XXVIII
Nessa tarde, quando o Lopes chegou com a Graça e a Irene, as amigas mais íntimas da Maria da Luz, para o chazinho das quintas -feiras, a mesa já estava posta, com o esmero do costume, mas só quando entrou a Noémia, com o bule do chá, as torradas e os bolinhos caseiros é que a Tia Alice anunciou:
- Hoje temos notícias frescas.
- Da Maria da Luz? – perguntaram em coro, que só o Lopes desmanchou com as suas intervenções gaguejadas.
- Sim, da Maria da Luz. E como a carta, embora venha endereçada a mim e à Noémia, se refere a vocês todas e a todas creio que interessa…
- E...e eu? Por… por acaso… não… não sou gente?
- Claro que também é para si, como vai ver. Mas o melhor é lê-la em voz alta, para ficarem a par de tudo:
Querida Tia Alice:
Esta é uma carta para todos vocês: para si, para a Noémia, para as minhas amigas e amigos, em especial o senhor Lopes, porque vos vou contar, entre outras coisas, uma aventura em que apanhei um grande susto e, como dizem que os sustos curam a gaguez…
Mas, para começar pelo princípio, informo-os de que tenho passado muito bem neste período da gravidez e tenho seguido à risca, não só as prescrições do meu médico mas também os vossos conselhos. Já tenho uma barriguinha indiscreta, de que muito me orgulho.
Ora, há cerca duma semana e com autorização do meu obstetra, fui com o Vasconcelos fazer uma espécie de pequeno safari a uma Reserva de caça, chamada Quissama e que dista apenas setenta e cinco quilómetros a sul de Luanda, o que, para a extensão deste país é como se ficasse ao pé da porta. Percorremos toda aquela imensa planície, não nos cansando de admirar as mais variadas espécies de animais de grande e pequeno porte, aves lindíssimas que eu nunca tinha visto e uma flora que ia das gramíneas rasteiras e dos pequenos arbustos espinhosos da savana até densos trechos de floresta, onde os imbondeiros, os meus favoritos, marcavam a sua presença já familiar.
Mas sucedeu que, repentinamente, deparámos com um elefante tão grande como nunca vi no Jardim Zoológico e tivemos de fazer uma apressada e perigosa marcha atrás, pois ele, sacudindo ameaçadoramente as orelhas e avançando em direção a nós, deixava, atrás de si, as árvores todas derrubadas.
Graças a Deus, o Vasconcelos conseguiu fazer a perigosa e rapidíssima manobra, e de tal forma que quase atropelava o o nosso Guia que nos tinha abandonado, saltando do jeep, e fugia a sete pés ... Mas, em compensação noutra ocasião, assisti a uma cena que jamais esquecerei e de que podem ter uma pálida imagem na fotografia que junto a esta carta: o banho dos elefantes, na foz do rio Quanza, ao pôr-do-sol. Reparem como os mais pequeninos se deliciam com as chuveiradas com que as trombas dos mais velhos os limpam da lama e os refrescam.
Espero que todos aí estejam de saúde e felizes e, logo que eu tenha o bebé e ele possa viajar, iremos os dois a Lisboa, para poder partilhar convosco toda a felicidade que sinto.
Beijinhos para todos da
Maria da Luz
Embora de maneira sucinta, assim ela dava conta aos amigos do seu atual estado de espírito. A vida decorria, plácida, sem sobressaltos nem euforias. O Vasconcelos, embora passasse muito tempo fora de casa, a tratar dos seus negócios, continuava a dar-lhe mostras do amor que lhe tinha, talvez não correspondido, pensava ela, com igual intensidade. No momento presente, todos os seus pensamentos e emoções estavam centradas no pequenino ser que ia crescendo dentro de si. Mas estava reconhecida ao marido pelas atenções e cuidados de que a rodeava e pelo entusiasmo com que, desde o início recebera a perspetiva do primeiro filho.
Depois daquela fantástica viagem ao sul de Luanda, que tão gratas recordações lhe tinham deixado e que, estava certa, jamais esqueceria, os seus passeios foram-se tornando progressivamente mais curtos. Foram até ao Miradouro da Lua, assim chamado devido às formações irregulares do seu solo friável, muito árido e que eram provocadas pela erosão das chuvas. Ali, o vermelho e branco dos barrocais alternavam numa surpreendente sinfonia. Dessa formação verdadeiramente lunar, as altas falésias proporcionavam uma vista fabulosa sobre o mar angolano, especialmente ao pôr-do-sol. Dali conseguia avistar-se o Cabo Ledo e, muito perto, a Barra do Cuanza, a cerca de meia hora de carro de Luanda. Tinha inúmeros mangais povoados de grandes peixes como a barracuda mas também de caranguejos e cardumes de peixes pequenos, presa fácil dos jacarés que por ali abundavam. Foram uma vez até lá e também, com amigos, ao Morro dos Veados, uma praiazinha familiar, onde muitas famílias iam fazer piqueniques e espairecer com as crianças, pois era um sítio seguro, protegido por mangais.
Mas a praia favorita da Maria da Luz e do marido, além da Restinga de Luanda do lado do Atlântico e que ficava a dois passos de casa, era a da Ilha do Mussulo, do outro lado do rio Quanza e para onde se ia de barco, o KAPOSSOCA, numa curta viagem muito agradável. Aí, as praias de areia fina e dourada, eram um verdadeiro paraíso, tanto para os que queriam banhar-se nas águas mansas do lado da cidade, como para os que preferiam o mar, também sempre convidativo para um exercício físico enérgico. Havia, ainda, os que apenas queriam fazer um passeio, comer um delicioso churrasco de frango no único restaurante, rústico mas muito acolhedor, improvisado no meio dos coqueiros que o protegiam com as suas sombras benéficas. Antes de o sol começar a despedir-se, cheio de pressa, tomavam o último banho e passeavam-se ao longo da praia, fazendo esvoaçar enormes bandos de aves brancas que muitos não resistiam a guardar, para futuras saudades, na sua máquina fotográfica, em fotografias ou slides. Depois era o regresso a casa, com o corpo retemperado e a alma pacificada por tanta beleza.
(capítulo XXVIII do meu livro em preparação, MARIA DA LUZ - a magia da Rádio)