Meus queridos netos:
S. José tinha comprado aquele burrinho, há pouco mais dum mês, a um vizinho que, com algumas dificuldades para sustentar cinco filhos, quase lhe tinha implorado esse favor.
Era um burro cinzento prateado, de farta pelagem, que lhe desenhava, na testa, uma estrela estranhamente perfeita. Esta parecia um sinal de grandes coisas futuras e assim havia de ser.
Passado pouco tempo, S, José teve de ir a Belém, para se recensear e, claro, levou Maria consigo, embora com algum receio, porque ela estava em vésperas de dar à luz. Mas não havia nada que os pudesse separar.
S. José, tomando todas as precauções, instalou Nossa Senhora no dorso do burrinho, cujo coração quase estalava de alegria, pois tinha o pressentimento de transportar o mais valioso tesouro, embora não soubesse qual.
Ao chegarem a Belém, e depois de terem procurado em vão, um lugar para pernoitar – as estalagens estavam superlotadas com os forasteiros que procuravam recensear-se – tiveram de se acomodar num recanto duma estrebaria já fora de serviço, mas onde ainda estava, junto a uma velha manjedoura, um boi solitário, providencial como veremos.
Não tardou que, para espanto de S. José, Maria, sem dor e sem gemidos, recebesse em seus braços um bébé rechonchudo e sorridente, que não precisou de levar nenhuma palmada, pois era de livre vontade que se defrontava com este mundo.
Como estava bastante frio e Nossa Senhora não quisera sobrecarregar o burrinho com um enxoval, ainda que modesto, o Menino, envolto nos poucos agasalhos disponíveis, teria sentido algum desconforto se o burrinho, como se tivesse previamente combinado com o boi, não se juntasse a este para, juntos, o aquecerem com o seu bafo.
E ambos ficaram embasbacados ao olharem para o Céu e ao verem, lá em cima, uma multidão de anjos vindos de toda a terra para cantarem em coro: “Hossana, hossana, hossana nas alturas” e outras palavras maravilhosas que jamais tinham ouvido.
O burrinho cinzento pensou, de si para si, que nunca mais teria uma felicidade tão perfeita, mas bem se enganava ele.
Ainda houve dias felizes: vieram os Magos, que adoraram o Menino e lhe ofereceram valiosos presentes. Mas, mal os Magos partiram, S. José aproximou-se do burrinho, colocou-lhe no dorso a velha albarda e, como era seu costume nos momentos importantes, começou a falar com ele em voz baixa: “Mais uma viagem, burrinho e, desta vez, talvez tenhamos muito que penar. Mas eu tenho de fazer o que o Anjo me disse e partir imediatamente com Maria e o meu filho para as longes terras do Egito e assim escapar à ira sanguinária de Herodes. Desta vez vais ter de ir um pouco mais carregado mas faremos as paragens necessárias para tornarmos esta viagem tão amena quanto o Senhor dispuser”.
O burrinho não cabia em si de contente: ia transportar de novo Nossa Senhora e o Menino, salvando-lhes a vida. Que mais poderia desejar um animal modesto como ele? Mas a realidade ia superar em muito os seus desejos.
A família de Nazaré ocupou uma humilde cabana num recanto isolado, perto do Nilo. Dali, além de puderem entreter-se com a movimentação das falucas sobre as águas, tinham, mesmo à mão de semear, ervas verdes e tenrinhas, pastos abundantes, onde o Menino levava muitas vezes o burrinho que se regalava com aquela comida requintada para quem, como ele, tinha passado muitas privações nos desertos da Galileia. E até, muitas vezes, o Menino que, entretanto, se tornara o seu melhor amigo, lhe trazia pequenos feixes de erva, com um gosto tão especial que o burrinho não encontrava nada tão bom a que o pudesse comparar.
Passado bastante tempo, S. José voltou a desabafar com o burrinho: “Olha, vamos regressar a Nazaré, pois, como morreu o rei Herodes, agora o nosso Menino já não corre nenhum perigo. Além disso, estou ansioso por ver em que estado se encontra a minha carpintaria, tanto tempo ao abandono. Sei que é uma longa viagem, que o Menino já pesa bastante mas, como quero levar algumas peças de carpintaria que fui fazendo aqui, já arranjei um camelo que nos será de grande ajuda.”
O burrinho relinchou de alegria e lá se meteram a caminho, até chegarem a Nazaré, o que levou o seu tempo. Durante muitos anos, toda a gente se admirava: onde estivesse Jesus, aí se encontrava o burrinho. Até que, já muito velho e doente, morreu com Jesus a seu lado, comovido até às lágrimas pela perda do seu amigo.
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E só muito mais tarde, quando Jesus já era, no coração de muitos, o rei dos judeus e de toda a humanidade, veio a procurar outro burrinho, um que nunca tinha sido montado. Os discípulos cobriram-no com os seus próprios mantos e Jesus fez dele o trono real, dum rei modesto como jamais houvera sobre a terra, mas que as multidões aclamavam: “Bendito seja aquele que vem em nome do Senhor!” e, como alguns fariseus queriam que Jesus mandasse calar a multidão, o Messias respondeu, com a autoridade de Filho de Deus: “Eu digo-vos: se eles se calarem, as pedras gritarão”.
O jumentinho não compreendeu, claro, o que Jesus quisera dizer. Mas também não admira porque muitos dos que O seguiam, e até alguns dos seus discípulos, só muito mais tarde vieram a reconhecer em Jesus o verdadeiro Filho de David e Salvador de todos os que n’Ele acreditaram, mesmo sem terem compreendido.
Lisboa, 12 de Junho de 2011
Clementina Relvas