Nunca pensei que os "olhos do meu coração, no dizer de S. Paulo, revelassem pormenores por mim julgados completamente esquecidos...
Sábado, 16.11.13

                                  IR PARA FORA CÁ DENTRO

 

A Teresinha não queria sair de Lisboa, deixando o pai na sua aflição diária e a mãe, embora quase sempre ausente de quanto a rodeava, sem as suas visitas, curtas por causa do emprego e também pela angústia que se apossava de si ao ouvi-la chamar-lhe mãe, sem ser capaz de conter as lágrimas. O José, umas vezes era o irmão, outras o pai que a Celeste perdera há muito.

O Rui, ainda que sofrendo por toda aquela situação, tinha vontade de deixar Lisboa por uns dias, para espairecer e ter um tempo só seu e da sua mulher, de que se sentia tão orgulhoso. Mas todas as suas sugestões duma semana numa grande cidade europeia depararam com o não definitivo da Teresinha, incapaz de se imaginar a correr monumentos e museus e muito menos as lojas que, dantes, a atraíam como um íman.

Foi então que Maria da Luz veio, providencialmente, salvar aquela situação:

- Olhem, meninos. Eu gostaria muito de vos oferecer umas férias nos Açores, numa Ilha à vossa escolha, que todas elas têm encantos próprios e ainda nos proporcionam a tranquilidade necessária a um mergulho lustral nas suas belezas naturais.

- Já agora, se a Teresinha estiver de acordo, eu gostaria de passar uma semana em S. Miguel, que a mãe tanto gostou de visitar. É uma Ilha bastante grande, com tanto para nos oferecer, que não seria preciso andar de avião dum lado para o outro e voltarmos de lá mais cansados.

- Não posso estar mais de acordo. E a minha prenda inclui a estadia num bom hotel, algum dinheiro para as refeições e o aluguer dum carro para se poderem deslocar a todos os pontos de interesse. Gostava tanto... Que dizes, Teresinha?

- Que a senhora é um anjo e me está a oferecer aquilo de que mais necessito neste momento: sossego e, pelo que tenho ouvido dizer, o contacto com uma natureza que já quase inexistente em qualquer outra parte do mundo.

- Então aceitas, Teresinha? Passaremos lá uma semana inesquecível, sempre juntos e com todo o tempo do mundo para vivermos o nosso amor.

- Claro que aceito, Rui. Aliás, quando ainda vivíamos em Angola, o meu pai que se perdia, sempre que possível, na contemplação do muito que por lá havia de belo, costumava dizer:

- Se um dia puder, hei-de conhecer Portugal de lés a lés: Moçambique, Cabo Verde, S. Tomé, Guiné, Timor e isto sem falar do que está mais perto e ficará para o fim, a Madeira e os Açores, quando as forças forem diminuindo. Infelizmente, esse foi mais um dos sonhos que lhe saíram gorados.

- Pronto, pronto, Teresinha. Vejam lá quando querem partir e tratem de arranjar as malas. Não se esqueçam dum guarda - chuva ou impermeáveis, que o tempo lá não é de fiar. E uns agasalhos também vos podem ser úteis.

Partiram dois dias depois, num avião da TAP com destino ao Aeroporto de Ponta Delgada. Não quiseram despedidas, pois queriam ter uma semana sem lágrimas nem recomendações. Assim, só os dois.

 

                                                 LXX

                                    OITO DIAS NO PARAISO

Ao desembarcarem no aeroporto de S. Miguel, ali mesmo decidiram alugar o automóvel que os havia de levar, segundo a sua intenção, a todos os cantos e recantos da Ilha. Passaram por algumas freguesias semeadas ao longo da costa e logo lhes chamaram a atenção, não só as suas igrejas, com o branco da cal realçado pela cor escura da pedra vulcânica que sublinhava as molduras das janelas, portas, cornijas de remate e portais, mas também as pequenas capelas garridas, presentes em muitas povoações. Viriam a saber que se chamavam Impérios e, tradição levada de Alenquer pelos primeiros descobridores, se erguiam em honra do Divino Espírito Santo. Eram comuns em todas as ilhas, mas mais numerosos na Terceira, cujos bodos tinham fama em todo o arquipélago, constituindo um autêntico chamariz turístico para nacionais e estrangeiros, sobretudo emigrantes açorianos, espalhados pelas Américas.

            Instalaram-se no Hotel S. Pedro, um dos clássicos de Ponta Delgada. Como Maria da Luz ali tinha estado hospedada e dele guardava as melhores recordações, principalmente dos jardins e da vista espectacular sobre o porto da cidade, convencera-os a não o trocarem por outros mais recentes cuja qualidade ela não podia garantir. Disse-lhes que era dotado dum dos restaurantes mais conceituados da cidade, mas tal informação não interessara muito ao jovem casal, que preferia aproveitar o dia para conhecer a Ilha e almoçar onde lhes desse mais jeito.

            Como chegaram já pelo fim da tarde, foram aproveitar as cómodas cadeiras da varanda e a vista sobre o porto. Ali estavam amarrados vários barcos de pesca, onde os pescadores faziam os últimos arranjos para, de madrugada, seguirem para a sua faina diária. O mar de cobalto estendia-se a seus pés e os dois jovens podiam, enfim, esquecer um pouco os seus graves problemas e trocar as manifestações do amor que, esperavam, havia de lhes transfigurar as vidas.

            Ali se quedaram, por muito tempo, serenos e felizes, sem sequer se aperceberem de que já ia adiantada a hora do jantar, pelo que decidiram aproveitar o restaurante onde, por acaso da sorte, se servia, nessa noite, um jantar típico, que os deixou indecisos entre uma fresquíssima abrótea no forno e uma alcatra douradinha, com seu acompanhamento de batatas, inhame e couves solteiras. Decidiram-se pela alcatra à moda da Terceira, servida (e feita) em alguidar de barro, mas, toque moderno na cozinha micaelense, servida com deliciosas rodelas de ananás. Quiseram experimentar o vinho de cheiro, mas, por falta de hábito, não lhes agradou. Nem sequer o verdelho do Pico, que chegou à mesa dos czares da Rússia e que o maître insistiu em lhes dar a provar. Decidiram-se por água mineral do Vale das Lombadas e terminaram com uma queijada de Vila Franca, acompanhada por chá verde da Gorreana.

            Apesar de não se terem deixado tentar pelas entradas, deixando as lapas com molho afonso para outra oportunidade, decidiram andar um pouco e acabaram por percorrer toda a Marginal, também chamada Avenida Infante D. Henrique, até ao Largo de S. Francisco. Aí localizaram, monumentos de que tinham ouvido falar a Maria da Luz: a Igreja do Senhor Santo Cristo dos Milagres, a Igreja de S. José, o bem conservado forte de S. Brás, com a enorme porta guardada por dois imponentes canhões. Lá estava também o popular coreto e até o metrosídero ou árvore-de-fogo, trazido, em tempos remotos da remota Nova-Zelândia. Sentaram-se um pouco no banco onde se suicidou o poeta Antero de Quental, encimado por uma âncora e pela palavra ESPERANÇA. E ficaram com a certeza de que tinham de voltar.

 

                                                LXXI

                                UM DIA NO VALE DAS FURNAS

No dia seguinte, tomado um pequeno-almoço revigorante constituído por sumo de laranja e uma fatia de massa lêveda acompanhada dum delicioso queijo fresco, partiram para a Vila das Furnas, que, apesar do que já tinham ouvido dizer, os assombrou pelo aspecto dantesco: fumos emanados das célebres caldeiras dispersas e das inúmeras fumarolas que rompiam a terra por todo o lado. Havia caldeiras onde os naturais diziam que, se um animal ali caísse, em breve ficaria cozido, fontes de águas sulfúreas ou ferruginosas, um espectáculo simultaneamente fascinante e assustador.

            Depois de, num modesto restaurante que lhes fora recomendado, terem feito a encomenda do celebérrimo cozido, resolveram acompanhar o cozinheiro a um dos muitos locais donde se escapavam fumos vulcânicos e onde ele escavou um grande buraco. Aí colocou, com todo o cuidado, o embrulho de serapilheira com os variados produtos do cozido, para, graças ao elevado calor da fumarola, obter o cozinhado tão popular para turistas e naturais.

Como tivessem de esperar umas cinco horas bem medidas pelo almoço, ainda lhes sobrou tempo para dar um demorado passeio nas margens da enorme e tranquila Lagoa das Furnas. Foram até junto da Capela de Nossa Senhora das Vitórias, mandada erigir para mausoléu de José do Canto, mas infelizmente fechada a visitantes. Algas e jacintos de água começavam a invadir a superfície líquida, o que impedia o arvoredo da margem oposta de se reflectir no espelho cristalino que já devia ter sido.

            O cozido, com a sua variedade de carnes, enchidos, batatas, inhames e hortaliça muito bem acondicionados num pano branco, revestido pela serapilheira tinha um gosto delicioso, completamente diferente daquele a que estavam habituados e que lhe advinha do vapor vulcânico a que estivera exposto durante tantas horas. Agora sim, soube-lhes bem um pouco de verdelho e umas típicas rodelas de ananás, cultivado nas estufas da Ribeira Grande.

            Depois do almoço, foram conhecer o Parque Terra Nostra, um belíssimo e importante Jardim Botânico, obra dum cônsul americano que ali quisera ter, no século XIX, a sua residência de Verão. Passara depois a ser propriedade do Visconde da Praia e, mais tarde, da família Bensaúde, tendo passado por numerosos acrescentos e beneficiações. Agora, tinha uma grande piscina de água termal, castanha por causa do ferro e com a temperatura constante de 25º. De tudo isto tiveram conhecimento por meio dum desdobrável turístico, onde também se dizia que ali se podiam conhecer mais de seiscentas variedades de camélias. O resto, o canal serpentiforme, as manchas de palmeiras e de fetos arbóreos, as grutas, as frescas e perfumadas alamedas de buxo, tudo isso viram eles com os seus olhos e fizeram-nos soltar as mais variadas e entusiásticas exclamações:

- Que maravilha, Rui. E pensar que isto faz parte de Portugal e é tão desconhecido…

            - De facto, é fabuloso. E todas estas manchas de azáleas, que esplendor! Mas estou convencido de que tempos virão em que estas Ilhas serão um procurado destino turístico.

            - E, pelo que eu sei, não é só S. Miguel. Há quem diga que cada uma das nove Ilhas tem o seu peculiar encanto e que a das Flores, é uma espécie de síntese das belezas de todas elas.

            - Havemos de cá voltar e faremos o tour completo. Mas olha, Teresinha, sabias que são poucos os açorianos a ter esse privilégio?

            - Mas teremos nós.

 

                                               LXXII

                                 TANTAS, TANTAS MARAVILHAS

Não tendo possibilidade de ver o grande número de lagoas que, em S. Miguel, ocuparam, há milhões de anos, as crateras de vulcões extintos, decidiram continuar com a visita à Lagoa do Fogo, integrada numa Reserva Natural e uma das maiores da Ilha.

            Quando iam a meio do caminho, viram crescer, no alto da montanha, um capacete de denso nevoeiro, que fez o Rui exclamar:

            - Desta vez parece que não vamos ter sorte. É como ir a Roma e não ver o Papa.

            - Quem sabe? O tempo, aqui no arquipélago, muda com tanta facilidade… Até há quem diga que cada dia tem as quatro estações do ano.

            E foi a Teresinha que acertou. Ao chegarem à borda da lagoa, um pequeno miradouro em cimento para os visitantes, o nevoeiro cerrado não deixava vislumbrar, como se costuma dizer, nem um palmo à frente do nariz. Por ali se demoraram um quarto de hora e, eis senão quando, a cortina de nevoeiro se abriu como uma autêntica cortina de teatro, desvendando a seus olhos o mais deslumbrante espectáculo que a Natureza poderia oferecer: uma imensa lagoa de águas límpidas e tranquilas, cheia de reentrâncias, que o sol fazia brilhar como um espelho encantado. Abraçaram-se, comovidos, tal a emoção que os dominou.

            Desistiram de ir à Lagoa do Congro, anichada no meio de denso arvoredo mas a uma profundidade tal que recearam sujeitar a carro a caminho tão íngreme. Trocaram-na pela Lagoa dos Nenúfares, toda coberta por aquelas flores aquáticas, como o próprio nome lhes tinha feito imaginar.

            E, quanto a lagoas, ficaram-se por aqui, pois não queriam sobrecarregar a memória com demasiadas imagens, cujo fulgor não desejavam ver embaciado. A das Sete Cidades ficaria para depois.

            Passaram pela bem cuidada Vila da Lagoa, onde a Teresinha comprou algumas cerâmicas ali fabricadas e seguiram para a Ribeira Grande, onde, então sim, se deliciaram com as lapas de molho Afonso, seguidas por uma excelente galinha assada com molho de fígado. Remataram o almoço com uma tigelada de ovos e um café para cada um.

            Depois de visitarem uma estufa de ananás, retomaram o caminho de Ponta Delgada, com paragem em Vila Franca do Campo, onde visitaram o imponente Convento de S. Francisco de que, à época, já se dizia ir ser em breve transformado numa Pousada. Compraram um desdobrável onde se dava notícia do tremendo terramoto que, em 1522, tinha arrasado a povoação, então a capital da Ilha, provocando milhares de mortos. Ainda subiram o escadório alvinitente, debruada a pedra de lava, até à típica Ermida de Nossa Senhora da Paz, deslumbrando-se com o imenso panorama, de terra e mar que dali se avista. Mas o que ali os levava era o famoso Ilhéu, em forma de meia -lua, dotado duma espécie de anfiteatro que abriga uma profunda caldeira com o diâmetro de cerca de cento e cinquenta metros e saída para o mar, o Boquete. Por ali entram também os barcos a remos ou a motor que, a pouco mais de um quilómetro da costa, mesmo em frente a Vila Franca, encontram aquela praia abrigada pelos altos contrafortes, onde ainda puderam ver as já raras curraletas de vinha e as poucas casas semi-abandonadas.

Verificaram que a rara vegetação era constituída por canaviais e metrosíderos e os altos rochedos do lado oposto eram o pouso favorito dos cagarros e dos garajáus.

            Num dos cafés da terra, onde pararam, souberam que, na época balnear, a afluência de banhistas estava a crescer de tal modo que se pensava num diploma do Governo Regional, a conferir ao Ilhéu o estatuto de Reserva Natural, com acesso limitado a quatrocentos visitantes por dia.

            - De facto, esta natureza incólume e este silêncio só cortado pelo canto das aves, é uma pena se destruído pela pegada humana.

            - Tens razão, Teresinha, mas estas maravilhas são património de todos.Temos é de saber protegê-las.

            Tinha sido um dia em cheio e, tanto Rui como a Teresinha, estavam cada vez mais fascinados pela Ilha: pela sua riqueza natural, pelo seu património e pelo seu ambiente romântico. Que bela ideia a da Maria da Luz!

 

                                                    LXXIII

                                     A CIDADE ENCANTADA

- Hoje gostava de visitar a cidade. Quando a vimos, na noite da chegada, pareceu-me cheia de motivos de interesse.

            - Bora lá, disse o Rui, meio a brincar. Já sabia que a Teresinha havia de querer visitar todos os cantos e recantos que constavam do Roteiro, fornecido pela Agência de Viagens. e, por uma casualidade engraçada, não é que ela quis mesmo começar pelo Jardim José do Canto?

            Era uma propriedade privada mas podia ser visitada com permissão dos proprietários. Lá foram percorrer os quase seis hectares de alamedas e jardins que constituíam aquele famoso Jardim Botânico, de inspiração inglesa vitoriana, remontando ao século XIX.

            José do Canto, um homem rico e muito culto, tão sabedor de jardinagem e agricultura como de Camões, cujas edições d’Os Lusíadas ia coleccionando com fervor de autêntico bibliófilo (possuía mesmo um exemplar raríssimo da primeira edição), fez daquele Jardim uma das obras de arte da sua vida. Ali mandou plantar árvores exóticas, que ao longo dos tempos tinham adquirido um majestoso porte e grossas raízes à vista: araucárias, criptomérias, metrosíderos e até uma imponente árvore da borracha. O túnel das cameleiras era o espanto de todos os visitantes.

            Fora visitado, ao longo dos tempos, por personalidades de renome: o rei D. Carlos, o Presidente Franklin Roosevelt, mais recentemente Jorge Amado e muitas outras. Ali se podiam ver monumentos escultóricos, como a estátua do próprio José do Canto, o busto de D. Carlos e edificações grandiosas tais O Palácio, o vitoriano Pavilhão de Caça e a magnífica Capela de Sant’Ana, do século XVII.

            - É pena estas importantes peças do património micaelense estarem votadas a um certo abandono…

            - Será por pouco tempo, menina, o Governo Regional, cuja sede fica mesmo aqui ao lado, já está a tomar medidas não só para o classificar, como para lhe dar a conveniente utilidade. Até se diz que vão fazer no Palácio uma unidade hoteleira, bem como salas para exposições, manifestações musicais e outras. Não se sabe bem é quando, que estas coisas custam dinheiro.

            O Rui interveio então:

            - Uma coisa que eu não quero perder é a visita ao Museu Carlos Machado

            - E faz o senhor muito bem. Começou por ser o Museu Açoriano até lhe darem o nome, bem merecido, desse coleccionador e artista. Vão lá, vão. Aposto que não darão o tempo por mal empregado.

            Visitaram as três grandes colecções do Museu: a de História Natural, que vinha do século XIX; a de Etnografia Regional, dedicada, sobretudo, à Ilha de S. Miguel e onde se podia ver, entre várias recolhas relacionadas com a agricultura, o artesanato e outras actividades, uma típica casa micaelense, com especial relevo para a sua cozinha e quarto de cama; e o núcleo de arte: esculturas de Canto da Maia, arte em marfim, ourivesaria e…

            -Cá está o que eu procurava.

            - O quê, Rui? Com tanto entusiasmo…

            - Olha, Teresinha, é este quadro do pintor açoriano Domingos Rebelo.

            - Os Emigrantes? Não fizeste já uma entrevista na Rádio sobre este quadro? Tenho uma vaga ideia.

            - Pois fiz e fiquei fascinado, embora só com a interpretação duma cópia, feita pelo meu convidado, ao simbolismo da obra: sendo uma obra regionalista, com a representação do casal, do cesto de laranjas, da viola da terra ou de arame e o quadro do Senhor Santo Cristo dos Milagres para os proteger lá longe, é uma sentida e artística expressão das saudades da terra.

            - É, de facto, impressionante. Mas eu ainda gostava de dar uma olhadela à arte sacra, pois falaram-me dumas tábuas quinhentistas da Escola de Coimbra e duma Coroação da Virgem, da autoria, no século XVI, de Vasco Pereira Lusitano. Disseram-me que eram imperdíveis…

            - Mas não podemos demorar muito, pois sabes que horas são? Já passa muito das quatro…

            - … e ainda não almoçámos.  E lembro-te que, depois do almoço, eu quero ir comer uma banana split naquela pequena pastelaria de que a tua mãe falou.

            - Isso é se ainda existir e continuar a servir as tais bananas split.

Depois do tardio almoço, ainda foram ver o famoso arco triunfal do Palácio da Fonte Bela, onde admiraram um majestoso pórtico neoclássico, ladeado por quatro colunas coríntias, duas de cada lado. Essa fora uma recomendação dum colega açoriano do Rui, que frequentara o Liceu Antero de Quental, ali instalado há muitos anos.

Regressaram ao Hotel extenuados mas encantados com tanta beleza.

 

                                                  LXXIV

                                        A VOLTA À ILHA

Finalmente um dia de sol. Completamente desanuviado, sem capacete. O Rui propõe, entusiasmado à Teresinha:

            - Olha, querida. E se aproveitássemos este dia para dar a volta à Ilha? Íamos parando nos mais belos miradouros e visitávamos a Lagoa das Sete Cidades. Assim, ficávamos com o nosso programa quase completamente cumprido.

            - Tenho vários reparos a fazer. Em primeiro lugar, e sem querer ser desmancha-prazeres, quantos dias já amanheceram assim e depois… Por outro lado, que é isso do programa cumprido? Até parece que é um dever e não esta fascinante deambulação , mais ou menos anárquica, em que temos conhecido tantas coisas e que nos tem feito tão felizes. Pelo menos a mim.

            - Vá lá, Teresinha, não te zangues comigo. Bem sabes como tenho apreciado esta viagem e como temos estado sempre de acordo nas visitas a fazer. Quanto ao tempo, não nos podemos queixar muito. Algum céu encoberto, alguns aguaceiros, mas nada com que já não contássemos, não achas? Não queres dar esta volta à Ilha, a única maneira de levarmos uma visão de conjunto de toda a sua costa e deslumbrantes paisagens?

            - Só posso dizer que sim. Mas gostava de ir agora em direcção à Costa Norte e Lagoa das Sete cidades, claro.

            - É exactamente o que eu tinha na ideia. Estive a ver o mapa e gostava de começar pelo Miradouro do Cerrado das Freiras. De lá avistam-se quatro lagoas, entre elas as duas das Sete cidades: a Lagoa Verde e a Lagoa Azul. O que não nos dispensa de ir também ao Miradouro da Vista do Rei, assim chamado porque parece ter sido de lá que as célebres lagoas das Sete Cidades foram contempladas pelo rei D. Carlos, aquando da sua visita aos Açores em 1901.

            - E cá estamos no Cerrado das Freiras. Realmente avistam-se quatro lagoas e toda a maravilhosa paisagem circundante, com a enorme vastidão dos prados verdes onde as vaquinhas a pastar nos dão uma sugestão do que será a Holanda, não achas?

            - Mas repara, Teresinha. Embora num dia soalheiro como este, há uma ligeira névoa a pairar sobre a Lagoa Azul, a maior, que dizem ter cerca de doze quilómetros de diâmetro.      

            - Pois é, mas sem querer entrar na lenda do pastor apaixonado pela princesa, derramando lágrimas azuis  e verdes, não admira que essa e outras tenham sido criadas pela imaginação popular, sugestionada por este ambiente de misticismo.

            - Mas procura descer à terra e admirar esta vegetação luxuriante de criptomérias, azevinho, cedro do mato, para não falar das hortenses que, em época de floração, fazem desta Ilha em geral e deste lugar em particular um paradisíaco jardim predominantemente azul.

            - E a povoação, como dizem por cá?

            - Vamos fazer um passeio a pé, atravessar o istmo que liga as duas Lagoas e dar uma vista de olhos pela freguesia, que tal, Teresinha?

            - Cá está ela anichada entre as duas lagoas. Tem casas simples mas tradicionais e esta bela Igreja de S. Nicolau, em estilo neo-gótico, que deve ser do séc. XIX. Tão tocante na sua simplicidade! E agora, novamente para o carro que ainda há muito para ver. 

            - Aqui deve ser a freguesia de Mosteiros, não te parece?

            - Creio que sim. Ou melhor, tenho a certeza, porque já avistei vários pontos de referência constantes do desdobrável: o porto de pesca com as piscinas naturais e, ao fundo, os ilhéus. E, lá em cima, deve ser a Capela de S. Lázaro.

            -Ó Rui, então vamos ver a Igreja Matriz, que é do princípio do século dezanove e depois seguimos para o Miradouro da Ponta do Sossego, donde se tem a melhor panorâmica sobre a costa norte e sobre esta povoação dos Mosteiros.

            - De acordo, só que o meu estômago já reclama almoço e, por isso, primeiro vamos ficar por aqui, a regalar-nos com uma típica caldeirada de peixe e uma tigelada de ovos.

Mas, desta vez, não perdoaram e começaram pelas lapas com molho Afonso, que acharam deliciosas.

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                                                 LXXV

                                   O CIRCUITO CONTINUA

Depois do almoço e do falado passeio até ao Miradouro da Ponta do Sossego, na costa norte, decidiram seguir para o Nordeste, que durante séculos esteve praticamente separado, devido às deficientes vias de comunicação, de todo o resto de S. Miguel, sendo até chamada a décima ilha do Arquipélago. Agora depois de terem passado pela Bretanha e pela surpresa de ali encontrarem tanta gente de olhos azuis, testemunho de remota imigração oriunda da província francesa do mesmo nome, iniciaram a subida para o Nordeste. Tinham à sua frente uma óptima estrada, mas toda em curvas e contra curvas e ladeada por farta vegetação com as célebres conteiras, uns caules aéreos simples e folhosos, que dão flores em tons de amarelo e forma de roca.

Depois de passarem o Aqueduto dos Sete Arcos, entraram na formosa vila fundada no século XVI e debruçada sobre o Atlântico. Daí a abundância de miradouros, entre os quais o da Ponta da Madrugada, onde decidiram ir, ao romper o dia seguinte, ver o célebre nascer do sol.

O que mais contribuiu para os convencer foi o encontro com uma senhora da terra a quem pediram informações:

- Não tenham pressa. O Nordeste é uma das vilas mais antigas e mais bonitas de S. Miguel e merece uma visita mais demorada. Eu tenho um quarto vago e teria muito gosto em os receber na minha casa. Chamo-me Marília e sou irmã duma professora da Escola Básica. Fiquem por cá até amanhã e não percam o nascer do sol na Ponta da Madrugada.

- Se houver sol…

- Não sejas pessimista, Teresinha. Tem estado tão bom tempo… E a oferta desta senhora, que podemos considerar a chave de ouro do fantástico acolhimento achado por toda a Ilha, a mim já me convenceu. Olhe, eu sou o Rui Vasconcelos e a Teresinha é a minha mulher, há pouco mais de três semanas.

- Não me custa nada e, para mais, tratando-se de dois noivinhos tão simpáticos. O meu marido, que é electricista, está a trabalhar nas iluminações para as Festas do Senhor Santo Cristo, que todos os anos se celebram no quinto domingo depois da Páscoa. Já começaram ontem e vão terminar no Domingo. Por isso, até me fazem companhia ao serão. E, durante a tarde, podem ir visitar o Museu Etnográfico das Capelas, onde agora funciona uma oficina de artesanato, com testemunhos de toda a nossa vida agrícola, pecuária e piscatória desde tempos bem remotos.

Não havia argumentos a contrapor. Aceitaram a generosa oferta e, seguindo a sugestão da D. Marília, dirigiram-se ao Museu Etnográfico, onde foram encontrar valiosíssimas peças usadas, durante séculos, nas actividades rurais e piscatórias da terra e também uma escolinha de bordados, típicos de S. Miguel. A Teresinha ficou encantada com os bordados a matiz, de folhas de avenca em tons de azul e perdeu mesmo a cabeça: comprou uma linda toalha de mesa e respectivos guardanapos para si e mais uns bordados para a Maria da Luz e para a Noémia.

Deram uma volta pela Vila, demorando-se a admirar a fachada da Igreja Matriz, dedicada a S. Jorge, vinda do século XV, mas reconstruída em típico estilo açoriano e o bem cuidado jardim, colorido por muitas e variadas flores. Até o pequeno coreto cor de rosa, rodeado por árvores imponentes e bem tratadas, lhes pareceu ter um toque de magia.

Regressaram a casa da D. Marília, onde encontraram um quarto amplo e confortável, de acordo com todo o ambiente. Já ao anoitecer, estavam a pensar sair para jantar, quando a dona da casa lhes bateu delicadamente à porta, dizendo:

- Se quiserem jantar comigo, talvez se não arrependam. É simples, mas muito típico do Nordeste.

- Não nos fazemos rogados…

            Numa mesa posta com simplicidade e bom gosto, onde não faltava uma jarra de hortenses e coroas de Henrique, flores colhidas no pequeno jardim da casa, logo apareceu uma tigela de barro com torresmos em molho de fígado e um prato de inhame cozido e outro de batatas do reino,

            - E, para beberem… Não tenho muita coisa, mas, se quiserem fazer como nós, talvez gostem de acompanhar a comida com um bom chá da Gorreana.

            -_ Que maravilha! - exclamaram em uníssono.

Foi um jantar e um serão muito agradáveis. Recolheram ao quarto, cansados mas felizes e pensando na tranquila noite que os prepararia para o nascer do sol, no Miradouro da Ponta da Madrugada e, uma vez lá chegados, ambos, de mãos dadas, acharam que não seria fácil depararem-se com um cenário tão fantástico como este.

            Do alto da falésia, revestida, como toda a Ilha, de exuberante arvoredo autóctone ou oriundo de todas as partes do mundo, via-se, lá em baixo, o Atlântico debruado de espuma. Perto, ficava o Pico da Vara, com os seus mil cento e cinco metros de altitude. Também o Parque Natural dos Caldeirões, de que D. Marília tinha elogiado a cascata, a vegetação, sobretudo os fetos arbóreos e as flores exóticas, o reconstruído moinho de água, a pequena lagoa recoberta de nenúfares.

            Com o nascer do sol, apreciado por um grande grupo de turistas debruçados do muro do miradouro, foi o deslumbramento total: a paisagem ganhou um novo colorido e o céu, milagrosamente limpo, era um puro refulgir de vermelhos e dourados num feérico e inolvidável espectáculo que quase se diria irreal.

 

                                               LXXVI

                         AS FESTAS DO SENHOR SANTO CRISTO

Com a curiosidade acicatada pela descrição da D. Marília, resolveram prescindir de todas essas maravilhas naturais e regressar a Ponta Delgada, para poderem assistir a algumas das cerimónias mais famosas das festividades do Senhor Santo Cristo.

Pela estrada, além das inúmeras vacas malhadas que pastavam nos imensos prados verdes, ainda tiveram de conhecer outras mais de perto: as que, por mais de uma vez, lhes barraram o caminho, encaminhadas ronceiramente para as pastagens. Também pararam na Fábrica de Chá de Porto Formoso, rival do da Gorreana, cujas plantações não lhes foi possível visitar.

Chegaram a Ponta Delgada a boa hora para irem almoçar ao Alcides, onde se deliciaram com um dos seus famosos bifes. A tarde e o dia seguinte seriam inteiramente dedicados às festas.

Já não puderam assistir ao bodo do pão e da carne, nem à procissão da ida da imagem para o Convento de S. José. Mas ficaram espantados com as ruas por onde devia passar a procissão mais solene, todas ornamentadas por flores das mais desvairadas cores, principalmente azáleas, formando desenhos geométricos que, em geral, enquadravam símbolos religiosos relativos ao Senhor Santo Cristo: o resplendor de platina e ouro, a coroa de espinhos tecida em fios de ouro e pedras preciosas, o relicário, o ceptro e as cordas, cinco metros e vinte de pérolas e pedras preciosas enfiadas em fio de ouro.

À noite, puderam observar os mesmos símbolos, rodeados de flores e folhagens, o todo constituído por cento e sessenta e duas mil lâmpadas multicores, que enchiam de fulgurações todo o Campo de S. Francisco, engalanado por mastros e bandeiras e coalhado de gente vinda de todos os pontos do Arquipélago, do Continente e das comunidades de açorianos espalhadas por todo mundo. Entre os turistas sobressaíam as chamadas calafonas (de Califórnia), por causa das suas espalhafatosas capelines de cores claras. Várias filarmónicas e tendinhas animavam a festa, agora mais profana.

Ainda antes de regressarem ao Hotel, assistiram a um deslumbrante fogo - de - artifício, lançado do Forte de S. Brás.

No dia seguinte, apressaram-se a voltar ao Campo de S. Francisco, para assistirem à célebre procissão que, percorrendo as principais artérias da cidade, se destina a repor a veneranda imagem no seu altar do Convento da Esperança. Para ali viera, no século XVI, do Convento da Caloura, em Água de Pau, trazido pelas religiosas que fugiam ao ataque dos piratas.

- Repara no baldaquino, Rui.

- Não te sabia tão versada em coisas religiosas…

- Não faças troça. Olha para aquele trono de flores de seda, realçado pelo fundo vermelho e para o ar impressionante do Ecce Homo, rodeado pelo seu tesouro e pelas muitas jóias oferecidas por pessoas devotas.

- E tu, olha para esta procissão, magnífica, ainda que apreciada só dum ponto de vista estético. É uma elaborada coreografia: à frente, o guião com a imagem da coroa de espinhos, as duas longas filas de homens com opas, seguidos por pessoas descalças com círios votivos, associações juvenis, autoridades, mais duas filas de crianças vestidas de anjinhos e tudo a perder de vista.

Terminada a procissão, voltaram para o Hotel, procurando assimilar tantas coisas novas e fascinantes, que tinham preenchido a sua semana de lua -de -mel. Apreciavam pela última vez, sem mais palavras e de mão dada, da varanda do seu quarto, os barcos parados no porto de pesca e mais um poente esplendoroso. E remataram o serão com mais um prolongado e apaixonado beijo. No dia seguinte, de manhã cedo, seria o regresso no avião da Sata e o início duma nova vida, que esperavam viver juntos e felizes.

 

                                               LXXVII

                              A VIDA É SEMPRE UMA INCÓGNITA

É voz do povo, a ecoar pelos tempos fora, que amores felizes não têm história. Não concordo. Todos os amores têm histórias de fugazes momentos felizes e outros, que parecem mais longos, de manifesta desgraça. Ou então, como pântanos, momentos que não são uma coisa nem outra, de autêntico marasmo e indiferença.

Assim veio a ser, com o correr do tempo, a vida do Rui e da Teresinha, os noivos esperançados de agora.

            Primeiro, foi a morte da Celeste, que perguntava repetidamente pela sua mãe, a Teresinha e pelo seu neto, o Rui. E nem já os reconheceu quando chegaram dos Açores, com um lindo ramo de flores e pacotinhos de chá.

            Foi um abalo que todos sentiram dolorosamente e que deixou o José em estado de completa prostração, perdida a pálida alegria que o tinha animado com o casamento da filha. Sentiu-o como uma concretização dum sonho muito antigo, deixado lá para trás mas sempre presente, embora só como pano de fundo dum amor mais calmo, mais resignado, que a dedicação da Celeste conseguira iluminar e tivera a sua refulgência absoluta com o nascimento da Teresinha.

            Durante muito tempo revivera com ela, através da memória, os bons e maus tempos de África e o seu regresso para uma vida quase sem horizontes, embora dulcificada pela presença da Teresinha e os seus sucessos escolares e profissionais. Depois fora a doença implacável, que tudo varrera para um sorvedouro de angústia e de desespero. E agora…

            Quem resistira muito bem aos anos e às desgraças fora a Maria da Luz, que se sentiu remoçar com a chegada da primeira filha do seu Rui, a menina que tanto tinha desejado, em vão. Estragavam-na, ela e a Noémia, com mimos e carinho. À Noémia cabia a higiene e a alimentação da bebé, enquanto a avó se quedava a contemplá-la, enquanto dormia, na tentativa de descobrir nas suas feições, traços familiares de ambos os lados. Teria que aguardar até que pudesse partilhar as suas brincadeiras, contar-lhe histórias reais ou inventadas e retomar os velhos sonhos.

            Mas quando a Maria Celeste – nome que, generosamente, a avó aprovara para dar à menina – quando a Maria Celeste fez dois anos, chegou o seu irmãozinho Gonçalo, um bebé rechonchudo e bonacheirão, que, passado o período de aleitamento materno, se lhe juntara em casa das Vóvós, que assim eram consideradas a Maria da Luz e a Noémia.

            Deste modo se reanimara a vida em casa da Maria da Luz. Tanto o tio António, que assim passara a ser designado por toda a gente, como o Guedes, outro tio inventado, procuravam todos os pretextos para se aproximarem das crianças. Solteirões inveterados, tomavam-nas pelos filhos de que só agora sentiam a falta.

            E o Vasco? Tendo conseguido estabilizar a vida ao comprar a licença duma rádio local relativamente bem sucedida, casara, já pelo tarde, com uma das suas locutoras, que também lhe dera dois filhos. Levavam-nos a casa da Maria da Luz, onde passaram a partilhar dos mimos e brincadeiras daquelas duas crianças que sempre tiveram como primos e com eles iam crescendo.

Quanto ao José, que tivera de ser internado para fazer uma cura de sono e uma recuperação da depressão nervosa agravada com a morte da mulher, só lhe restou resignar-se a ver os dois netinhos nas curtas passagens por casa da filha, quando podia dispensar o Hospital. Eram períodos de intensa felicidade, que iam atenuando as suas mágoas e o ajudavam a recuperar. Sempre que podia e porque ambos os pais estavam a trabalhar, era ele que os levava a casa da Maria da Luz, ali ao pé. E, com o carinho de todos, assim se foi encaminhando para uma velhice tranquila, que ocupava com as suas pequenas bricolages no sótão da casa onde vivera com a Celeste. Até que a Teresinha e o Rui, preocupados com a sua solidão e uma possível recaída, o convenceram a mudar-se para casa deles, uma ampla moradia com jardim no Bairro de Alvalade. E depois…

 

                                              LXXVIII

                                    MAIS UM CICLO DE VIDA

Depois, as crianças cresceram, brincaram e estudaram juntos e cada um seguiu a sua vocação.

            O José alugou a casa agora vazia, mas guardou para si o sótão, onde ainda ia, de vez em quando, até o Gonçalo abandonar o Curso de Agronomia. Tinha sido um impulso de adolescente, preocupado com a fome no mundo e convencido de ter, nas suas mãos, a chave mágica para um futuro melhor. Mas os genes foram mais fortes e, logo que chegou a ocasião propícia, seguiu o rumo dos pais e entrou num estágio para técnico de rádio.

 Por isso o velho sótão, já pouco utilizado pelo Avô, em breve ficou atulhado por aparelhagens e fios, caixas de ferramentas e uma enorme colecção de discos, feita com a ajuda dos amigos da Avó. E, dominando tudo o resto, um grande rádio de válvulas, prenda do Vasco pelos seus vinte anos. Também havia, dispersas por toda a parte, relíquias de futebol, outra das suas grandes paixões. E o fabuloso despojo dum velho Hispano- Suíza J 12 que, vencendo as enormes dificuldades de encontrar peças legítimas, dada a sua antiguidade, ele esperava vir um dia a restaurar. Fora o Guedes que o encontrara, abandonado, numa arrecadação do jornal, onde, há muito reformado, só ia de vez em quando visitar os poucos velhos amigos que ainda por lá continuavam.

A Noémia, para si e para a sua irmã uma segunda e doce avó, tinha-se deixado resvalar suavemente na morte, tão apagada e simples como fora a sua vida.

Sem ela, a Maria da Luz, sentia como que uma segunda viuvez. A caminho dos oitenta anos mas ainda muito activa, continuava a receber os amigos e era o grande apoio do José, que cada vez estava mais diminuído.

 Ela, porém, sentia-se rejuvenescer de sempre que festejava os anos dum neto ou dum amigo deles, ou organizava um serão com as últimas canções da rádio, agora predominantemente em inglês. Sempre que podia, ia buscar uma canção dos velhos tempos e ficava admirada com a adesão da juventude. E os jovens já não se sentavam diante do aparelho: faziam downloads para os seus Ipods e levavam as músicas de diferentes emissoras para todo o lado. Com headphones nos ouvidos, ouviam-nas nos autocarros, nos intervalos da Escola, quando iam passear de carro com os pais e até trocavam por elas muitos programas que a Televisão lhes dirigia em particular. Só as largavam para navegar na Internet ou disputar jogos nas consolas.

Maria da Luz dizia para os amigos:

            - Bem sei que este já não é o meu tempo, que a magia da Rádio se esvaiu, mas, ainda que me considerem retrógrada, ou, como eles dizem, careta, não posso deixar de recordar os bons velhos tempos em que, em todas as marquises e varandas onde havia um tanque de lavar roupa, se reproduziam as canções popularizadas pela Rádio e pela Televisão.

                                              

                                               LXXIX

                                        A MAGIA DA VIDA

O José já ali não estava para a apoiar, abanando afirmativamente a cabeça, mas o próprio Rui se mostrava preocupado:

            - Estamos a criar uma geração de surdos e, o que é ainda pior, de jovens metidos consigo mesmos, sem capacidade de comunicar, a não ser de forma virtual. Vejam-se os milhões de adeptos do Facebook.

            - Não sejas tão pessimista, Rui. Olha que até as rádios e a televisão estão a incorporar as novas tecnologias. O nosso Gonçalo, por exemplo, utiliza imenso a Internet e nem por isso deixa de ser um bom filho, sempre atento e disponível e os seus programas têm conteúdos cada vez mais aliciantes.

            -Eles agora gravam tudo. Escrevem meia dúzia de banalidades, enfiam-nas no computador e pronto, já está. Nem precisam de estar no estúdio. Numa hora podem gravar meio- dia de emissão. Onde está a magia?

            - Ó Rui, e as pessoas acreditam que eles estão no seu posto?

            - As pessoas… Hoje só se dá às pessoas aquilo que elas querem ouvir. Tudo mudou: os gostos dos ouvintes, sempre stressados e em busca do que não exige concentração e os conteúdos, sempre ligeirinhos ou sensacionalistas. Dantes o objectivo era criar programas a que as pessoas aderissem e muita gente se sentia como se a rádio fizesse parte da família. Agora a própria família raramente está reunida, mesmo à hora das refeições.

            - Mas é sabido que os tempos mudam. Sempre foi assim. Quando tu começaste, tinhas que manobrar cuidadosamente a agulha para acertares no início do tema. Quando os mais velhos te falavam de gravações em fio de metal, tu rias-te tal como hoje os miúdos quando vêem uma cassette. Até os CD’s deixaram de ser usados…

            - Tudo isso é muito bonito, mas não passa de tecnologia. E de que vale a tecnologia se usada para fazer programas sem alma e todos iguais?

            - Sinal dos tempos, meu filho. Hoje quem manda é o lucro. A tecnologia substitui o homem, explora o filão da publicidade e a verdade é que a rádio cada vez é mais um negócio e, diga-se que, apesar de tudo, cada vez menos rentável.

            - Pode ser, mas nós já não fomos testemunhas do seu sucesso em programas ao vivo como o Clube das Donas de Casa, de que tanto ouvi falar durante a minha infância e outros muito diferenciados. Eu, por exemplo, só me lembro do espectáculo que o António Sala fez para si, da minha inquietação e do sucesso que foi. Nem calculas, Teresinha.

- Ora, ainda há pouco tempo, a nossa Mãe, quando cantava nas festinhas dos pequenos, maravilhava todos pela sua voz límpida, doce e simultaneamente poderosa. Na rádio devia ser a verdadeira magia.

- É verdade. Na rádio, o ecrã tem o tamanho que a nossa imaginação quiser. A Mãe sabia disso e fazia maravilhas. Podes crer.

- Eu sei menos do que tu a esse respeito. Mas o certo é que, uma vez, até um dos pequenos lhe disse: “Ó Avó, porque é que não vai cantar à Televisão?». E sabes o que ela desabafou comigo? “Olha, este foi o maior elogio que ouvi na minha vida. Apesar da ingenuidade, ou talvez por isso, foi um verdadeiro bálsamo para o meu coração». Mas, agora que se vão festejar os setenta anos da Rádio Renascença, feitas as contas um património de toda a nossa família, quem sabe…

            - Não sejas também criança, Teresinha. Foi pena a minha Mãe não ter podido fazer, na Rádio, a carreira que sempre a fascinou e para a qual todos a achavam destinada, mas a verdade é que ela é uma pessoa simples e pragmática. Agora, com a idade que tem, jamais aceitaria actuar em público, sujeitando-se à humilhação dum possível fracasso e propondo-se ombrear com tantos novos artistas, no auge da fama e que, aliás, ela tanto admira.

            - Tens razão. Ela é a Avó dos nossos filhos e que bem lhe assenta esse papel. Desempenha-o com a perfeição que procurou atingir em todas as circunstâncias da sua vida e, se pensarmos bem, não é só na Rádio que se encontra a magia.

           

                                               FIM

 

           

 

 

 

 

publicado por clay às 10:22 | link do post | comentar | favorito
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