Logo que os leves flocos de neve abandonavam a pequena aldeia e, depois o Marão, ao longe, ia despindo discretamente, o seu real manto de arminho, a velhinha lá estava, com o seu cesto de costura, a aproveitar o tempo: as horas e também os primeiros raios de sol da Primavera prestes a chegar. O seu poiso era numa típica varanda duma casa de pedra à vista, já muito escurecida pelo tempo. A varanda coberta e resguardada, de cujo tecto pendiam résteas de alhos e cebolas e, sobre uma manta estendida no chão, maçãs perfumadas e cachos de uvas da recente vindima, era, para a pequenita que se dirigia para a Escola, um autêntico retalho dum conto de fadas.
A aldeia só tinha uma rua, tortuosa, íngreme e com casas parecidas com as da varanda, preenchendo ambos os lados. Não totalmente. Havia espaços vazios, donde se avistavam os vinhedos, soutos, olivais e raras hortas, que a terra, apesar de ser tratada com muito amor, era, por natureza, bastante sáfara, sobretudo pela ausência de água que a vivificasse.
Defronte da casa, havia sempre algumas galinhas cacarejantes e rodeadas de pintainhos amorosos que elas ensinavam a procurar o milho, ou mesmo restos de comida. E a menina ficava sempre, durante alguns minutos, a apreciar esta cena, tanto mais que a velhinha já lhe tinha ensinado os nomes das poedeiras. Sim, porque todas tinham um nome. Os pintainhos ainda não, pois eram todos muito parecidos. Lá chegaria o seu tempo.
A menina estava fascinada por aquele retalho da aldeia. Diariamente, ao ir ou vir da Escola, ali se quedava para cumprir a sua rotina que, aliás, lhe havia de fazer muita falta, quando partisse para continuar os estudos, bem longe dali. E, diariamente também, era docemente interpelada pela voz da velhinha:
- Ó Alicinha, meu amor, hoje vai ter tempo para me enfiar algumas agulhas? É que já me restam muito poucas e se não fosse a menina…
A Alicinha rejubilava. Subia dois a dois os numerosos degraus de pedra que a separavam da velhinha e lá ia ela, sempre prestável, enfiar algumas dúzias de agulhas, de diferentes tamanhos e com linhas geralmente pretas e brancas. Era assim que a velhinha, já muito míope, conseguia fazer bainhas, deitar remendos e outros pequenos arranjos para pessoas que não sabiam ou não tinham tempo para o fazer. Ela não aceitava dinheiro, mas recebia com agrado pequenos mimos que todos lhe davam: na colheita das maçãs, nas vindimas, quando faziam a matança do porco ou quando coziam, no forno do povo ali ao lado, a sua fornada de pão para a semana. E também batatas, cebolas, azeite, que a velhinha vivia sozinha e só tinha de seu aquela velha casa.
A menina só pensava na falta que ela lhe iria fazer quando tivesse de partir para Lisboa. Nunca mais receberia uma deliciosa maçã ou um cacho de uvas que lhe soubesse tão bem e, sobretudo, lá se acabariam as histórias que a sua amiga velhinha ia desenterrar da memória, repleta de lendas, de curiosidades ou factos ocorridos ali mesmo, na aldeia muito antes de a menina ter nascido.
Mas numa esplêndida manhã de primavera, em que os campos, estuantes de vida, exibiam os novos rebentos das videiras e muitas flores por todo o lado, a velhinha não estava na sua varanda. Fora levada para o Porto, pela sua única filha, que julgou já não poder condescender com o desejo sempre manifestado pela mãe, de continuar no seu cantinho, a fazer arranjos para a maior parte das mulheres da aldeia, que eram todas suas amigas. À filha, argumentos não lhe faltavam:
- Ó Mãe, até parece que, além de a desprezarmos, somos tão pobres que a senhora tem de viver da caridade alheia.
- Não digas tal coisa, filha. Não faço trabalhos para ser paga, nem as minhas amigas me enchem de mimos como se fossem esmolas. É assim como a Alicinha: ela gosta de me vir enfiar as agulhas e eu gosto de lhe contar coisas que encheram a minha vida e histórias que sempre ouvi aos mais velhos. Doutros tempos. Mas reconheço que cada vez preciso mais que me ajudem e que já nem â missa posso ir por causa destas malfadadas escadas. Se a casa fosse ao rés da rua…
- Mas não é. E tanto eu como o Alberto temos dito muitas vezes: «Se a Mãe viesse cá para casa, ficava ela melhor e seria uma companhia para os nossos dois filhos, que tanto gostam dela e das suas histórias».
Depois de muita insistência, lá conseguiram convencê-la, sobretudo por causa dos netos, que só via no Verão e, ao partir, a deixavam mergulhada em tantas saudades que só a Alicinha conseguia mitigar.
Ao despedir-se de tão grande amiga, deixou-lhe uma cestinha de maçãs envoltas numa pequena toalha que bordara para ela e a decifração dum enigma: porque é que, durante um certo período, a velhinha tinha pedido que lhe enfiasse agulhas com linhas de várias cores, suaves e macias.
Ao receber o presente, a menina rompeu num choro convulso que só a promessa de se reencontrarem nas férias grandes teve força para estancar.