Nunca pensei que os "olhos do meu coração, no dizer de S. Paulo, revelassem pormenores por mim julgados completamente esquecidos...
Quinta-feira, 20.05.10

                               

 

Quando a menina nasceu – e isto passou-se há muitos, muitos anos – não havia maneira de atinarem com o nome a dar-lhe: a mãe queria chamar-lhe Purificação porque tinha uma fé especial nesta invocação de Nossa Senhora; o pai achava o nome muito comprido e, santa por santa, melhor seria chamar-lhe Assunção, nome mais curto e fácil de dizer. Mas a mãe contrapôs que esse não era argumento aceitável porque ela tencionava, em família, chamar-lhe Purinha. E ganhou a mãe, como era de prever. Ganhou, isto é, teria ganhado se o Diabo, ou alguém por ele, lhe não tivesse trocado as voltas.

 

             Quando o pai foi à sede do concelho, um bom par de quilómetros a cavalo, para fazer o registo, pôs-se à conversa com o escriturário, seu conhecido e, palavra puxa palavra, foi uma longa cavaqueira, no meio da qual, ambos distraídos, o nome que ficou registado foi, imaginem… Menstruação.

 

            Ao chegar a casa e ao mostrar à mulher a cédula pessoal, desabou uma tempestade de choros e protestos que, por pouco, não deitava a casa abaixo.

 

             Quando as coisas acalmaram, disseram ambos:

 

- Afinal não há nomes maus. O que é preciso é que ela tenha muita sorte e uma longa vida.

 

             Ora, logo havia de estar ali à escuta, na sombra da cozinha, uma fada que se ofereceu:

 

- Eu vou já fadá-la para que nunca a morte dê com ela e para que nenhuma mulher a desconheça.

 

            Os pais acharam o voto excessivo pois não tinham notícia de que alguém não morresse nunca. Todos, ricos ou pobres, bons ou malfeitores, tinham o mesmo destino, a ponto de se ter inventado o dito: «A morte é certa, a hora incerta». E também qual viria a ser a vantagem de todas as mulheres a conhecerem? E porque não todos os homens?

 

            Os pobres pais estavam completamente baralhados, mas que podiam eles contra uma fada?

 

            Pronto. A menina cresceu e tinha, entre outras, uma grande qualidade: era muito pontual.

 

            Como o nome era, realmente, comprido e até um pouco difícil de pronunciar, resolveram chamar-lhe São e esquecer toda aquela trapalhada.

 

            E São ficou a menina para os pais e mais família, para as colegas da escola e até para a professora primária, embora esta não pudesse ignorar o seu verdadeiro nome, constante dos documentos oficiais.

 

            Embora não fosse feia e até muito prestável, nunca arranjou namorado e, portanto, nunca se casou. Durante muitos anos, todos continuaram a chamar-lhe Menina São e alguns, mais íntimos, Menina Sãozinha.

   

                                                                       ***

 

            Mas quando as rugas começaram a marcar-lhe a cara e os cabelos brancos a misturarem-se com os castanhos, as pessoas quiseram dar-lhe um tratamento mais adequado à sua idade e condição.

 

            Abriram a boca de espanto – mas logo a taparam à pressa, com a mão – quando lhes disseram que a Menina Sãozinha se chamava, nem mais nem menos, que D. Menstruação. A princípio, foi um grande embaraço, mas, com o hábito, já achavam o nome tão normal como outro nome qualquer: então não havia as Aldegundes, as Hermenegildas e outros ainda mais estapafúrdios?

 

Ora, como nós sabemos, ainda a procissão ia no adro e o segredo era outro bem mais importante e escondido.

 

            Só que, com aquele nome, aconteciam muitos quiproquós e faziam-se, inadvertidamente, muitos trocadilhos que umas vezes deixavam as pessoas embaraçadas e outras, talvez em maior número, aflitas com o riso sufocado:

 

- Ora muito boa tarde, D. Menstruação. Tenho muito gosto em vê-la. Embora, a falar verdade, não contasse hoje com a sua visita (risos dos circunstantes).

 

- Mas olhe que já há quase um mês que não nos víamos.

 

- Pois é verdade. Então vamos lá tomar um chazinho e pôr a conversa em dia.

 

- Obrigada pelo chazinho, mas não queria dar-lhe esse incómodo… (mais risos abafados).

 

- Não diga isso. Se calhar a sua ausência volta a prolongar-se por quase outro mês e só no fim desse período…

 

            Nem completou a frase porque, por mais que fizesse, não conseguia evitar as numerosas alcunhas com que as pessoas, apesar de tudo, procuravam evitar aquele nome, por elas próprias dito normal.

 

            Quando a visita era para alguma adolescente, tornava-se um verdadeiro incómodo pois, embora durante um curto período, a menina não podia ir à piscina o que, naquelas idades, era sentido como uma grande provação.

            Alguma havia até, com mais sentido de humor, que, da primeira vez, desabafava com alguém:

 

- Então já viste que agora vou tornar a usar fraldas?

 

            E isto quando tudo corria de feição porque a mãe, previdente e esclarecida, já tinha antecipado todas as explicações. Mas não raras vezes – sobretudo em tempos já passados – tudo o que dizia respeito a D. Menstruação era um impenetrável segredo.

 

E aí criavam-se verdadeiras situações de pânico: as meninas, sem saberem a causa da repentina hemorragia, julgavam-se vítimas duma doença mortal e iam, debulhadas em lágrimas, acolher-se às asas protectoras das mães que as consolavam com palavras sábias e avisos prudentes. Sentiam-se então felizes por poderem dizer às amigas que já eram verdadeiras mulheres e sabiam tudo de tudo.

 

                                                       ***

 

            Mas, apesar das palavras da fada que, aliás, só falara de morte e não de velhice, D. Menstruação foi envelhecendo, envelhecendo e, um dia, apareceu muito triste e alquebrada em casa da D. Micas. E desabafou:

 

- Há fados que não deviam ser permitidos: como é que eu, tão velhinha e achacada, poderei viver para sempre? Que triste sina a minha! É verdade que, na minha longa vida, tenho assistido a muitas manifestações de alegria, embora também a alguns dramas. Como eu fico radiante quando ouço uma mulher, casada de fresco, dizer para o seu marido: “Acho que vamos ter um filho. Este mês não tive a visita da D. Menstruação…” Ambos ficam loucos de alegria e eu ainda me sinto útil. Mas como me dói o desespero de raparigas solteiras ao darem pela minha falta! Bem gostaria de lhes fazer uma visita, mas esse remédio não está nas minhas mãos Como não está nas minhas mãos valer às mulheres casadas já carregadinhas de filhos… O que é certo é que eu estava a cumprir o meu fadário e quase sempre nasciam crianças lindas, que eram o enlevo de todos. E nada podia fazer contra a sina que a fada me tinha dado. E agora veja lá, D. Micas, agora que já me tinha resignado, além de velha, estou a ficar sem préstimo. E vá lá a gente fiar-se em fadas … È verdade que, sem a minha visita, nenhuma mulher pode conceber um bébé, mas inventaram para aí umas pílulas mágicas que praticamente só o têm se quiserem e quando quiserem. A menos que sejam umas estouvadas e se esqueçam de as tomar. Há casos em que até fico contente por me não quererem receber em casa, pois, como já disse, os anos foram-me tirando o gosto de cumprir o meu destino. Mas há outros em que sinto uma grande mágoa: quando dizem que têm de fechar escolas porque não há meninos para as irem encher dos seus risos e lá aprenderem a ler, a escrever, a prepararem-se para a vida. Também tenho muita pena daqueles casais que passam anos a sofrer a desilusão de ver que a minha visita, talvez por esta minha já referida velhice, mais uma vez não deu em nada. Mas também já me disseram que não é bem assim: é verdade que tenho de aparecer primeiro numa mulher e depois os médicos, com as suas inseminações e outras magias esquisitas que eles conhecem, é que se encarregam de trazer ao mundo mais algumas crianças. Mas temo muito pelo meu futuro. Os homens são capazes de tudo, até de me tirarem o pouco préstimo que ainda me resta e, com ele, a vida que a minha fada disse que não acabaria nunca. Não quero ser pessimista, mas muitas vezes me surpreendo a dizer com os meus botões: «Como os tempos mudaram!»

 

 E ponho-me a magicar se a mudança foi ou não para pior.

      

                                      

                                               Vila Ruiva, 16-09-07

 

                                                Clementina Relvas

        

 

publicado por clay às 00:44 | link do post | comentar | favorito
Lena a 24 de Maio de 2010 às 17:06
Olá!
Apesar dos nomes trocados, a história é emocionante :)

Deixo um convite: Junte-se a nós no dia 10 de Junho, no Convento dos Frades Franciscanos, em Trancoso, num duplo evento: «Encontro de Bloggers e lançamento do livro "Aldeias Históricas de Portugal – Guia Turístico". Para estar presente, envie um mail para aminhaldeia@sapo.pt a solicitar o formulário de inscrição e o programa das festividades. Faça-o com antecedência, pois as inscrições são até dia 2 de Junho.

Abraço
Lena
clay a 29 de Maio de 2010 às 17:27
Cara Lena:
Muito obrigada pelo seu comentário ao meu conto "Nomes Trocados", escrito com uma intenção informativa e educativa, sobretudo para a minha neta, de quinze anos.
Bem gostaria de estar convosco em Trancoso, terra onde já passei, há muitos anos e que admiro como, aliás, a todas as Aldeias Historicas de Portugal. Os meus aplausos para todos os que se empenham em lhes dar maior visibilidade.
A aldeia em que nasci, (Pereiro-Tabuaço), não fica longe, mas eu vivo em Lisboa e os meus 82 anos, embora activos, só me permitem estar convosco
em espírito. No entanto, estou-lhe muito grata pelo convite e desejo que a reunião seja um êxito.
Com toda a simpatia da Vóvó
Clementina
lena a 31 de Maio de 2010 às 09:15
Olá!
Pena não poder vir. Mas fico feliz por ver que a vóvó Clementina é energíca e mais jovem do que muitos jovens :) Mantenha-se sempre assim :)

Jocas gordas
Lena
clay a 21 de Junho de 2010 às 10:35


Querida Lena:

gostava de saber como decorreu a vossa sessão do 10 de Junho.
Cumprimentos

Clementina Relvas



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