Era uma velha poltrona, bem sólida, feita em madeira de pau preto por um artista tão preocupado com a robustez das suas peças, como com a marca nelas deixadas pelo seu talento e bom gosto. De facto, os braços e as costas – forradas com um mimoso veludo - utilizado também para o assento, eram um exemplo da capacidade inventiva do artista: flores e folhas entrelaçavam-se graciosamente em grinaldas, donde espreitavam aves exóticas, de cabeças e caudas elegantes e cheias de expressividade. Embora não tivessem muito relevo, principalmente nos braços, para salvaguardar a comodidade dos que nelas se sentavam, eram o espanto de quantos, pela primeira vez, se deparavam com aquela rara peça de mobiliário.
Ocupara um lugar nobre no salão e nela se sentaram convidados ilustres. Que saudades desses bons tempos idos! Mais tarde, quando as visitas começaram a rarear, tornou-se o lugar preferido do Avô para fazer a leitura matutina do seu jornal, antes de o passar à Avó, que não dispensava o folhetim. Com o advento da Televisão, foi causa de muitas disputas por tão cómodo assento mas a verdade é que, a maior parte do tempo, para ali ficava a assistir ao desbotar dos seus estofos rosa velho.
Quando chegaram os netos, foi o bom e o bonito: é certo que já estava bastante desfigurada, mas não resistiu às injúrias deixadas pelos traços dos lápis de cor usados pelas crianças nos desenhos que faziam, colocando o caderno no assento e ajoelhando diante dela.
Era ali que gostavam de desenhar e também de fazer jogos de vídeo. Uma espécie de magia, parte integrante das visitas aos Avós. Parecia-lhes um cadeirão saído dum conto de fadas. Mas, enquanto iam crescendo, era vê-la decair sem remissão, mergulhada na tristeza da velhice e do abandono
A princípio, a Mãe ainda disse:
- Não devíamos ter permitido tal coisa… Um móvel tão antigo, tão bonito, com um trabalho manual como já raramente se encontra nos dias de hoje…
Mas o Pai, manifestou uma opinião bem diferente:
- Deixa-os brincar à vontade. Isso é uma velharia que já não condiz nada com a nossa casa, de design minimalista. Se não fosse por me lembrar os meus Pais, já a tinha posto no lixo, mas há que tempos!
E os anos foram passando. Os meninos estavam quase a terminar os seus Cursos e o mais velho
já só falava em casar. Não tardou que comprasse casa e começasse a mobilá-la. E um dia disse para o Pai:
- Olha, Pai, eu gosto tanto daquela poltrona que era dos Avós! Se tu ma desses, pedia a um rapaz
meu amigo, designer e acérrimo defensor da Natureza – e viciado em reciclagem, tenho de admitir - que me fizesse dali uma peça gira e moderna.
- Ah! Julguei que a querias pôr em lugar de honra na tua casa mobilada com móveis do Siza Vieira. Que horror!
- Não exagere, Pai. O que é bom e bonito, não se desvaloriza assim e, como já deve ter notado, agora até é moda misturar estilos: clássico e moderno, clean e exótico, às vezes francamente kitch o que já não é do meu gosto. Mas o que eu tinha imaginado era transformar a velha poltrona numa peça decorativa, menos para utilizar e mais usufruir da perfeição daqueles ornatos.
- O.K. Por mim, podes levar esse mono, que agora já não utilizo. Prefiro o meu confortável sofá para ver televisão e que, confesso, também me proporciona uma boas sonecas.
E lá foi a velha poltrona submeter-se ao variado ferramental do designer.
Este, ao vê-la, ficou fascinado e pôs logo a sua fértil imaginação a trabalhar : carrinho de chá, caminha para bebé, um medalhão para a parede, depois de substituído o coçado e sujo veludo por um acrílico alegre, moderno. Esta ideia era talvez a que mais lhe agradava, mas criou-lhe um problema: e os braços, tão delicadamente trabalhados?
Decidiu-se pelo carrinho de chá, até porque o amigo lhe disse que não tencionava pôr nada nas paredes, enquanto não tivesse dinheiro para comprar dois ou três quadros, originais: uma Maluda, uma Paula Rego, um Pomar. Não todos duma vez, claro, se não lá ficariam as paredes desguarnecidas até que ele já fosse velho. Mas havia que dar tempo ao tempo.
E pronto. Decidiu-se pelo carrinho de chá. Com a moldura das costas da poltrona. uma ampla área em forma de ferradura, fez o tampo do carrinho, depois de substituído o veludo por um grosso vidro, tão transparente que parecia cristal. Um dos braços foi aproveitado para fechar o espaço do tampo e com o outro fez, desse lado, um pegador, elevado, para empurrar o carrinho. Ainda lhe cresceram uns troços de madeira trabalhada que vieram mesmo a calhar para acrescentar os pés, demasiado curtos para seu gosto Aplicou-lhes uma rodinhas que encontrou no sótão e que deviam ter pertencido, sabe-se lá quando, a um brinquedo esquecido.
Ao fim de alguns meses, numa das visitas dos Pais ao jovem casal já instalado, nem queriam acreditar no que os seus olhos viam:
- Onde é que foram desencantar este maravilhoso carrinho de chá? Faz-me lembrar qualquer coisa, mas não consigo identificar o quê … disse a Mãe.
- Bem se vê que, como quase sempre, te esqueceste dos óculos. Então onde é que viste entalhes feitos na madeira com tão refinada arte?
- Ah! A velha poltrona! Quem havia de dizer… Olha que eu, embora ainda me não tenha habituado a certas modernices que por aí vejo, fiquei maravilhada com este carrinho, tão original na forma e tão improvável pela arte e paciência que exigiu e que tanto escasseiam numa sociedade apressada como é a nossa.
- Ó Mãe, e olhe que ele só foi feito com material que havia lá por casa. E o talento e criatividade do meu amigo, claro.
- Pois. Lá diz o provérbio: «Do velho se faz novo.» - disseram os Pais, em coro.
Mas a Mãe, que gostava sempre de ter a última palavra, acrescentou:
- Só é pena que esse provérbio se não aplique também às pessoas…
- Lá iremos, lá iremos – retorquiu o Pai. Parece que nunca ouviste falar de transplantes de órgãos, da identificação do genoma, do ADN e de outros que tais milagres da medicina, cada vez mais espetaculares e quase corriqueiros!
Clementina Relvas