Nunca pensei que os "olhos do meu coração, no dizer de S. Paulo, revelassem pormenores por mim julgados completamente esquecidos...
Quarta-feira, 20.06.07

 

 

 

 

Meus queridos netinhos:

 

Nos primeiros dias de Outubro, iam em plena euforia as vindimas, com os socalcos do Douro pintados de todas as variantes de vermelho, ocre e castanho, quando, abraçada à minha Mãe e olhando já com saudades para tudo o que me rodeava e me era tão familiar, me despedi mais chorosa do que, nos meus onze anos, tinha imaginado. Era uma longa despedida, pois já sabia antecipadamente que não voltaria a casa senão nas férias grandes, ainda tão longínquas.

 

            Mas a aldeia não era servida por camionetas pois nem sequer estrada havia a não ser para as sedes dos concelhos e a viagem de comboio até Lisboa era um autêntico calvário, embora eu a encarasse muito mais como inesperada aventura.

 

            Saímos de casa ainda mal despontava o sol, eu montada no nosso velho Carriço, à ilharga de meu Pai e seguidos por outro cavalo que levava as minhas duas pequenas malas e o farnel da merenda. Isto quando se arranjavam dois cavalos. Caso contrário eu montava no meio das malas, segurando o farnel. E o meu Pai, coitado, lá ia a pé quilómetros e quilómetros por montes e vales até chegarmos à estação do Pinhão e aí esperávamos pelo comboio que chegava no princípio da tarde.

 

            A estação do Pinhão deixou-me totalmente fascinada com os seus azulejos azuis e brancos, onde se representavam os trabalhos da vinha e do vinho. Creio que foi o meu primeiro encontro com a arte que nessa altura considerei genial.

 

            Mas eis que o comboio entra na estação, vindo dos lados de Barca de Alva, vomitando espesso fumo negro e atroando os ares com os ruídos dos velhos freios e o descarregar das suas caldeiras. Não havia tempo a perder: um último abraço a meu Pai e eis que me encontro no meio dum rancho de vindimadores, que antes de se submeterem à inclemência do sol a faiscar no xisto das vinhas e ao peso dos cestos vindimeiros transportados encosta acima, afastavam as saudades da família e o receio do desconhecido com descantes que eu muito bem conhecia pois o roteiro de alguns desses ranchos passava pela minha aldeia, onde à noite descansavam em palheiros e partilhavam da sopa que sempre lhes ofereciam e armavam animados bailaricos.

 

            No comboio eu não via mais nada: só o rancho de vindimadores, cantando ao som do harmónio, dos ferrinhos e de uma ou outra perdida viola ou cavaquinho. Via também os bancos de madeira, pois viajava na 3ª classe, assinalada por três traços verticais (a 2ª tinha dois traços e a 1ª apenas um, que metia respeito. Penso que era assim para não haver enganos, pois naquele tempo a taxa de analfabetismo era muito elevada). Um dia olhei para dentro da primeira classe e vi os bancos estofados de veludo e um pano de renda para recostar a cabeça, luxos esses que estavam, como é de ver, muito longe das minhas possibilidades. No entanto ouvi dizer que, também lá havia pulgas e até percevejos, insecto este hoje quase desconhecido no nosso país, mas que naquele tempo infestava as melhores camas, mesmo em hotéis de nomeada. O vôvô conta que, quando fez o serviço militar em Mafra, na Escola de Oficiais Milicianos, alguns anos mais tarde, as camas de ferro era transportadas todos fins-de-semana para a parada do quartel onde eram desinfestadas a maçarico, porque os malfadados e malcheirosos bichinhos escondiam-se durante o dia nas zonas mais inacessíveis dos ferros e só o fogo lá chegava para os destruir. De noite passeavam entre os lençóis e massacravam com as suas picadas dolorosas os pobres cadetes que tentavam dormir. Nos primeiros dias da semana que se seguia, era um descanso, mas, quando se aproximava novo fim-de-semana, novo inferno e nova desinfestação…

 

            Os meus companheiros de viagem eram sobretudo soldados, pois tinha começado a segunda grande guerra (1940-1945) e havia muitas movimentações de tropas. Por essa razão se decretou o racionamento de bens alimentares (e também do petróleo e da gasolina) e as famílias enviavam das aldeias para os seus parentes nas cidades cestos e cestos de mantimentos que atravancavam todos os espaços. Não havia um cantinho livre. A certa altura, extenuada, aceitei com agrado a sugestão de alguém:

 

            - Ó menina, sente-se aí nesse cesto que só leva batatas e cebolas. Sempre dá um pouco de descanso às pernas.

 

            A princípio, achei o “estofo” bastante incómodo mas em breve adormeci. A noite passou sem eu quase ter dado por isso e, de manhã, cheia de fome, devorei uma perna de coelho frito, uma fatia de pão e um cacho de uvas do farnel. Uma paragem mais longa no Porto e lá segui, toda a manhã, com a sensação de estar ainda na Escola, numa sala de geografia, pois nos meus ouvidos atónitos iam desfilando todas as estações e apeadeiros cujos nomes ali tinha aprendido de cor e salteado.

 

            É verdade que no Porto tinha saído muita gente e muitos cestos e só então eu arranjei um lugar ao pé da janela, o que me permitiu ver o vasto mundo que ia atravessando e de que jamais suspeitara a incrível variedade e o incomensurável tamanho. Entretanto a minha aldeia ia-se-me afigurando cada vez mais pequenina. Cabia-me toda dentro do coração.

 

            Lá para o meio da tarde, um tudo nada atordoada, cheguei à estação do Rossio, onde me esperavam os braços amigos do meu Tio Armando, que muitas vezes me fez de Pai e companheiro, tornando a cidade grande bem mais acessível e acolhedora para mim.

 

            Não tanto nesse momento de encontro pois logo o meu Tio, apontando a minha cara, gracejou:

 

            - Ó cachopinha, tu vieste do Pereiro mas foste dar a volta pela África?

 

            E perante o meu ar encabulado, logo veio em meu auxílio:

 

            - Claro, claro, é do túnel. Por mais que fechem as janelas não se livra a gente de sair de lá todo enfarruscado com a fumaça negra do comboio!

                                         

 

 

publicado por clay às 01:15 | link do post | comentar | favorito
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