Nunca pensei que os "olhos do meu coração, no dizer de S. Paulo, revelassem pormenores por mim julgados completamente esquecidos...
Quarta-feira, 20.04.11

 

 

 

             Mal chegou a primavera e o sol atingiu com os seus raios escaldantes as copas frondosas das árvores e arbustos, muito ciosos dos seus botões ainda fechados, estes começaram a abrir com uma rapidez inaudita.

 

            As acácias, as alfarrobeiras, as gramíneas, as oliveiras e muitas outras espécies encheram os campos duma poalha dourada que, à primeira vista, até criava uma certa fascinação.

 

            Os plátanos não se ficaram atrás e as ruas da cidade apresentavam um ar baço, cheio de minúsculas plumas que esvoaçavam por toda a parte e dificultavam a visão do céu,

habitualmente límpido.

 

            A criança ia com o seu pai a caminho da escola e, como era a primeira vez que assistia a tão extraordinário espetáculo, ficou tão assombrada que começou a dizer ao pai:

 

            - Olha. Papá, que dança tão linda…Atchim!

 

              O pai tentou uma explicação, simplificada, para o seu menino de quatro anos e já tão observador:

 

            - Sabes, Afonso, essa é a dança do pólen, que, como tudo na vida, tem coisas boas… Atchim, atchim! e coisas más, conclui enquanto assoava o seu nariz e o do menino, ambos pingando como torneiras mal fechadas.

 

            Entretanto, tinham chegado à escola e a conversa quedou-se por ali.

 

            No dia seguinte era sábado e, no meio dos seus programas infantis, a criança passou por um anúncio que lhe chamou logo a atenção: eram imagens muito coloridas, em que os mais variados botões se defrontavam, numa autêntica guerra de pólen: uns, redondos, explodiam como balões, outros, em forma de canudo, eram autênticos canhões, mas todos a inundar o ambiente com uma densa camada amarela.

O menino não percebeu muito bem o que se estava a passar  e correu a pedir ao pai que lho explicasse. Resguardado  dentro de casa e com as janelas bem fechadas, o pai acrescentou àquilo o que, no dia anterior, os espirros lhe não tinham deixado concluir:

 

            - Lembras-te, Afonso, do que nos aconteceu com os  espirros? Foi por causa do pólen dos plátanos, que dá grandes problemas às pessoas que lhe são alérgicas. E são muitas… Então houve alguém que conseguiu criar um medicamento para essa sensibilidade ao pólen. E, claro, tratou logo de por esse anúncio na Televisão para fazer publicidade.

 

            - Que maçada isso do pólen, não é, Papá? Mas tu disseste que ele também tinha coisas boas. Quais são?

 

            - O pólen ajuda ao desenvolvimento das plantas, graças às abelhas, ao vento, às aves e até às pessoas que o transportam até elas. E há uma coisa de que tu ainda vais gostar mais: há as abelhas chamadas melíferas, que transportam o pólen para as suas casinhas, as colmeias e ali fabricam o mel, com que tu, tantas vezes, barras o pão do lanche.

 

            - E é tão bom! Se for do Vôvô, que tem muitas colmeias na quinta, ainda sabe melhor.

 

            - Porque esse é de rosmaninho. Mas há-os das mais variadas flores e são todos bons, se se tratar de mel puro.

 

            - Ó Papá, logo à noite, vou pedir ao meu Anjo da Guarda que proteja também as abelhas, tão boazinhas.

 

            - E olha que bem precisam, bem precisam.

 

                                   Lisboa, 15 de Abril de 2011

 

                                   Clementina Relvas

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publicado por clay às 19:21 | link do post | comentar | favorito
Sexta-feira, 08.04.11

                      

Meus queridos netos:

 

 

            Eu até já andava admirada porque o relógio estava ali havia já alguns meses e a menina, tão curiosa, ainda não tinha arriscado qualquer pergunta. Até que chegou o dia:

 

            - Ó Vóvó, o teu passarinho não canta?

 

            Ela era ainda muito pequena e só me ocorreu responder-lhe:

 

            - Canta daqui a bocadinho…

 

            A resposta não foi nada satisfatória, mas a atenção da criança foi desviada para o Vôvô, que vinha a  entrar em casa. Fiquei, contudo, a pensar como havia de satisfazer, sem trauma, aquela natural curiosidade. “Conto-lhe uma história de fadas, daquelas em que há seres encantados – pode até ser um príncipe – e fica o assunto arrumado”.

 

            Mas os anos passaram, a menina foi viver para o Algarve e, quando vinha a casa dos Vóvós, os dias eram tão excitantes que o passarinho nunca mais veio à baila.

 

            Até que uma vez, passados mais uns anos, havia outro netinho a fazer perguntas:

 

            -Ó Vóvó, o teu passarinho não canta?

 

             E não ficou por aqui:

 

            - Se calhar é porque ficou preso no relógio e ninguém deu por isso…

 

            As coisas não podiam ficar assim. O Zezinho, tão interessado em animais e em objetos mecânicos - máquinas fotográficas, computadores - não se contentaria com uma historieta qualquer. E como andava sempre às voltas com um Atlas do Corpo Humano, sabia, tanto quanto os seus poucos anos lhe permitiam saber, que os corpos morrem e podem ser embalsamados., como, aliás, já tinha visto numa exposição de dinossáurios. Achei que, por isso, tinha direito ao conhecimento dos factos:

 

            - Olha, Zezinho, este canário foi, durante muitos anos, um companheiro fiel da Bisavó Inês e do Bisavô José. A Bisavó dava-lhe de comer, água fresquinha, falava com ele na sua voz carinhosa e ele respondia-lhe, agitando as suas pequeninas asas e cantando sem cessar. O Bisavô chegava-se a ele e desafiava-o para a brincadeira sempre que, à sua volta, se falava de Timor, onde tinha passado muitos anos felizes mas, mais tarde, durante a II guerra mundial,  longe da família, quatro anos num campo de concentração japonês.

 

            Até que um dia, já o Bisavô tinha partido para o Céu, o coração daquela avezinha deixou também de bater. A Bisavó ficou inconsolável e não sabia que fazer daquele corpinho inerte. Valeu-lhe a ajuda do seu neto mais velho que conhecia, do Liceu, uma pessoa perita em embalsamamento de animais.

 

            Passado algum tempo, ei-lo que chega ao pé da Avó e lhe entrega, numa caixinha, o corpito do canário:

 

            -Tome, Avó. Bem sei que já não conseguirão conversar os dois mas pode vê-lo todos os dias. E até parece que está vivo, não é?

 

            A Bisavó ficou comovida e colocou o passarinho numa estante, bem à vista de todos.

 

            Até que ela também partiu para se encontrar com o Bisavô e, como no Céu não querem passarinhos embalsamados, só à solta e felizes nos seus cantos melodiosos, o canário ficou sozinho, lá em casa. Mas não por muito tempo, porque logo o vosso Vôvô, ao deparar-se com um antigo relógio a que, todos os dias, o Bisavô dava corda, achou que ali seria o melhor sítio para colocar a avezinha, como se dum relógio de cuco se tratasse. Seria aquela a sua nova gaiola, onde ouviria bater as horas e despertaria o interesse dos meninos que, entretanto, haviam de ir chegando, para animar a casa dos seus Avós.

 

                                               Lisboa, 31 de Março de 2011

                                               Clementina Relvas

  

publicado por clay às 09:49 | link do post | comentar | favorito
Domingo, 03.04.11

 

 

    Meus queridos netos:

 

            Há dias a Cristininha mostrou a sua estranheza por, ao contrário do que me vê fazer, nunca se ter confessado nem comungado. Veio avivar em mim uma preocupação profunda, desde que vi passar os anos sem que os seus Pais a inscrevessem na Catequese.

 

            Então ela perguntou-me:

 

            - Vóvó, tu dizes que eu fui batizada, portanto sou católica, não é? Tenho andado a pensar nisto e como, agora que vou fazer dezasseis anos, tenho lido algumas coisas sobre o budismo que me têm impressionado, digo, para mim mesma que, se um dia tiver filhos, esperarei que atinjam a idade em que tenham capacidade para escolher a religião que preferem. Que pensas destas minhas hesitações?

 

            Pensei um pouco e respondi-lhe com as palavras da Mensagem Quaresmal do Papa Bento XVI:

 

           - Filhinha, “ o Batismo que se recebe quando somos crianças põe em evidência que se trata dum dom de Deus: ninguém merece a vida eterna com as próprias forças”.

 

           Depois, e para me tornar mais próxima dela, referi-lhe um caso dramático da minha vida:

 

           - Olha, o meu primeiro filho, teve um grave traumatismo de parto. Na altura, os médicos diziam-me que não ia sobreviver muitos dias e, se sobrevivesse, ficaria limitado a uma vida vegetativa, hipóteses que, no meu desespero, eu me recusava a aceitar. Dois dias depois, começaram a dizer-me que tivesse esperança num novo tratamento que lhe estavam a ministrar, mas, não sei explicar porquê, o meu coração convenceu-se de que, em breve, iria perder o meu bebé.

 

            Nessa convicção, liguei para o Vôvô e pedi-lhe que viesse quanto antes à Maternidade de Luanda, com um sacerdote para batizar o nosso filho. Apesar de já ser noite, não tardou muito a chegar, pois, no caminho da nossa casa para a Maternidade ficava a Igreja da Sagrada Família, onde havia sempre, durante toda a noite, um capuchinho de vigília que logo se dispôs a aceder ao seu pedido.

 

           O menino foi batizado e morreu duas horas depois. Embora mergulhada numa depressão profunda, havia uma Luz no meu coração: o meu filho tivera o seu encontro com Cristo e seria, daí em diante, um dos Seus anjos a velar por nós.

 

           Escrevo esta carta a pensar na Mensagem do Santo Padre para esta Quaresma, em que, evocando os Evangelhos deste tempo de caminhada até à Páscoa, ele dá particular relevo às promessas batismais, celebradas no Tríduo Pascal e sobretudo  na Grande Vigília da Noite Santa. Aí reafirmamos que Cristo é o Senhor da nossa vida “, daquela vida que nos comunicou quando renascemos ”da água e do Espírito Santo”.E, como o cego da piscina de Siloé, também nós reafirmamos : “ Eu creio em Vós, Senhor”.~

 

          Exige-me também estas reflexões a notícia lida há dias na imprensa, em que se dizia que um grupo de católicos queria exigir a anulação do seu Batismo, recebido quando ainda eram crianças e não sabiam tomar decisões. Como se o Sacramento do Batismo, um dom gratuito de Deus que nos faz morrer para o pecado e participar da vida nova de Cristo Ressuscitado, fosse um acessório de que cada um de nós pudesse prescindir a seu bel-prazer. Cristo morreu por nós e ressuscitou mas, pelo Espírito Santo, fica connosco até ao fim dos tempos para nos salvar a todos.

 

        E é nessa caminhada quaresmal, alicerçada no jejum, na esmola e na oração que nós podemos encontrar-nos com Cristo, pelo caminho da conversão, rumo à Páscoa.  

 

                                               Lisboa, 1 de Abril de 2011

                                               Clementina Relvas

 

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