Nunca pensei que os "olhos do meu coração, no dizer de S. Paulo, revelassem pormenores por mim julgados completamente esquecidos...
Segunda-feira, 27.09.10

 

Era uma já antiga tradição de família: de cada vez que nascia um bébé, plantava-se uma oliveira, árvore de paz e de felicidade, que iria acompanhar, ao seu ritmo, o desenvolvimento da criança e como que apadrinhá-la.

 

Nesse ano, e ao fim de muito tempo de espera e de expectativas, os Avós receberam a fabulosa notícia: anunciava-se a chegada, muito em breve, não de um mas de três bébés. O primeiro seria o Tomás, tão desejado pelo filho mais velho e para o qual a Mãe, desde há muito começara a comprar o enxoval. Mal teve o primeiro embate com o mundo que o esperava, logo o telemóvel levou, até àquela perdida aldeia da serra, a notícia do milagre. E, enquanto a Avó se apressou a levar a boa nova a familiares e amigos que eram, afinal, todos os habitantes do pequeno povoado, logo o Avô se pôs a analisar todas as pequenas oliveiras do seu campinho, para escolher a mais bonita e vigorosa. Assim que se decidiu, dirigiu-se para o pequeno jardim em frente da casa de férias do filho onde, com todo o amor que lhe ia na alma, a plantou e regou, creio que também com algumas mal contidas lágrimas de emoção.

 

Passado pouco tempo, o telemóvel trouxe outra notícia que, de esperada, se transformara em prodigiosa: a única filha não quisera deixar-se vencer pelo irmão e dera à luz dois gémeos, um menino e uma menina, perfeitinhos e formosos como dois anjos, acrescentava a mãe. O regozijo foi igual, que o coração dos Avós não tinha espaço para o sentir a dobrar, e a escolha e plantação das simbólicas oliveiras mereceram, da parte do Avô, um igual e comovido carinho.

 

Ora, apesar do seu coração generoso e do seu jeito patriarcal, quando todos se reuniram lá em casa, não deixou de comentar, com a leve nota de humor com que pintalgava as conversas:

 

- Agora vejam lá se isto se transforma em rotina! Qualquer dia, sem dar por isso, é mais um olival que eu tenho de cuidar.

 

Mas, sempre que lhe chegavam as saudades dos netos, lá ia ele regar as oliveirinhas e, vendo-as crescer, imaginava os progressos dos seus meninos. Tudo seguia o curso natural, natural e abençoado. Passaram os meses, aproximou-se o inverno e a neve começou a espreitar lá dos cimos mais altos. Preocupado com a fragilidade das plantinhas, fez para cada uma sua casota de vimes e carumas, deixando-lhes espaço para continuarem a crescer.

 

E eis que, numa inesperada visita, o filho lhe comunicou, radiante, que estavam à espera dum segundo filho, igualmente um rapaz. O Avô, já esquecido da sua gracinha sobre as rotinas e encantado por voltar a sentir o coração a transbordar com uma alegria tão intensa como da primeira vez, foi em busca de mais uma pequena oliveira que plantou, no quintal, ao lado da do Tomás para assinalar a chegada do João. Era um pouco mais esguia, mas menos copada, também porque um pouco mais nova.

 

O tempo foi passando e quando, numa das suas habituais deslocações à casa de férias, os pequenos foram, como de costume, visitar as oliveiras, o Tomás ficou radiante porque a sua já apresentava, a espreitar por entre as folhas verde-cinza alguns raros bagos, pretos como azeviche. Escusado será dizer que o João, como sempre acontece entre irmãos com pequenas diferenças de idade, procurou compensar a sua desvantagem, choramingando:

 

- Pois é, a minha oliveira ainda não tem azeitonas, porque eu nasci depois de ti, mas a verdade é que já está mais alta do que a tua e eu quase da altura dela.

 

E foi assim por muitos anos: as oliveirinhas, entretanto crescidas como os dois irmãos, foram sempre a válvula de escape para uma saudável competição. Qual deles era o mais alto, qual deles era o mais forte, até chegarem ao ponto de compararem a generosa colheita de cada ano com os resultados escolares, sempre compensadores para ambos.

 

A partir de certa altura, não era raro ir encontrar o Avô, então já muito velhinho, sentado junto ao tronco duma daquelas árvores, sempre alternando a sua escolha de acordo com cada um dos quatro amores que ainda tinham chegado a tempo de dar um novo sentido à sua vida.

 

 

 

publicado por clay às 10:05 | link do post | comentar | favorito
Sábado, 18.09.10

O grande sonho da menina era ver chegar o dia em que a sua Madrinha, como tinha prometido, a achasse competente para receber aquela boneca de porcelana, que abria e fechava os seus lindos olhos azuis. A menina não cessava de se imaginar a pentear aqueles longos cabelos loiros, a mudar-lhe as roupinhas, a acalentá-la com o mesmo amor que a sua mãe punha em todos os seus gestos de embalo.

 

Um dia, era por altura do Natal, a menina pedira mais uma vez ao Menino Jesus que a sua prenda fosse aquela boneca, há tanto tempo desejada. Já andava na quarta classe e ouvia frequentemente os adultos comentarem:

 

- Como esta menina está crescida! Não há outra, na aldeia, tão educada e sensata.

 

Era sobretudo esta última palavra que inundava de doce esperança o seu coraçãozinho. O Natal nunca mais chegava e fez-se anunciar pela visita de pessoas da família, que vieram duma aldeia vizinha desejar as Boas-Festas. Com os pais chegou um rapaz já crescido e uma primita pouco mais velha do que ela. Para a manterem entretida naquele ambiente em que predominavam os adultos, emprestaram-lhe, para brincar, a boneca de porcelana. A menina ficou com o coração nas mãos, receosa de algum desastre. Mas, quando já se despediam, respirou de alívio pois a boneca ali estava, perfeita e bela como sempre.

 

Conversa puxa conversa mesmo na soleira da porta, até que, agarrada à boneca com todas as forças, a visitante ficou a pontos de fazer uma birra que, aliás, já não condizia com a sua idade. E, conhecendo-a bem, a mãe deixou cair a frase fatal:

 

- Como a Alicinha (a minha Madrinha) já há muito que não brinca com bonecas, quem sabe se não quererá fazer de Pai Natal e dar a boneca à priminha?

 

A menina sentiu um baque insuportável no coração e, sabendo a importância que a sua família dava àqueles parentes, embora um pouco afastados, viu o horizonte carregar-se de ameaças e de perigos.

Tinha razão o seu coraçãozinho pois, quando todos se foram embora, levaram consigo, para sempre, o sonho mais acarinhado pela menina: a sua linda boneca de porcelana.

 

Os anos passaram, sem jamais apagarem de todo aquele desgosto de infância. A menina casou, teve filhos mas nem uma menina para ocupar o lugar vago. Sempre a ouviram comentar, com tristeza:

 

- Com tantos brinquedos que há agora e eu nunca tive uma boneca. Ou melhor, tive uma que não chegou a ser minha.

 

Foi então que num outro Natal, o filho mais novo que já tinha dezassete anos, lhe ofereceu, muito bem embalada, uma grande caixa, donde tirou uma boneca, dizendo:

 

-Vem um pouco fora de tempo, mas espero que ainda a console dos desgostos antigos. E, quem sabe? Talvez a  possa partilhar com uma netinha que um dia virá a ter e tudo ficará bem.

 

Assim foi. A segunda boneca era muito bonita, com uma grande cabeleira castanha e olhos esverdeados, que também abriam e fechavam quando chegava a hora de dormir. Foi uma grande companheira nos faz-de-conta de avó e neta e assim se desvaneceu, definitivamente, o vazio que se tinha prolongado por tantos anos, motivo por que foi fotografada para este post !                                

publicado por clay às 00:48 | link do post | comentar | favorito
Segunda-feira, 13.09.10

                                     

 

          Quando chegava da Escola, o menino trazia sempre novos números de circo: ou imitava a cara zangada da professora porque a turma se tinha portado mal; ou a dum colega divertido com a traquinice dum amigo. Outras vezes imitava vozes irritadas, irónicas, trocistas. Gaguez só a imitou uma vez e fê-lo até muito bem. Mas logo a Mãe o proibiu, terminantemente, de se servir dos defeitos físicos de alguém para as suas actividades histriónicas. Sim, que a Mãe estava convencida de que ia sair dali um palhaço – que ele também imitava às mil maravilhas – ou, na melhor das hipóteses, um actor de teatro ou de telenovelas.

Pelo sim, pelo não e para ver se o vezo era passageiro, costumava dizer em ar de troça:

 

                    - Sempre me saíste cá um macaquinho de imitação!

que só conhecia os três macacos da escultura de cerâmica que um dia tinham oferecido à Mãe como prenda de anos, respondeu logo:

 

          - Ó Mamã, mas tu é que me dizes para fazer como os teus macaquinhos: não ver o que não deve ou não merece ser visto, não ouvir coisas que prejudiquem os outros e, quanto a falar, quanto menos melhor. E a verdade é que eu nunca vi um macaquinho ao vivo.

          - Resposta na ponta da língua tens tu sempre pronta a ser disparada.

 

          A Mãe ficou a magicar. De facto, era muito injusto chamar ao filho macaquinho de imitação, se ele nem sequer sabia, verdadeiramente, ao que ela se estava a referir. E resolveu levá-lo ao Jardim Zoológico.

Num belo dia de começo do Verão, estava o roseiral já todo em flor, lá foram os dois, logo pela manhã, visitar o Jardim Zoológico. Os golfinhos, tão habilidosos e simpáticos, ficariam para outra vez. Hoje, dedicar-se-iam quase só aos macacos.

 

          Dirigiram-se logo para as jaulas dos grandes chimpanzés, que se balouçavam em cordas e lianas como autênticos acrobatas. Principalmente os machos porque as mães, essas, estavam muito entretidas a amamentar os filhotes e…a catar-lhes as cabeças. O menino disse, a medo:

 

          - Ó Mamã, parecem mesmo pessoas!

          - E ainda não viste nada. Passemos às jaulas dos saguis. Repara na sua longa cauda, pendente do ramo onde descansam. As desta raça não servem para se dependurarem dos troncos ou dos balouços, como as do macaco-prego. Mas às vezes dão saltos bruscos e são muito divertidos: gostam de fingir brigas entre eles e de brincar ao esconde-esconde.

          - Como eu e os meus amigos?

          - Tal qual. E se eu te disser que há muitas variedades de macacos, grandes e solitários como aquele orangotango, babuínos de focinho comprido, pequenos micos ou saguis…

          - Quase podiam juntar-se numa grande cidade, não achas?

          - Cidade, não direi. Mas numa aldeia… Tem cuidado, não te debruces, porque o muro é muito alto.

          - A aldeia dos macacos? Pois é, já estou a ver: casinhas pequenas, mas de dois andares, caiadas de branco e com listas azuis, telhas verdadeiras e até uma torre muito alta, como se fosse a igreja da aldeia.

          - Mas claro que não é uma igreja. É uma espécie de silo, com algumas aberturas – os macacos são muito curiosos – e tem, por dentro, uma escada em caracol, pois eles divertem-se a fugir lá para cima, agarrados à banana que quase todos os meninos lhes atiram.

          - E para que serve aquele poço e o arco de ferro por cima dele?

          -Se reparares bem, verás que não é um poço. E aquele arco, assim como as barras de ferro que lá vês são, digamos assim, o ginásio dos macacos.

          - Pois é. E olha que até têm piscina mesmo à mão de semear! Estes não têm medo da água?

          - Estes não. E se soubermos que a aldeia dos macacos foi projectada por um grande arquitecto, Raul Lino, em 1927, ainda nem a minha mãe tinha nascido, dá um bocado que pensar.

 

          O menino já estava cansado de tanta macacada e não resistiu a perguntar à Mãe, antes de se virem embora:

 

          - Sabes duma coisa, Mamã? Agora é que já não sei se sou eu o macaquinho de imitação ou todos estes animais que muitas vezes me pareceu estarem a fingir de pessoas.

                                

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Terça-feira, 07.09.10

                                                        

                

Não era um papagaio qualquer, daqueles a quem certos donos ensinam meia dúzia de palavras inconvenientes que os obrigam a memorizar. Não. Aquele, de coloridas penas brilhantes, fora trazido ilegalmente do Amazonas, onde vivia feliz e, também ilegalmente, comprado pelo seu actual proprietário. É verdade que dispunha de alimentação adequada e abundante e até, tinha de confessar, era frequente ser mimoseado com festinhas da patroa, a D. Rosalinda, uma santa. Já  com as crianças  era conforme. Ocasiões havia em que se entretinham com a frase: «Dá cá o pé, loiro» mas é o davas. Depois da tentativa de lhe arrancarem algumas das suas mais belas penas para enfeitar um cocar parecido com o do herói índio da sua última banda desenhada, bem podiam dizer e repetir aquela senha que a ave não arredava pé do grosso tronco que lhe servia de poleiro.

 

Saudades tinha, sim e muitas, da sua imensa floresta, dos cedros vermelhos, onde, através dum perfeito mimetismo, conseguia enganar os companheiros quando andavam a brincar às escondidas. E das palmeiras tão copadas  e tão chegadas umas às outras que ao fim dum dia inteiro a saltitar nas suas palmas, era sempre como se só então esse jogo tivesse principiado. Dos igapós, debruçados sobre infindáveis extensões alagadiças, gostava menos, embora por vezes se entretivesse a mirar lá de cima os caranguejos, os peixes de todas as espécies e também os crocodilos preguiçando ao sol. Mas, desde pequenino, evitava aqueles espaços de que nenhuma ave gostava muito.

 

Mas deixara-se levar pelo interminável rio das divagações.  No que ele estava a pensar era nas suas relações com a família de acolhimento. Da D. Rosalinda nada mais tinha a dizer. Resumira tudo numa palavra. As duas crianças tinham desistido, após muitos e baldados esforços, de lhe roubarem alguma das suas penas mais coloridas e também de lhe ensinarem o que os pais diziam ser palavrões, a pedirem pimenta na língua. O dono era simpático, só que, ao limpar o seu poiso ou ao mudar-lhe a água e repor-lhe a comida, lá se punha ele, agarrado às costas, a dizer:

 

- Ai, os meus bicos de papagaio!

 

Embora não fizesse a menor ideia de qual fosse a razão do mal- estar do dono, porque bicos não vislumbrava nenhum, ao ver a cara contristada da sua amiga Rosalinda, também ele se sentia triste. Escondia a cabeça debaixo duma asa, enquanto o patrão desabafava:

 

- Este papagaio, apesar de ser quase mudo, às vezes até parece que compreende tudo quanto se passa.

 

Mas havia os meninos da vizinhança – e até alguns adultos – que também o queriam levar por maus caminhos. E um dia, depois de muitas tentativas inúteis, um rapazinho mais reguila lançara-lhe para a janela onde estava empoleirado:

 

- Olha lá, ó loiro, se continuas assim teimoso, não tarda nada vou aí acima e ainda ficas sem o bico.

E logo o papagaio, sem papas na língua:

- Experimenta e vais ver. Não ganhavas nada com isso, porque o meu patrão tem muitos que só o fazem sofrer e logo me dava outro.

                                

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