Nunca pensei que os "olhos do meu coração, no dizer de S. Paulo, revelassem pormenores por mim julgados completamente esquecidos...
Quinta-feira, 19.09.13

          Procuremos esquecer os males com que Deus, como eu creio, quis purificar a minha alma e vamos relembrar os inúmeros momentos ou períodos em que me foi por Ele dada a conhecer a verdadeira felicidade.

 

          Pequenas coisas, humildes, de quando era criança. Tinha o amor dos meus Pais e tão poucas necessidades que o pouco, para mim, era quanto me bastava: uma casa modesta mas confortável, a alimentação que sempre de nós afastou a fome, calçado sempre usado enquanto a sola resistia e roupa que era a suficiente para poder, ao domingo, ir à missa com o “trajo de ver a Deus” já que, no regresso, era cuidadosamente guardada para os dias festivos.

 

          Só saí da pequena aldeia para ir à sede do concelho fazer o exame da quarta classe, mas tive então a grande alegria de ser a melhor classificada, o que levou a professora – irmã da minha Mãe – a receber, comigo, os parabéns de toda a gente e a convencerem os meus Pais a mandarem-me para Lisboa, onde tinha dois tios, mas …solteiros. Tive, então de ir viver com uma família que eles conheciam e onde passei um ano, cujas agruras eram mitigadas pelo meu amor ao estudo e as notas mais altas da minha turma.

 

          Fui frequentar e Escola Veiga Beirão, - nessa altura a funcionar no Liceu Maria Amália. Acabado o Curso, daria lugar à minha irmã, quatro anos mais nova do que eu, e empregada, já poderia aliviar o esforço dos meus Pais, pequenos agricultores num país rural extremamente atrasado.

 

         Quando cheguei ao fim do Curso, com um exíguo prémio nacional que me encheu de regozijo, os meus Pais decidiram que, como a minha irmã não se tinha adaptado a viver em Lisboa, eu continuaria a estudar, para realizar o meu sonho: ser professora do Liceu.

 

            Na Escola Comercial, eu tinha sido muito feliz: tinha tido ótimas professoras e colegas tão amigas que ainda hoje, ao fim de quase oitenta anos, me telefonam e mandam emails. Houve uma professora que me tomou sob a sua proteção e me ensinou, durante um ano letivo, o latim suficiente para transitar do ensino comercial para o liceu e foi o maior incentivo para ingressar na Faculdade.

 

            É verdade que, pelo sim pelo não, eu fiz simultaneamente o sexto ano do liceu e o curso complementar de comércio, para não ficar sem outra escolha. E no sétimo ano, como já estava integrada, empreguei-me a tempo inteiro numa grande empresa da Baixa, onde também todos ficaram meus amigos, inclusivamente o Diretor, que muito se empenhou por que eu continuasse na firma. Era uma oferta tentadora pois, mesmo com o ordenado do início, já podia dispensar a contribuição dos meus Pais para os meus estudos. Eu tinha, porém uma meta bem definida: fazer o Curso de Filologia Românica. Regressei à ajuda paterna mas só nesse primeiro ano, porque, no segundo, sabendo pela sua esposa que me conhecia da Escola Comercial, das minhas dificuldades, o doutor Jacinto do Prado Coelho me arranjou um emprego, da parte da tarde, no Arquivo Histórico Ultramarino, onde, com um pequeno grupo de colegas que, como eu, já tinham feito a disciplina de Paleografia, nos ocupámos, até ao fim do Curso, na pesquisa e organização de fichas para o centenário duma cidade do Brasil ( Baía ou S. Paulo, já não me lembro), o que chegava para alcançar a nossa meta, sem termos de faltar às aulas, que eram da parte da manhã.

 

            A minha passagem pelo velho convento de Jesus, onde então funcionava a Faculdade, só me deixou boas recordações: professores excelentes (Prado Coelho, Vitorino Nemésio, Hernani Cidade, Delfim Santos, Maria de Lourdes Belchior entre outro de igual craveira), colegas simpáticas e prestáveis e as festas: de Carnaval e do fim do ano, sem esquecer uma sessão de teatro sobre os professores e a vida académica, bem como um livro de curso com versos feitos por nós para os colegas e caricaturas do Tóssain. E ainda, no segundo ano, uma bolsa de estudo dum mês para aperfeiçoar o Francês, numa instituição universitária de Pau, onde tive a oportunidade de conhecer dois dos meus melhores amigos de sempre: a Milú e o Gilbert. Com a melhor média da turma de quarenta alunos e estimada por todos, que mais poderia desejar?

 

            No ano seguinte ainda por intermédio do doutor Prado Coelho, estive a lecionar num colégio particular, em Almada, para não apressar a minha licenciatura e manter a minha classificação, o que, de fato, aconteceu.

 

            Não podia ter sido mais protegida, por Deus e pelos meus amigos.

 

            Assim como não tinha podido encontrar uma colocação mais maravilhosa do que a se me deparou no Liceu Antero de Quental, nos Açores, onde passei um dos mais maravilhosos anos da minha vida com colegas e alunos inesquecíveis.

 

            Mas já abusei demais da vossa paciência, embora ainda haja muito que contar. Com um pedido de perdão, muitos beijinhos da Vóvó.

 

                                                        Clementina

 

 

 

publicado por clay às 12:08 | link do post | comentar | favorito
Terça-feira, 17.09.13

 

 

                                                   Meus queridos netos:

 

            Talvez não devesse deixar-vos como legado este testemunho duma longa vida, a experiência que ela me foi proporcionando, porque vós , que começais agora a vossa, tendes o direito de ter sonhos, de ver a realidade por um prisma otimista e de aceitar qualquer contrariedade como um acidente de percurso.

 

            Mas, quanto a mim, a felicidade não existe na terra. Há, sem dúvida, não só momentos mas períodos felizes e a sensatez dos humanos é tirar deles tudo o que têm de bom e de abençoado.

 

            Eu, com oitenta e quatro anos, nem tenho o direito de me lamentar, antes de dar graças a Deus por tanta benevolência com que me tem tratado: é verdade que perdi dois filhos, um acabado de nascer e outro a meio da gestação, mas tenho-os como dois anjinhos que, estou certa, a todo o momento intercedem por mim; também, quando, pelos meus cinquenta e poucos anos, me descobriram um cancro do ovário e tive de me submeter a horríveis tratamentos, Deus veio em meu auxílio e vivi muito tempo sem sofrimento de maior até que, há cerca de sete anos, tive uma recidiva que me valeu duas operações inúteis, em dois anos consecutivos acompanhadas por mais quimioterapias, que deixaram vários rastos. O pior foi, há dois anos, começar a cair quando, encostada a uma superfície lisa, me desmoronava como parede em ruínas. O que, embora me tenha custado dois meses imobilizada na cama e muitos outros, até hoje, com dores lombares que não cedem a comprimidos e só consigo aliviar deitando-me com um saco de água quente, ainda aí Deus esteve do meu lado, pois nunca tais quedas deixaram fraturas ou sequer equimoses e, sobretudo, dormi sempre sossegada, sem dores, que desapareciam  com a posição horizontal. Entretanto, como não podia ter a  atividade que me caraterizava e perdi a vontade de ler, ver televisão, ouvir música e muito menos sair para as minhas viagens ou simples passeios, pois também o meu equilíbrio foi afetado, passei a sentir, com mágoa, essas limitações. 

 

            Mas pior do que a minha doença é o que se tem passado com a saúde do meu filho mais novo, atingido, há anos, por várias doenças gravíssimas e agora, aos cinquenta e dois anos, passando a sua vida entre longos internamentos no Hospital e um Lar, de onde lhe é vedado sair sozinho, mas onde tem quem, permanentemente, se ocupe dele. Visito-o, geralmente com o Pai, mas no regresso vimos ambos de coração amargurado e sem forças para levar até ao fim esta vida tão atribulada. Só a fé em Deus nos ajuda a suportar tão pesados fardos.

 

            E estareis a pensar agora: mas nem toda a gente tem vidas assim – algumas são muito piores – e onde é que estão os períodos de felicidade de que falava no princípio? Parecer-vos-á impossível mas também os tive, alguns de grande intensidade mas para compensar os lamentos que aqui registei, preciso de muito espaço e essa tarefa tem de ficar para outra vez.

 

            Beijinhos da Vóvó e do Vôvô, que tem sido o meu conforto e o meu

amparo, o meu Anjo da Guarda na Terra.

 

                                               Lisboa, 12 de Agosto de 2013


                                               Clementina Relvas

 

 

 

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