Naquele mundo mágico, as montanhas, pintadas de verde, foram definidas com toda a perfeição pelo Artista que desenha as serras e revestidas, ora de mato rasteiro, ora de florestas densas e ricas de espécies raras. Por todo o lado a água nos saúda e nos convida a momentos de extasiada beleza e de lazer: cascatas inesperadas, represas tão transparentes que deixam ver, sem qualquer esforço, as lajes de xisto que atapetam o fundo e, fonte de todos estes milagres, o Rio Alba com as suas praias fluviais bem cuidadas, a interromper o correr manso e múrmuro do rio.
Naquele mundo mágico, onde as casas conservam a traça milenária do xisto, amorosamente disposto, sem falhas nem atropelos e as janelas, pintadas de branco, contrastam com as portas azuis, sobressai, toda caiada de branco a Igreja da Imaculada Conceição, que não agradando a todos, encaminha para aquele recanto da aldeia escura, um feixe de inegável espiritualidade.
Mas, subindo aquelas quelhas tão íngremes, com varandins enfeitados de flores e vistas deslumbrantes, logo, na minha imaginação, começou a impor-se a evidência, de que aliás, não encontrei o mínimo vestígio, da existência de muitas e antiquíssimas lendas suscitadas por todo esse mundo mágico que me fascinou.
E então Foz de Égua? A represa, encravada num vale profundo e cheio de vegetação, não guarda o aspecto selvagem que teria na época em que decorre a minha história lendária: há três ricas casas, uma delas com uma inútil piscina, dada a vizinhança da outra, natural, mas todos os proprietários tiveram o bom gosto de respeitar escrupulosamente a arte de construir em xisto, na tradição da terra e de plantarem árvores e hortenses que ali nos prendem o coração para sempre.
Há várias pontes rústicas sobre o ribeiro e até uma grande ponte pênsil, com perspectivas magníficas para os amantes da fotografia. E, lá muito no alto, para os que preferem as caminhadas, está a ser construída uma capelinha em xisto, de que ainda só existe a torre com um sino e um elegante arco aberto para a zona recreativa.
E a égua? A minha égua, que tem andado a trotar na minha cabeça, à procura dum oásis de repouso que a liberte do seu fado? Sim, que nestes caminhos sinuosos e à época ainda não desbravados, a vida devia ser tormentosa, especialmente de inverno.
Era a única égua da região, onde, mesmo os modestos burrinhos, não abundavam. E, até por isso, há quem diga que a palavra Piódão significaria, nada mais nada menos, do que povos que andavam sempre a pé.
Ora esta minha égua, além de muito esperta, tinha um espírito, se assim se pode dizer, aberto e independente. E, cansada de carregar tantas giestas para forrar o seu estábulo e os caminhos, de as levar depois, transformadas em estrume, para as acidentadas leiras do dono e de ver passar de longe as castanhas e os escassos restos de comida que iam directamente para a pocilga dos porcos, decidiu agarrar as rédeas e ir em busca de melhor futuro. Saiu de casa mal amanhecera e pôs-se a caminho. Caminho é como quem diz, pois só se lhe deparavam trilhos de pé posto e com tantas curvas e contra-curvas, que várias vezes pensou em desistir. Mas não. Já que tinha escolhido a liberdade, teria de desprezar os obstáculos e prosseguir, sempre em frente.
Já quase no limite das suas forças, vislumbrou um estreito carreiro que acompanhava um remansoso ribeirinho, cujas margens rescendiam a hortelã bravia e a fiolho já coberto de florinhas amarelas.
Seguiu o curso do regato e, embora a água corresse no sentido contrário à sua penosa marcha, deparou-se-lhe, de repente, um largo e fundo açude, no meio dum oásis tranquilo e que a fez exclamar:
- Eis a Foz. A minha Foz. É aqui que vou ficar, no meio destas pastagens verdejantes, com água límpida para matar todas as sedes e até (que milagre!) esta ruína de xisto que já foi morada de alguém e agora passará a ser a minha casa.
Lisboa, 26 de Agosto de 2010
Clementina Relvas