Nunca pensei que os "olhos do meu coração, no dizer de S. Paulo, revelassem pormenores por mim julgados completamente esquecidos...
Domingo, 24.06.07

 

 

 

            Meus queridos netos:

 

            No dia em que cheguei a Lisboa, pela noitinha, o meu Tio foi levar-me a conhecer a Família que me iria acolher e que era composta pelo pai, a mãe, um filho e uma filha. Ao vê-los, gente normal, jamais poderia imaginar que aquele iria ser o período mais triste da minha vida.

 

            Quando o meu Tio, ao apresentar-me, disse que eu tinha sido muito boa aluna na primária pelo que a minha tia-professora insistira com os meus Pais para que me deixassem continuar os estudos, logo a mãe se apressou a dizer:

 

            - Pode vir a ser muito boa aluna mas nunca como a minha Eutávia, que tem sempre bom em todas as disciplinas.

 

            Estava traçada a minha sentença: os ciúmes e a inveja envenenaram uma relação que podia ter sido amável e gratificante para todos. Mas não.

 

            Já falei do desdém que mereceu a minha roupa interior. E esse desdém foi como um vírus que nada deixou incólume.

 

            Era o tempo da II Guerra Mundial, cujos sinais mais visíveis no nosso país eram as tiras de papel branco cruzado sobre tudo quanto era vidro para minorar os estragos dos bombardeamentos, que graças a Deus nunca nos atingiram e um racionamento apertado pois escasseavam os bens, que alguns diziam ser enviados para os países beligerantes.

Por outro lado os rendimentos daquela família como os da maioria, eram tão escassos que roçavam a miséria: a mãe fazia acabamentos de peças de roupa – calças sobretudo – que ia buscar e levar aos Armazéns do Grandela e que lhe ocupavam os serões até bastante tarde. Chuleava, fazia bainhas, abria cavas e pregava botões, ganhando um tanto por cada peça; a filha, realmente era boa aluna, sobretudo se se tomasse em conta que frequentava um curso comercial nocturno e trabalhava de dia num escritório, donde, mesmo que não fosse bem paga, trazia um importante contributo para as despesas. A minha mensalidade pagava o arrendamento de um rés-do-chão perto da Alameda D. Afonso Henriques e, portanto, também do meu Tio, que tinha  a sua loja de “Louças, Vidros e Mercearias Finas” na Avenida Almirante Reis, perto do Largo que ainda não existia e se viria a chamar Praça do Areeiro; o filho, mais novo, andava a estudar e o pai estava desempregado. Ia, uma vez por semana, à Lota do Peixe, onde comprava um cabaz de carapaus que, depois de salgados, eram cozidos com batatas e nos serviam de conduto durante toda a semana. Por isso era dia de festa quando chegava da família do Alentejo uma modesta encomenda de toucinho e alguns chouriços.

 

            O racionamento era feito através de cupões individuais que davam direito a comprar determinadas quantidades muito pequenas dos bens alimentares de primeira necessidade e também o petróleo do fogareiro onde se cozinhava. De tudo isto eu só sabia as generalidades já que, como diz o povo, não eram contas do meu rosário. Só me lembro do pão: um quarto de pão por pessoa, para todo o dia. Mas, antes do sistema de racionamento ter sido instituído, a situação era ainda pior, pois formavam-se grandes filas de espera junto aos estabelecimentos. Havia pessoas que, quando viam uma dessas filas, alinhavam logo nela, sem indagar sequer o que “estavam ali a dar”, como então se dizia, porque o quer que fosse era batalha ganha, mesmo pagando!

 

            Por isso, como me magoava, ao pequeno-almoço (uma chávena de café de cevada, com uma pequena fatia de pão) ouvir dizer ironicamente:

 

            - Se calhar gostavas mais das tuas couves!

 

            E gostava. Que bem me sabia, na casa dos meus Pais, quando não havia leite, um prato de excelente caldo verde e uma boa fatia de pão de centeio aquecida e mergulhada em azeite. Mas ficava-me calada a tentar ignorar a conversa:

 

- Só faltava dizer que passas fome!

 

Penso que nessa época, a maior parte das pessoas passava fome ou não comia quanto tinha na vontade.

 

Mas, apesar disso e porque não queria dar parte de fraca e ser mandada para casa, deixando os meus queridos estudos, quando ia a casa do meu Tio, onde por ele ter uma mercearia nada faltava na mesa em que às vezes os encontrava a jantar, não aceitava qualquer comida, a não ser rebuçados ou chocolates. E não era por ser gulosa.

 

Também a minha Mãe, lá tão longe, não fazia a mínima ideia dos meus sacrifícios pois sempre as minhas cartas eram cheias de optimismo, centrando-se, sobretudo, nos bons resultados que obtinha nas aulas e sabia irem dar-lhe a maior satisfação, por mim e por verem os seus esforços compensados.

 

Mas também esses sucessos foram – e talvez mais do que tudo o resto – motivo para mim, de grande motivação, e de cada vez que tinha notas muito elevadas, o que sempre acontecia pois era a melhor aluna da Escola, fazia todo o caminho até casa de coração apertado, a pensar em que, em vez da alegria que sentiam os meus Pais, ouvia quase invariavelmente:

 

            - Pois, os cestos cheios que os teus Pais mandam da terra para os teus professores sempre haviam de servir para alguma coisa …

 

            Engoli muitas lágrimas em seco, perante tão grande mentira e tão requintada maldade, mas não só não retorquia – não valia a pena – como até gostava de ajudar: como nunca precisava de estudar à noite, passei muitos serões entretida a pregar botões e a fazer outros acabamentos, aperfeiçoando os rudimentares conhecimentos de costura que tinha adquirido na aldeia durante o ano em que esperei ter a idade que a minha mãe achava a mínima para me aventurar em Lisboa.

 

            E vejam lá a aventura que havia de ocorrer, mal tinha chegado à grande cidade. No primeiro dia de aulas, o meu Tio pediu a uma menina nossa vizinha que também frequentava a Escola Comercial Veiga Beirão no Liceu Maria Amália, que me servisse de guia e companheira.

 

            Fomos juntas, a pé, do Areeiro ao Liceu Maria Amália, quem conhece Lisboa sabe que é uma grande distância. Mas, depois, nunca cheguei a saber qual a razão do desacerto, não vi sombra da minha companheira e fiquei sem guia para o regresso a casa.

 

            Era Outubro, os dias mais pequenos e não havia que hesitar: meti pés ao caminho e lá fui andando na direcção certa até que me encontrei num dilema: eu sabia que tinha seguido uma linha de eléctrico mas, a dada altura, essa linha dividia-se, indo um ramal para o Jardim Zoológico.

 

            Nada disso eu conhecia. Começavam a acender-se as luzes e o meu coração, pequenino, parecia querer saltar do peito. Reparei numa grande igreja, acabada de construir e que mais tarde vim a saber tratar-se da Igreja de Nossa Senhora de Fátima.

Pedi ajuda à Nossa Senhora Auxiliadora, a quem na igreja da minha aldeia rezava desde pequena. Lembrei-me, então, da recomendação da minha Mãe: “Se alguma vez te perderes, não te fies em ninguém. Pede ajuda a um polícia”.

 

            Assim fiz e o senhor guarda foi tão amável que me levou até casa, explicando-me pelo caminho com todo o pormenor, qual o erro de orientação que eu tinha cometido. E o certo é que nunca mais me perdi em Lisboa.

 

            Muito mais poderia contar mas, para não ser maçadora, resumo dizendo que foram assim, sem grandes variantes, os primeiros dez meses da minha vida com estranhos.

 

            Mas quando Julho chegou, orgulhosa do meu esforço e da minha obstinação, foi como se se me tivessem aberto as portas do Paraíso: o regresso a casa, o carinho da família que tanto me tinha faltado e a minha pequena aldeia, tal qual a tinha deixado, perdida para lá do Marão.

 

 

                 

 

 

 

           

 

           

publicado por clay às 00:49 | link do post | comentar | favorito
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