Nunca pensei que os "olhos do meu coração, no dizer de S. Paulo, revelassem pormenores por mim julgados completamente esquecidos...
Quarta-feira, 28.09.11

       Conheci-a por intermédio do seu Pai, quando andava na Faculdade de Letras. Tínhamos ganho, cada uma de nós, uma bolsa de estudo para a Universidade de Poitiers, por nos termos distinguido, a M…. no primeiro ano e eu no segundo, na disciplina de Francês. Ora, filha única e muito acarinhada, os Pais receavam deixá-la partir para um mundo desconhecido e viram em mim, um pouco mais velha, a companhia e suporte de que talvez viesse a necessitar.

 

      E lá partimos as duas, no Sud-Express, a caminho de Pau, onde funcionava, no Liceu Henri IV, a Universidade de Verão, onde iríamos aperfeiçoar os nossos conhecimentos daquela língua estrangeira.

 

      A cidade era pacata e lindíssima e ali nos reunimos a mais algumas colegas, uma das quais, a Maridith, ali se encontrava com os Pais, pessoas cultas e amáveis, sempre preocupados connosco.

 

      Ficámos ambas instaladas, cada uma em seu quarto, numa casa particular, indicada pelos serviços universitários e de que era proprietária uma simpática senhora, parente já afastada do poeta Péguy, que ainda chorava a sua morte prematura na já longínqua Primeira Guerra Mundial, na Batalha do Marne. Tomávamos o pequeno-almoço com ela e as restantes refeições, geralmente demasiado frugais, dadas as restrições da Segunda Guerra, no refeitório do Liceu Henri IV. Era também numa das suas salas que todos, de diferentes países, nos juntávamos para conviver e dar o nosso passo de dança. Tínhamos um jornal semanal, a que tinham dado o nome de «Pot Pourri», com informações úteis, pequenos artigos culturais e, como o nome fazia supor, alguns apontamentos humorísticos.

 

       As aulas, ministradas por professores competentes, eram complementadas com várias e interessantes visitas de estudo: ao Santuário de Lourdes, às grutas de Bétharram, aos cumes nevados do Col d’Aubisque, à preciosa igreja gótica de Poitiers, com os seus maravilhosos vitrais e estatuária e a outros locais de interesse.

 

      Ora, para praticarmos o francês e não sermos tentadas pela comodidade da língua materna, combinámos que, durante esses passeios, ficaríamos sentadas junto de algum dos muitos estrangeiros que frequentavam o curso. Claro que, à excepção dum holandês e dum numeroso grupo de professores do ensino primário, oriundos da Argélia, quase todos se exprimiam com menos rigor do que nós, portugueses.

 

      Além dessa característica, éramos também extrovertidas e alegres, pelo que nos não foi difícil a integração em grupo tão heteróclito. Éramos muito solicitadas e todas arranjámos correspondentes pelo tempo que duram estas amizades.

 

      Mas a M…. Bem, a M… que, no último dia, se tinha sentado ao lado dum professor argelino, elegante e tão bonito que, na linguagem das jovens da época, todas considerávamos um «pêssego», tinha-se comprometido a manter com ele uma correspondência que, em breve tomaria uma feição amorosa. Ele gostaria de se ter casado na Páscoa seguinte, mas uma doença inesperada fê-lo adiar o casamento por algum tempo. Entretanto, eu ia pondo de sobreaviso a minha amiga: «Que não conhecia o rapaz nem a respectiva família, que até podia ser casado, para já não falar das mudanças radicais a que a sua vida iria ser submetida».

 

     E eis senão quando, naquele Verão, o G… visita Lisboa com vários familiares e se instalam todos num hotel, donde várias vezes partimos os três em pequenas saídas turísticas, de que recordo, com saudade, um passeio à capelinha de Monsanto, um jantar no Ginjal e outros momentos igualmente prazerosos.

 

    O casamento realizou-se em Algés, numa cerimónia íntima para família e amigos próximos, onde tudo era ofuscada pela beleza dos noivos. Não sem alguma angústia dos Pais, que iam ver partir a filha para longe, não só no espaço como no ambiente familiar e social dum país, a Argélia, onde as convulsões que levariam à independência já começavam a fazer-se sentir. Ainda foram visitá-los algumas vezes mas, em breve, eles tiveram de regressar a França, tendo-se instalado nos Pirinéus, onde o romance começara.

 

     Não posso escapar a um hiato nesta minha narrativa, pois, pouco tempo depois, também eu casava, partia para Angola e as nossas relações perderam muito da intimidade e partilha da juventude. Mesmo assim, fui a Madrinha da filha mais velha – outra haveria ainda de nascer – e, passados sete anos em que, pela primeira vez regressei a Lisboa, em gozo de férias e também já com dois filhos, reatámos o convívio, agora enriquecido pelos dois maridos que logo ficaram amigos. Levámo-los a conhecer o belíssimo triângulo turístico da Serra de S. Mamede (Portalegre, Marvão e Castelo de Vide) e quando, também nós, tivemos de regressar de Angola devido à descolonização, víamo-nos sempre no Verão e festejávamos juntos, num grupo de familiares e amigos, o aniversário da M…, que ocorre no mês de Agosto e é sempre celebrado com um acróstico de parabéns da autoria do Marido.

 

     Também nós fomos, por mais do que uma vez, visitá-los a Bayonne e demos, com eles, fascinantes passeios pelos Pirinéus.

 

     Eu sempre mantivera a amizade dos seus Pais, de cuja casa parti, com eles, para o meu casamento em Fátima e que me consideravam como uma segunda filha.

 

     Mas como contar tudo o que aconteceu? Os filhos cresceram, deram-nos a ambas, alegrias e desgostos, vieram os netos, a minha Mãe faleceu primeiro, juntando-se ao meu Pai que nos tinha deixado há muito, os Pais dela também partiram e nós por cá continuamos, rendidos às novas tecnologias e comunicando semanalmente por email, com uma velha amizade inquebrantável e também sem fronteiras.

 

                                                             Clementina Relvas

 

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publicado por clay às 23:27 | link do post | comentar | favorito
Sábado, 17.09.11

         Era a mais velha das três raparigas daquele modesto casal de dez filhos. Os pais, embora tivessem estado alguns anos no Brasil, apenas os necessários para poderem regressar e comprar, na pequena aldeia do Alto-Douro, algumas terras que lhes garantissem uma vida sem privações e sobressaltos, viram-se, a certa altura, confrontados com a necessidade de alimentarem e vestirem tão numerosa família. O que não era fácil, embora a base da subsistência se resumisse aos bens provenientes dos campos que cultivava e aos animais domésticos criados para esse fim.

 

         E, claro, à medida que chegava mais uma boca, começavam os mais velhos a ajudar nas tarefas do campo, mesmo quando ainda frequentavam a escola primária, o que todos fizeram até ao exame da quarta classe.

 

         A Mariana, essa nascera para outros voos e com uma brilhante estrelinha a guiá-la: acabada a instrução primária e quando a Mãe já começava a habituar-se a tê-la no papel de ama dos irmãozitos que, entretanto, foram nascendo, o Pai, que então já tinha sido escolhido para Presidente da Junta da sua freguesia, procurou fazer a primeira finta ao destino: deitou contas à bolsa, onde não havia muito para contar e mandou a Mariana para casa duma Tia no Porto, a fim de aí frequentar o curso, então ainda muito elementar, de professora do magistério primário.

 

        Acabado o curso com boa nota, foi colocada na escola primária duma pequena aldeia da Serra da Cabreira, no Baixo Tâmega.

 

        A paisagem era diferente daquela que a vira crescer: mais montanhosa, a atingir os 1.262 m no Alto do Talefe que, (tal como o seu saudoso embora longínquo Marão) nunca chegara a ver de perto, era salpicada de vales verdejantes e de verdejantes pastos, destinados à agricultura e pastorícia. As oliveiras e vinhas da sua terra cediam aqui o lugar a soutos e pinhais, e, oposta à secura daquele seu Alto Douro já casado com Trás os Montes, os rios grandes como o Tâmega, ou o Ave, a principiar ali o seu curso para ir desaguar lá longe, em Vila do Conde ou mesmo o pequeno Saltadouro tornavam fértil e aprazível aquela zona serrana. Além de pequenos passeios nos arredores com a pequenada, pouco tinha visto da Serra: fora uma vez, a convite dos pais dum dos seus alunos, de longada até ao Mosteiro de S. Miguel de Refojos, uma relíquia do séc. XII e, então sim, tivera a ocasião de se espantar com a profusão de capelas e fontanários de granito dispersos na paisagem. E, admiração ainda maior, as numerosas cabanas, simples tugúrios de pedra no meio do mato, onde se acolhiam os pastores quando era a sua vezeira. E pensar que até então só conhecera o grande e único rebanho que servia todos os proprietários da aldeia, alugado por estes para estrumarem biologicamente as suas covadas de trigo ou de batatas.

 

      Já com as casas foi diferente. Todas eram feitas em granito à vista (a dos seus pais era das poucas  caiadas), e compostas por dois pisos: o térreo para recolha de alfaias, produtos agrícolas de longa duração, feno e também alguns animais, geralmente um porco de engorda e um cavalo; o primeiro piso era destinado a habitação, e tinha, pelo menos uma grande sala, alguns quartos pequenos, uma cozinha com lareira de chão e, raramente, uma rudimentar casa de banho. O acesso fazia-se por escadas de xisto, pelo interior da casa ou pelo exterior, neste caso terminadas por uma varanda mais ou menos vistosa e que era sempre enfeitada por vasos de gerânios, cravinas e outras, desde que dessem flor.

 

      Ficou na Serra o tempo dum ano lectivo, que as saudades eram muitas e moíam, moíam… Mas ainda viu toda a paisagem circundante coberta de neve, fantasmas amigáveis que raramente apareciam na sua pequena aldeia.

 

      Ficou na Serra um único ano lectivo, que as saudades eram muitas e moíam, moíam… E também a lembrança dum certo pretendente, abastado proprietário que nunca tinha desistido de a cortejar. Além disso, vagara, muito oportunamente o lugar de professora e assim tudo se conjugou para que a sua vida tomasse um rumo que parecia pré-determinado.

 

      Casaram na igrejinha da terra, numa cerimónia familiar mas calorosa, embora alargada aos poucos habitantes da aldeia, já que todos eram como parentes. E Mariana foi viver para a casa que o noivo já possuía, uma casa típica como a de seus pais, igualmente espaçosa, mas com um traçado mais recente e racional. Tinha três grandes salas, cada uma com dois pequenos quartos anexos, pequenos mas dotados de janelas que os tornavam úteis e funcionais. A cozinha tinha chão de lajes, lava-loiça de granito e lareira de chão mas com chaminé e era tão ampla que nela cabia  um enorme preguiceiro em pau de carvalho, com gavetas onde sempre havia muitos jornais e alguns livros. E tinha uma enorme casa de banho também de xisto, essa sim ampla e dotada de toda a comodidade, embora lhe faltasse, como aliás em toda a aldeia, o bem que todos tinham como mais precioso e só muitos anos depois seria tornado real: a água canalizada. Valia-lhes a água do poço, aberto na loja correspondente àquela divisão e a que um pesado alçapão a abrir para um lanço de escadas de madeira dava acesso. Era na loja do poço que se guardava a palha e o feno para o cavalo, abrigado na loja ao lado.

 

      Ora bem. Era assim a casa que acolheu a Mariana. Ela preparou a primeira sala, a seguir ao corredor de entrada, para sala de jantar e de convívio, da segunda fez o confortável quarto de casal e, para lhe facilitar ávida profissional aceitaram alugar a terceira grande sala, com entrada directa para a rua, à Junta de Freguesia, que ali instalou a sala de aulas, com as quatro classes que somavam uns trinta e tal alunos que iam dos seis aos dezasseis anos ou mais. Os quartinhos dessa sala foram destinados um, a guardar os mapas, incluindo o globo e o mapa- mundi, os pesos e medidas e outro material escolar; o outro ficava, desde o Outono ao fim do Inverno, com prateleiras e o próprio chão cobertos de maçãs e uvas de mesa, nozes, amêndoas, e depois os figos secos e as castanhas. Estava sempre fechado à chave, não fosse o diabo comê-los, e só em recompensa dum trabalho excepcional ou dum comportamento heróico a senhora professora levava a mão ao molho de chaves e entregava ao laureado uma maçã camoesa, um esplêndido cacho de uvas ou um punhado de frutos secos. Mas todos se regalavam com o cheirinho bom de que antes mal se apercebiam e agora saía em generosas lufadas pela porta entreaberta.

 

     A senhora professora. Com o velho pároco e o presidente da junta, que como já referi era o seu Pai, não havia ninguém mais importante na aldeia. Aumentara, aliás, o prestígio do seu marido, esse sempre muito metido consigo desde que tiveram a certeza de que não poderiam ter filhos. Ficavam vazios os outros quartos mas não o coração de Mariana. Dedicava aos seus alunos todo o seu sentimento maternal e o tempo que lhe não faltava pois tinha apenas de orientar a criada nas lides domésticas que, aliás, não eram muito do seu gosto. Era o que se podia chamar com precisão uma professora a tempo inteiro.

 

      Talvez por saber disso e também para ter uma ajuda no trato das terras, em breve o Sr. Ferreira contratou um jovem casal para o qual mandou construir, de raiz, uma pequena moradia de dois pisos e assim ficavam, dia e noite, independentes mas acompanhados. Espaço não lhe faltava, nas traseiras da casa principal e assim surgiu o enorme galinheiro que a todos enchia de pasmo e onde abundavam galinhas, patos, perus e coelhos. Talvez inspirado na casa do sogro , cujas serventias tinham lugar no grande quintal da nogueira, mudou o porco para um chiqueiro lá fora. Só o cavalo continuava na loja, por baixo da sala de aulas, não só para o preservarem de intempéries como por ser, digamos assim, quase que da família e um dos adjectivos da senhora professora. Quando chegava a época de exames, lá ia ela até Tabuaço, montada no seu cavalo castanho, mas não duma forma qualquer. Tinha uma sela de couro muito bem gravado e montava à amazona, com os dois pés para o lado direito e a rédeas bem seguras com mão firme mas bondosa. Era uma longa viagem com a descida sinuosa das Voltas até à Ponte do Rio Távora e a íngreme subida dum longo caminho pedregoso até à Quinta do Convento. Era perto daí que se ia apanhar a estrada para Tabuaço, onde contava ter muitas alegrias com o sucesso dos melhores alunos e algumas decepções com a prestação de outros, poucos, que repetiam os anos até que a barba se fazer notada.

 

     Então, a senhora professora não se esquecia dos seus outros adjectivos: tailleur um tanto fora de moda, um chapelinho de feltro, cinzento, adornado por vistosa pluma ou o seu substituto, de palhinha azul com uma rosa  de seda creme; uma pele de raposa, com olhos de vidro, imaginem, ainda que já fosse Verão; e uma malinha de médico, de couro castanho, forma oblonga e arredondada que o marido lhe oferecera num dos seus primeiros natais.

 

     Fosse como fosse, também na vila a respeitavam pelos bons resultados que obtinha graças a uma rara dedicação ao seu magistério. E pelo bom nome, seu e de seu marido, que a si mesmo se chamava o príncipe consorte.

 

     E com sorte, os dois, porque em breve os jovens caseiros lhes anunciaram a chegada duma menina, seguida dois anos depois, por um rapazinho. Vieram colmatar uma brecha no coração do Sr. Ferreira, sempre inconformado com a falta de herdeiros a quem deixasse os seus bens.

 

     Por pouco tempo se gozou desta bênção, como ele lhe chamava. Ainda os viu dar os primeiros passos, teve o gosto de ser chamado Papá, embora soubesse que para as crianças era sinónimo mas não se confundia com Pai. Mas, mal tinham dado os primeiros passos na Escola, tiveram de se habituar à sua ausência. Fora fulminado durante a noite por um ataque cardíaco, que ainda lhe deu tempo de balbuciar:

 

     - Não te esqueças, Mariana. São os nossos verdadeiros filhos…

 

     Não se esqueceu, nem podia. Deixaram de viver em casas separadas, e assim se foi esbatendo, ainda que devagar, a sua precoce solidão. Foi a sua professora até à quarta classe e, mais tarde, viu-os partir a caminho da Universidade. A menina quis ser professora e o rapaz escolheu medicina. Este poderia ter acrescentado alguns anos à sua vida, se, ao ser atingida por um cancro do ovário, aceitasse a sua ajuda. Mas, quando ele lhe dizia que tinha de ser observada e tratada, ela respondia peremptoriamente:

 

    - Escusam de insistir. Nenhum médico, e muito menos tu que sempre tratei como filho, há-de olhar para as minhas entranhas. Só o meu marido me conheceu. E se Deus tivesse querido que outra pessoa partilhasse com ele esse dom de mim, ter-me-ia dado o filho que tanto desejei oferecer-lhe.

    - Nâo seja casmurra, Mamã. Eu tratá-la-ia com todo o respeito e carinho, mas qualquer dos meus colegas teriam, para consigo, o mesmo comportamento.

 

Tudo em vão. A barriga foi-lhe crescendo e, ironia do destino, dir-se-ia que estava grávida. Estava sim, mas daquele monstro que lhe ia minando as entranhas e que só a presença e os remédios do seu filho médico conseguiam atenuar. E assim se foi apagando e partiu na presença dos dois filhos, dos empregados que se tinham portado como verdadeiros familiares e de alguns alunos que sabiam ter ocupado um importante lugar nos seus afectos e devoções.

 

            Clementina Relvas

 

 

 

     

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Sexta-feira, 09.09.11

                 

 

É um baú imaginado e tornado real, donde vão sair, não como num passe de mágica mas à custa de muito trabalho e determinação, os brinquedos que não encantaram a sua infância, modesta e afastada dos centros do grande consumismo.

 

É que ele há vidas assim…

 

Esta começou com histórias inventadas e contadas pela Mãe, à volta da lareira, naqueles invernos infindáveis que gelam a água das torneiras e deixam frieiras nos dedos expostos de crianças e adultos.

 

Era um mundo pequenino, em que até os cenários das histórias eram reais e próximos e só a imaginação se esforçava, muitas vezes sem êxito, por alargar.

 

Esses horizontes cresceram com a Escola Primária, onde conheceu nomes de cidades, montanhas e rios que também se quedavam na inquietação do «como será?». Os estudos secundários ainda decorreram, quase até ao fim, ali, na vila vizinha, onde os socalcos do Douro se acentuavam até formarem aquela paisagem mítica, que mal se acredita ser o fruto do trabalho do Homem.

 

As suas raras incursões pelo Porto, onde já viviam dois irmãos, é que vieram a revelar-lhe o significado de «cidade» e, também, dum grande rio que a encaminhou até ao mar. Não teve medo, só espanto, daquela imensa massa de água onde sentia que, com as devidas precauções, poderia aventurar-se a nadar como no pequeno rio da sua aldeia, cujos pegos e recantos se lhe tornaram familiares desde muito cedo.

 

Foi no Porto que terminou os estudos secundários e teve de  fazer a primeira grande escolha da sua vida: o Curso Superior que lhe abriria as portas para outros mundos, estes, agora, bem mais vastos e complexos. A Arqueologia não lhe dizia grande coisa, mas dava-lhe a oportunidade de encetar o caminho: ir para Lisboa, onde todos os sonhos tornavam focos de luz a perseguir como estrelas benfazejas.

 

Foi assim, e com uma dessas estrelas a brilhar só para ela, que ganhou um prémio para conhecer a Itália, nomeadamente Roma e um dos cumes da Arqueologia mundial: as ruínas de Pompeia. E a estrela não se desvaneceu: no ano seguinte, novo prémio, desta vez um cruzeiro às fascinantes Ilhas Gregas. Mas nem assim, com todo este mel inesperado, a Arqueologia se lhe tornou indispensável, como devem sempre tornar-se os rumos que decidimos seguir.

 

Fascinada pela língua italiana, procurou desenvolver essa aptidão. E foi no Instituto Italiano que um novo caminho se lhe abriu, através do conhecimento com um jornalista que em breve a convidou para publicar pequenos trabalhos no jornal onde trabalhava e acontecia ser o mais importante do País.

 

Com o Curso terminado, logo foi chamada a colaborar no jornal de forma mais efectiva, o que lhe permitiu percorrer o País de lés-a-lés, com vista à apreciação de hotéis e restaurantes e à elaboração de roteiros com sítios inesquecíveis. Isso sim, era o molde que assentava à sua personalidade e aos seus interesses, mas que teve o seu tempo e terminou.

 

Passou então a assumir o estatuto de verdadeira jornalista, com as grandes entrevistas a pessoas que a fascinavam pela sua inteligência, carácter e percurso de vida.

Havia, porém, um bichinho lá dentro, a espevitar o seu espírito de aventura e desejo de não se deixar cristalizar numa tarefa que se tornara rotina.

 

Depois dum casamento feliz, tinha agora dois filhos pequenos a que desejava dedicar mais tempo. E foi aí que surgiram «Os brinquedos do Baú», encontrados, por acaso, numa pausa de lazer. Foi como se tivesse regressado ao mundo de criança, dos sonhos fora do seu alcance que, por mais que estendesse as mãos, jamais conseguira alcançar.

 

 Agora sim, podia deliciar-se com aqueles brinquedos que recriavam os antigos: aviões, carros, carrosséis, servicinhos de chá e até uma perfeita reprodução do Titanic. E sentia-se feliz de cada vez que uma senhora de idade parava junto da sua montra e comprava, ou simplesmente namorava, um brinquedo para um dos seus netos.

Mas não se ficou por ali: tinha um dom especial para desencantar todas as coisas deliciosas que condimentam a vida das pessoas afortunadas e, com todo o carinho e muito trabalho, criou também uma cadeia de venda de produtos gourmet.

 

Por enquanto, ainda não encontrou mais tempo livre para os filhos pequenos, mas, com tanta fé e determinação, não tardará a fazer da sua vida um sonho realizado  que nunca deixou de sonhar e de perseguir.

 

                Clementina Relvas

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