Nunca pensei que os "olhos do meu coração, no dizer de S. Paulo, revelassem pormenores por mim julgados completamente esquecidos...
Sábado, 25.05.13

           

 

Meus queridos netos:

 

 

            Não gosto nem nunca gostei do inverno. Sempre me fez lembrar um desenho tosco, com pinceladas escuras donde saíam riscos desalinhados e tortos (eram grossas nuvens que o vento esfarrapava à toa) e onde me imaginava transida de frio, por vezes encharcada de água até aos ossos. Mesmo quando confortavelmente acolhida por uma fraterna lareira de chão, que fornecia à minha imaginação infantil matéria para inventar bonecos divertidos e até, às vezes, divertidas histórias…

 

            Construída, desde tempos imemoriais, numa das faldas do Marão, também a aldeia era escura, com as suas paredes de xisto e telhados de telha marselha todos eles manchados pelo decorrer do tempo e a penúria das gentes que não podiam pensar em arranjos fúteis.

 

            A neve era visita frequente e, pelo menos na minha imaginação, sempre inesperada. Era anunciada pela voz terna e um bocadinho irónica da nossa Mãe que, à entrada da sala, dizia, para o lado dos quartos: “Vá lá, meninos, toca a levantar, pois não vão acreditar no que se vê lá fora. Hoje foi a noite de os anjinhos todos virem caiar de branco a nossa aldeia e aí está ela como se fosse o cenário dum admirável conto de fadas” E era assim que nós acolhíamos a mudança.

 

            Mas havia mais. Dos beirais dos telhados não pingava água como nos frequentes dias de chuva. Estavam milagrosamente enfeitados por variadas e interessantíssimas rendas de “sincelo”, que logo nos púnhamos a tentar decifrar, não sem algumas discordâncias mais acesas, a fazer valer a veia artística de cada um de nós.

 

            Sabendo já o que nos esperava, dirigíamo-nos todos para o tanque do quintal, a ver quem era o primeiro a ser capaz de fazer escorrer da torneira a água gelada ou a quebrar a grossa folha de gelo que, entretanto, cobrira toda aquela superfície.

 

            E então era a altura do sobressalto: a chegada do meu Pai, com dois grandes sacos de couve troncha que fora colher à horta para que a sopa não faltasse. Parecia-nos um palhaço, com grandes botifarras de borracha até aos joelhos, casacos uns sobre os outros e, para fim de festa, um grosso gorro de lã, enfiado até às orelhas.

 

            O inverno, para mim, era também esta bizarra personagem do meu Pai, a dizer, fazendo-se zangado: “Vamos, meninos, chega de brincadeira. Vejam lá se me apanham uma constipação daquelas e depois lá tenho eu de gastar um dia e, ainda para mais assim farrusco, a ir a Tabuaço buscar xaropes e comprimidos. Vamos lá todos para o quentinho”.

 

            Seguíamo-lo em fila e, não tardava, já o inverno e a neve estavam lá fora e nós, aquecendo as mãos geladas na tigela fumegante do pequeno -almoço, ouvíamos a voz pausada do nosso Pai a contar uma qualquer aventura real, nem que fosse o seu encontro matinal com o canzarrão do nosso vizinho Belarmino que, assim de repente, ao lusco-fusco, o fizera pensar que tinha de se debater com um dos lobos que, em dias assim, desciam ao povoado em busca dalgum resto de comida abandonado. E nem imaginam que lances aventurosos podiam sair duma narrativa daquelas, que todos ansiávamos não tivesse fim.

 

            E é deste inverno que eu gosto: no quentinho e rodeada de afeto, lembrança duma infância muito remota que ficou e ficará para sempre.

 

            Lisboa, 29 de Maio de 2013

 

            Clementina Relvas

 

publicado por clay às 17:36 | link do post | comentar | favorito
Sábado, 11.05.13

 

 

 

Meus queridos netos;

 

            Tenho andado muito arredia do meu blogue, mas hoje quero partilhar com os dois um episódio que, anteontem, me aconteceu e me tem dado que pensar.

            Vinha eu a sair da Missa, onde, me fui confessar e me tocou particularmente, este pensamento do sacerdote: “A paciência é uma caminha que dá guarida a todas as virtudes”

            Ora, antes da missa, eu tinha ido, apoiada na minha bengala, a um mercado ali próximo e tinha feito algumas compras, especialmente uma flores que precisava de renovar na minha casa. Atrás das flores vieram uns peixes fresquinhos, duas pisas do Pingo Doce, pão integral para o Vôvô, um ramo de flores silvestres porque era o dia da Ascensão do Senhor, que a tradição passou a chamar, a dada altura, “dia da espiga”.

            Com o saco, a minha mala e o seu peso acrescido por um guarda-chuva a prevenir as ameaças do céu enfarruscado, lá fui descendo, apoiada na bengala, as escadas que ficam próximo da paragem do autocarro. Ora, mal cheguei ao fundo das escadas, fui interpelada por um homem que me queria vender uma rifa, “para nos ajudar, Senhora”. E como eu não lhe prestasse atenção, acrescentou: “A Senhora não gosta dos bombeiros?” Sem paciência, devido ao esforço e às dores que sentia, respondi-lhe: “Eu gosto é das pessoas que me ajudam quando eu preciso” Na pressa de apanhar o autocarro, ainda ouvi o homem: “Então os bombeiros não ajudam? Incêndios, afogamentos, quedas e…” muito mais ele deve ter enumerado mas eu já não ouvi mais nada. Não ouvi, mas andei estes dias atormentada com a minha falta de paciência:  fez-me  esquecer a minha enorme admiração  por estes “soldados da paz”, que tantas vezes arriscam e chegam a perder a própria vida para salvar quem está em perigo. Não tirou da sua caminha a atenção que devia ao próximo, a gratidão pela sua generosidade e disponibilidade e tantas outras virtudes que ali continuaram esquecidas.

            Que Nosso Senhor me perdoe e aumente a minha paciência, e, se neste fim-de-semana um bombeiro me quiser vender uma rifa, não só a comprarei de boa vontade, como não deixarei de lhe demonstrar, por algumas palavras amáveis, o quanto agradeço e admiro a sua abnegação.

           

                                               Lisboa, 10 de Maio de 2013

                                               Clementina Relvas

           

 

        

 

publicado por clay às 12:21 | link do post | comentar | favorito
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