempo no Hospital não era outro livro de Saramago que ando a reler, mas uma revista semanal de, digamos, entretenimento.

 

                        Pois o exame que eu ia fazer, o misterioso exame designado pela sigla inglesa PET que, vim depois a saber, lido ao contrário como deve ser, significa “Tomografia de Electrões e Positrões", isto é, uma aplicação do temível nuclear aqui para fins pacíficos, exigia duas longas horas de repouso nos confortáveis cadeirões do IPO de Lisboa, com ar condicionado, o agasalho duma manta e a solicitude do pessoal, sempre disposto a vir em nossa ajuda. Diga-se, entre parêntesis mesmo se a eles não recorro, que comecei por me perder em divagações sobre a felicidade de ter nascido nesta parte do mundo, já que, em muitas outras, as pessoas doentes são abandonadas à sua sorte, sem poderem recorrer a hospitais nem a remédios, muitas vezes nem a uma simples aspirina quanto mais a estes sofisticados exames.

 

                        Depois, achei que o melhor era pôr-me a ler a revista que tinha levado exactamente para me distrair. Mas estava eu muito enfronhada em notícias e vidas singulares, tidas por dignas de serem contadas, quando a Técnica que me iria fazer o exame me advertiu, em tom ligeiro mas com muita firmeza:

 

                        - Leituras aqui? Não pode ser. Bracinhos para baixo e toca a descontrair.

 

                        Larguei e revista e procurei relaxar, continuando com os pensamentos que já referi e algumas orações de graças a Deus. Decorrida mais duma hora, passaram-me para a sala ao lado, indo ocupar o lugar, igualmente confortável, deixado vago por outro doente em fase mais adiantada do tratamento. Mas ainda me restou companhia: um senhor de meia-idade, agricultor para as bandas de Torres Vedras e que começou logo a falar-me dos deliciosos figos comidos três dias antes, no imenso pomar de pessegueiros onde, agora, os frutos maduros precisavam de ser colhidos e eram, também, embora de maçãs se não tratasse, fruto proibido para um diabético como ele.

 

                        Eu, que fui criada no campo, achava-me, não nas minhas sete quintas, mas nos meus pequenos pomares, esses sobretudo de cerejeiras. Ia animada a conversa, com matança de porco e tudo, quando a Técnica passa de novo e corta cerce:

 

                        - Os senhores não podem conversar. Têm de ter os músculos bem distendidos para que o exame resulte.

 

                        Para o meu companheiro não foi difícil obedecer, porque foi logo chamado para o exame. E para mim também não, porque me vi sozinha a completar o meu período de repouso. E sem interlocutores…

 

                        O exame, demorado mas indolor, correu bem e, quando acabou, a Técnica, desta vez, deu-me uma boa notícia:

 

                        - Tem lá fora um chá e umas bolachinhas para quebrar o seu jejum. Eu já volto para lhe tirar o catéter.

 

                        Quando me veio buscar, o meu marido ficou agradavelmente surpreendido com a minha boa disposição, resultante das peripécias que acabo de relatar e, principalmente, da excelência dos serviços que me foram oferecidos, porque Deus, não sei porquê, me destinou a viver neste mundo desenvolvido e rico, de que tanto nos queixamos.

 

Lisboa, 1 de Julho de 2010·    

                                            

Clementina Relvas

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