Nunca pensei que os "olhos do meu coração, no dizer de S. Paulo, revelassem pormenores por mim julgados completamente esquecidos...
Sábado, 10.01.09

 

Meus queridos netos:


          O nosso regresso a Lisboa não foi nada do que tínhamos planeado: quando nos pareceu que o clima de guerra se adensava e quase todos os nossos amigos e conhecidos já tinham deixado Angola, trocando-a pelo Brasil, pela África do Sul e, sobretudo, pela Metrópole, não arriscando a chegada do dia da independência, que se anunciava tumultuosa, reservámos quatro bilhetes de avião para o fim do ano lectivo.


          Aconteceu, porém que, na altura das férias da Páscoa, já estava tudo tão alterado que resolvemos mandar o Tio Zé, então a frequentar o antigo quinto ano do Liceu (que corresponderia agora ao nono ano) para Portalegre, cidade em cujo Liceu frequentou o terceiro período e teve as notas mais altas da turma, o que muito surpreendeu colegas e professores, que não imaginavam o alto nível do ensino ministrado nas antigas colónias.


          Eu regressei, sozinha, mal acabou o ano lectivo e classifiquei os meus estagiários, para quem o diploma do estágio era a única via de concorrerem a um lugar num Liceu da Metrópole. A partir de certa altura, os estabelecimentos de ensino praticamente já não funcionavam e aulas houve que tiveram lugar na nossa casa.


          Eu bem gostaria de ter ficado mais algum tempo, pelo menos até assistir ao casamento da Tininha, da qual fui madrinha por procuração. Mas havia que aproveitar os bilhetes que iam ficando disponíveis e foi o Vôvô o padrinho que, contava depois, sentia a mãozinha da noiva tremer como uma ave assustada, quando se agarrou ao seu braço durante a cerimónia. E razão tinha para isso, pois já havia intensos bombardeamentos em certas zonas da cidade. Nessa noite, o Vôvô e o Tio Quim, depois do casamento, resolveram ficar em casa do Tio Alfredo, porque acharam imprudente regressar ao nosso bairro, no outro extremo da cidade, para os lados do qual o tiroteio e as explosões eram intensos, de tal forma que, no dia seguinte de manhã, quando o fizeram, o Vôvô receava encontrar a nossa casa feita em cacos. Mas, embora vissem algumas ruínas nas imediações, foi com grande alívio que a encontraram tal como a tinham deixado na véspera e ainda mais: o nosso empregado regava calmamente o jardim como se nada tivesse havido durante noite tão turbulenta! A Luísa, como foi dito numa carta anterior, já não era nossa empregada. Depois de tantos anos de exemplar serviço, o Vôvô conseguira-lhe um emprego num hotel de Luanda.


          Estava-se em meados de 1975, quase um ano e meio depois do 25 de Abril. Governava Angola um governo de coligação mas as relações entre dois partidos angolanos que dele faziam parte eram péssimas, do que resultariam, poucos anos depois, sangrentos acontecimentos, cujo prelúdio praticamente já havia começado. A independência do novo país estava marcada para Novembro.


          O Tio Quim só veio para Portugal passado um mês. Mais tarde, em Setembro, veio o Vôvô, que passou dois dias e duas noites no Aeroporto a aguardar o avião que lhe estava destinado, devido às constantes interrupções provocadas por breves mas ininterruptas greves. Conta ele que, a dada altura, todos os mantimentos se esgotaram no restaurante da gare pelo que resolveu voltar à cidade, onde apareceu em casa do meu Irmão Alfredo, para grande surpresa dele, que o fazia já em Lisboa, deliciando-se então, depois de muitas horas de jejum, com uma boa refeição que a Tia Adelina, não obstante as carências existentes, lhe foi logo preparar. Por sorte, o carro dos Serviços que tinha deixado no parque de estacionamento do Aeroporto, para que um funcionário o fosse depois buscar, ainda lá estava com a chave escondida no sítio combinado, e foi nele que fez o percurso de ida e volta no meio da grande confusão e tiros que se ouviam por toda a cidade.


          Conta ele ainda que, ao regressar ao aeroporto, constatou que um funcionário da Alfândega se entretinha a confiscar bilhetes da Lotaria Nacional premiados que certos passageiros levavam consigo pois, houve quem começasse a guardar cautelas premiadas, algumas só com a terminação, para as rebater em Portugal, porque era muito difícil transferir dinheiro e os escudos angolanos nada valiam cá. As nossas economias, em escudos angolanos, que tanto nos custaram a juntar, ficaram todas no Banco e tivemos de as deixar lá. Nos alto-falantes do Aeroporto uma voz portuguesíssima não parava de ordenar a entrega volutária dos ditos bilhetes de lotaria. O Vôvô tinha alguns e, para que não surgisse qualquer contratempo que  lhe atrasasse ainda mais o embarque, destruiu-os e atirou-os para os montes de lixo que “ornamentavam” o belo Aeroporto de Luanda. Diz ele, e com razão, que quem ficou a lucrar com o seu gesto foi a Santa Casa de Misericórdia de Lisboa. Oxalá muitos outros o tivessem feito também. Que, quando finalmente desembarcou no Aeroporto da Portela, em Lisboa, nem queria acreditar no que seus olhos casualmente viram: no meio da multidão atarantada andava o tal alfandegário português, o caçador dos bilhetes de lotaria, que, pasme-se,  tinha abandonado Luanda, antes dele, noutro avião da ponte aérea!


          Foram juntar-se a mim na casa da nossa grande amiga Celeste, que entretanto tinha ido passar férias no estrangeiro. Quando regressou, ajudou-nos a alugar um apartamento, onde fomos substituir uns amigos dela que iam viver e trabalhar para Paris. Mas, também em Lisboa, os tempos eram tão conturbados que, mal uma casa ficava vaga, era logo ilegalmente ocupada por pessoas que procuravam tirar proveito do ambiente revolucionário. Pelo sim pelo não, mal o nosso apartamento ficou desocupado, fomos logo dormir para lá, mesmo no chão, e assim procedemos até reunirmos mobílias e demais pertences, espalhados por vários sítios. Ainda tínhamos malas, amontoadas com milhares de outras, do cais da Rocha até Alcântara e por baixo da ponte, e uma delas, com discos, louças, talheres etc., já tinha sido saqueada quando, com muita dificuldade, a encontrámos. Escusado será dizer que, depois do que tínhamos abandonado em Luanda, tal perda não foi, para nós, um desgosto muito grande, com excepção, talvez, para alguns discos de vinil antigos com música e poesia do nosso agrado.


          Instalámo-nos, pois, nesse apartamento da Estrada de Benfica, espaçoso bastante para que ainda lá pudéssemos acolher o Tio Alfredo, que também acabou por vir, já muito doente, e a Tia Adelina, para ele se poder tratar no Instituto de Oncologia e, mais tarde, o Tio Ernestino, de Moçambique, como já referi numa carta anterior. Os nossos filhos matricularam-se no Liceu D. Pedro V, que ficava a cerca de meia hora de distância, a pé, da nossa casa e aí fizeram com muito boas notas os estudos até entrarem na Faculdade e o Vôvô já havia regularizado a situação deles, registando-os como cidadãos portugueses, o que foi fácil (numa altura em que tudo era difícil) porque tivemos o cuidado de trazer de Angola as respectivas certidões de nascimento.


          Em Outubro, chamaram-me do Liceu Maria Amália para ir ocupar o meu lugar de professora efectiva, mas, dado o meu frágil estado de saúde e as incertezas em que então se vivia, eu já me tinha reformado e não cheguei sequer a tomar posse, deixando uma profissão que tinha escolhido por vocação e onde me tinha sentido realizada e feliz. Mas não demorou muito tempo sem eu ter arranjado um bom grupo de explicandos, ou colegas dos nossos filhos ou familiares destes. Supriram um pouco a falta que me fazia o convívio com os alunos e, claro, também permitiam aumentar o pouco dinheiro que possuíamos e mais tarde as nossas reformas, que muito rapidamente se degradaram (o Vôvô também já se tinha aposentado), e que só começaram a ser pagas quase um ano depois, felizmente com todos os retroactivos. Em 1980, valeu-nos muito o Vôvô ter sido convidado para integrar a equipa de reconstrução, criada nos Açores, para acudir aos enormes estragos causados pelo terramoto que sacudiu o arquipélago naquele ano, como detalhadamente vos relatei numa carta anterior.


          Com estes altos e baixos e muita fé em Deus, lá fomos vencendo, um a um, os contratempos que se nos deparavam, embora alguns tivessem deixado marcas indeléveis nos nossos corações.


          Mas não quero falar em coisas tristes, pois de tudo me compensa a felicidade de ter dois queridos netinhos como vós.


Beijinhos e até breve.

 

publicado por clay às 10:10 | link do post | comentar | favorito
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