Meus queridos netos:
Li outro dia numa revista - com grande pasmo se diga – que uma menina de nove anos pôs em alvoroço clientes e empregados do El Corte Inglês, a gritar quase histérica, para a outra ponta do corredor da secção “Moda Jovem”:
- Mãe, ó mãe. Anda cá ver. Sabes que já trouxeram para aqui uma secção de roupa da Dolce & Gabana.
A mãe, entre vaidosa pela precocidade da filha e um certo receio do ridículo, lá foi esclarecendo:
- Sabem, é que tanto o meu marido como eu trabalhamos no domínio da moda, no que já fomos seguidos pela nossa filha mais velha, a Celeste, que colabora numa revista da especialidade, com dezasseis anos apenas. E é isso: as revistas que recebemos, as nossas conversas profissionais têm condicionado bastante a maneira de ser das miúdas.
Ao lado, uma senhora já perto dos sessenta anos comentava para uma amiga:
- Pode ser. Mas o que eu penso é que isto está a ser uma epidemia que atacou os graúdos e logo contaminou os miúdos. Ainda há dias, percorri de ponta à ponta o Centro Comercial das Amoreiras à procura de uns ténis para a minha neta que, com apenas sete anos, exigia uma determinada marca: “a que todos os colegas tinham lá na Escola dela”. Quando penso no meu tempo…
Foi esta última frase que me fez recuar, não digo já à minha infância, em que “o vestido de ver a Deus” tinha de ser trocado por outro ainda mais simples e cuidadosamente guardado, mal se voltava da missa. Vem a propósito dizer que, certo domingo, ao enfiar o vestido que usava todos os dias, deslizou-me pelas costas abaixo uma salamandra relativamente grande, toda sarapintada e viscosa, de cujo contacto nasceu a minha aversão aos répteis.
Nessa altura eu só sabia que a roupa, como tudo, tinha de ser muito bem poupada. Era cerzida, remendada, virada do avesso e ninguém reparava nisso. Era normal.
A primeira vez em que me apercebi de que havia modas, ou seja roupas compradas nas lojas do Chiado e arredores, foi quando ao tirar da mala que trouxera da aldeia, a minha roupa interior para a guardar na gaveta que me tinham destinado, ouvi os risinhos sarcásticos da Eutávia, a filha mais velha do casal que me hospedara:
- Que roupinha mais saloia! Ora vejam: combinação de opalete às florzinhas a condizer com as cuecas idem e ainda por cima todas enfeitadas com rendinhas feitas à mão, calculo que por ti própria. E meias de renda de cinco agulhas, até ao joelho – essas devem ter sido feitas pela tua avó e sabes o que me lembram? As que usam os campinos dos ranchos do Ribatejo nas exibições folclóricas. Olha, minha menina: a moda agora, a ultima moda, vinda da América, são combinações, cuecas, soutiens e meias, tudo de nylon. Qual lã, qual algodão, qual carapuça! Tem de ser tudo de nylon, que é fininho, brilhante e essa roupa nem precisa de ser engomada.
Vim a conhecer essas maravilhas logo na manhã seguinte, quando fui ao quintal: lá estavam, dependuradas da corda, as elogiadas roupas que a Eutávia lavava à noite e tencionava vestir quando voltasse do emprego, pois, enquanto eu tinha pelo menos meia dúzia de combinações de opalete às florinhas, a minha crítica só possuía duas mudas de roupa, que mais não lhe permitia o modesto emprego que acumulava com os estudos, à noite.
Não me lembro de ter ficado traumatizada – ia jurar que não – pois continuei a gostar do enxoval que a minha mãe me preparara com tanto carinho e a usar as meias à campino que, só chegando até ao joelho, me deixavam, no rigor do Inverno, as pernas todas vermelhas, embora nunca desse pelo frio. Lembro-me de, mais tarde, quando os sapatos ficaram velhos, com buracos nas solas, eu os forrar de papel de jornal para me enfiar na Barateira, um alfarrabista da Baixa, a cobiçar e a comprar, sempre que as poupanças davam para isso, um livro de Aquilino Ribeiro – que era lá dos meus sítios e falava de personagens que sempre me lembravam alguém que eu tinha conhecido e usavam palavras que, ao contrário de muitos dos meus colegas, eu conhecia muito bem – ou então de Stephan Zweig, da Pearl Buck e outros autores em voga.
Passaram-se alguns anos. Quando entrei na Faculdade, tive o privilégio de comprar um casaco comprido, novo, feito por uma modista que trabalhava muito bem. Era todo às riscas estreitas, em diagonal, uma branca seguida por outra castanha. Usei-o durante quase todo o curso mas, lá para o fim, não resisti à tentação de renovar o guarda-roupa: mandei-o virar do avesso e tingir, todo de azul-escuro. E até ficou bem bonito com as riscas a conhecerem-se mas todas elas azuis, mais claras as que tinham sido brancas, mais escuras as castanhas. Muita gente assim procedia, incluindo os homens. O Vôvô conta que em Portalegre até havia um alfaiate especializado em virar fatos que depois ficavam como novos. O único problema era a casa que então se usava na lapela do lado esquerdo - onde alguns punham o emblema do clube da sua preferência ou uma flor – que passava a figurar na lapela do lado direito, o que denunciava a operação. Os que podiam mandavam-na cerzir, uma operação que a encarecia, hoje em desuso.
Talvez vos custe a acreditar, meus queridos netos, mas ainda agora, passados mais de cinquenta anos, quando evoco algumas das minha quarenta colegas de Românicas, aliadas aos nomes, em que sou perita, surge logo a saia de xadrez pregueada da Conchita, o casaco verde-claro e talhado em godís da Maria Helena, o grande casaco cinzento com pele de coelho da gorda Joana Queiró e assim por diante.
Queres melhor prova do apego que tínhamos às nossas roupas, que nos acompanhavam sempre, durante vários anos e passavam a fazer parte das nossas personalidades? Marcas, para quê?