Meus queridos netos:
Não gosto nem nunca gostei do inverno. Sempre me fez lembrar um desenho tosco, com pinceladas escuras donde saíam riscos desalinhados e tortos (eram grossas nuvens que o vento esfarrapava à toa) e onde me imaginava transida de frio, por vezes encharcada de água até aos ossos. Mesmo quando confortavelmente acolhida por uma fraterna lareira de chão, que fornecia à minha imaginação infantil matéria para inventar bonecos divertidos e até, às vezes, divertidas histórias…
Construída, desde tempos imemoriais, numa das faldas do Marão, também a aldeia era escura, com as suas paredes de xisto e telhados de telha marselha todos eles manchados pelo decorrer do tempo e a penúria das gentes que não podiam pensar em arranjos fúteis.
A neve era visita frequente e, pelo menos na minha imaginação, sempre inesperada. Era anunciada pela voz terna e um bocadinho irónica da nossa Mãe que, à entrada da sala, dizia, para o lado dos quartos: “Vá lá, meninos, toca a levantar, pois não vão acreditar no que se vê lá fora. Hoje foi a noite de os anjinhos todos virem caiar de branco a nossa aldeia e aí está ela como se fosse o cenário dum admirável conto de fadas” E era assim que nós acolhíamos a mudança.
Mas havia mais. Dos beirais dos telhados não pingava água como nos frequentes dias de chuva. Estavam milagrosamente enfeitados por variadas e interessantíssimas rendas de “sincelo”, que logo nos púnhamos a tentar decifrar, não sem algumas discordâncias mais acesas, a fazer valer a veia artística de cada um de nós.
Sabendo já o que nos esperava, dirigíamo-nos todos para o tanque do quintal, a ver quem era o primeiro a ser capaz de fazer escorrer da torneira a água gelada ou a quebrar a grossa folha de gelo que, entretanto, cobrira toda aquela superfície.
E então era a altura do sobressalto: a chegada do meu Pai, com dois grandes sacos de couve troncha que fora colher à horta para que a sopa não faltasse. Parecia-nos um palhaço, com grandes botifarras de borracha até aos joelhos, casacos uns sobre os outros e, para fim de festa, um grosso gorro de lã, enfiado até às orelhas.
O inverno, para mim, era também esta bizarra personagem do meu Pai, a dizer, fazendo-se zangado: “Vamos, meninos, chega de brincadeira. Vejam lá se me apanham uma constipação daquelas e depois lá tenho eu de gastar um dia e, ainda para mais assim farrusco, a ir a Tabuaço buscar xaropes e comprimidos. Vamos lá todos para o quentinho”.
Seguíamo-lo em fila e, não tardava, já o inverno e a neve estavam lá fora e nós, aquecendo as mãos geladas na tigela fumegante do pequeno -almoço, ouvíamos a voz pausada do nosso Pai a contar uma qualquer aventura real, nem que fosse o seu encontro matinal com o canzarrão do nosso vizinho Belarmino que, assim de repente, ao lusco-fusco, o fizera pensar que tinha de se debater com um dos lobos que, em dias assim, desciam ao povoado em busca dalgum resto de comida abandonado. E nem imaginam que lances aventurosos podiam sair duma narrativa daquelas, que todos ansiávamos não tivesse fim.
E é deste inverno que eu gosto: no quentinho e rodeada de afeto, lembrança duma infância muito remota que ficou e ficará para sempre.
Lisboa, 29 de Maio de 2013
Clementina Relvas