Era um velho álbum chinês, salvo no meio da debandada dos retornados de Moçambique, juntamente com dois tapetes de Arraiolos já usados, uma banal colcha de seda, alguma roupa de uso e pouco mais. Do magro espólio que nada representava duma longa vida de mais de oitenta anos, sempre a trabalhar e cujo fruto até dera para construir uma modesta moradia e a quintinha envolvente, o álbum era, talvez, a única relíquia que não podia ser deixada para trás. Tinha as fotografias que lhe faziam presente a esposa de muitos anos, entretanto falecida e também as de algumas crianças que ambos, casal sem filhos, tinham acolhido em sua casa e ajudado a criar. Em suma o álbum chinês era o seu único tesouro.
Na capa lacada de preto, estavam desenhados pagodes de telhados em bico, um lago com nenúfares bordejado de bambus e uma pequena cerejeira a explodir em flor. Mas, o que o tornava mais singular, era uma deliciosa bailarina, de cabelos de azeviche e olhos em bico, com sapatilhas de pontas e um elegante tutu que, desde a primeira hora, maravilhou a menina para sempre.
A menina era ainda tão pequena que não se lhe podia explicar o que suscitava na bailarina o ritmo rodopiante ao som duma música suave, exótica, cheia de sugestões para sonhos e fantasias. Mais tarde, quando os seus dedinhos cresceram, aprendeu a dar-lhe corda e por ali se quedava, muito quieta, mirando aquelas piruetas com os grandes olhos azuis, interrogativos e sonhadores.
E um dia, nas nossas intermináveis conversas, contou:
- Sabes, Vóvó, eu hoje sonhei que era a minha bailarina do álbum. Já não tinha os cabelos loiros nem os meus olhos azuis, mas tinha vestido o tutu e dançava em pontas como se nunca tivesse feito outra coisa na minha vida. E o mais curioso é que a bailarina que eu encarnara no meu sonho, não só não tinha desaparecido, mas era agora do meu tamanho, ou, dito por outras palavras, era eu. Estava ali ao meu lado, aplaudia-me, pedia mais música e contou-me a sua história:
Tinha sido filha dum samurai, um homem valente e justo, que morrera ao serviço do Imperador. Apesar das suas virtudes, tinha muitos inimigos que, já não podendo fazer-lhe mal, perseguiram a família, roubando a alma dos que eram mais fracos. Mas, como ela era uma menina corajosa, não conseguiram levar até ao fim as suas maldições: encerraram-na naquele álbum, ligada a uma prodigiosa caixinha de música a que tinha de obedecer, quer lhe apetecesse dançar ou não. Mas, no meio da sua desgraça, tinha sido bafejada pelos deuses que sempre venerara: tinha sido muito bem tratada, descansava durante a noite sobre uma cómoda de pau-preto, no quarto do casal que a adoptara e, durante o dia, passava momentos de grande felicidade com os meninos que se iam revezando à medida que cresciam, nessa casa hospitaleira e que não se cansavam de a ver dançar ao som daquela suave música.
- Até que te conheci e soube o que é a sorte de ter uma tão grande amiga.
- Que é que pensas, Vóvó? Achas que vou voltar a sonhar com a minha bailarina chinesa, repetindo o encantamento daquele bailado? E que ela, agora minha amiga, ainda me vai contar mais pormenores da sua vida?
- Não to posso garantir. Só sei que, enquanto conservares a tua alma simples e a tua imaginação aberta para o sonho, não perderás a amizade da tua bailarina chinesa, exemplo de quem, mesmo na desdita, constrói uma pura felicidade ao contribuir para a felicidade dos outros.
Clementina Relvas