Meus queridos netinhos:
Pela minha carta sobre o Natal, devem ter ficado a julgar que era essa a Festa mais bonita da minha infância – ou, pelo menos, aquela de que eu mais gostava.
Mas não. Havia outra que era mais alegre, mais mágica, até porque ocorria
Talvez até porque era precedida, na Quaresma, por uma procissão que deixava todas as crianças com o coração a balançar entre o espanto e o medo.
Nesse dia, predeterminado, juntava-se quase toda a população da aldeia e fazia uma espécie de Via Sacra – que consiste em percorrer um caminho semelhante ao que levou Jesus até à Cruz onde iria ser morto – mas muito mais especial que se chamava mesmo “Ir ao Calvário”.
Tinha lugar já noite dentro, em quase completa escuridão, cujo breu só era cortado pela luz de um pequeno archote empunhado, com muito orgulho, por um rapaz já crescido e que fosse bem comportado. Um homem adulto, também de vida limpa, levava uma grande cruz de madeira, que, de vez em quando, passava a outro que também fosse merecedor.,
Saía-se da Igreja em silêncio apenas cortado, a espaços, por um fragmento de um cântico lúgubre e um lúgubre bater de matracas. (A propósito: um dia, passados muitos anos, participei numa, semelhante, numa pequena aldeia da Andaluzia espanhola).
Ainda hoje me lembro de pedaços desgarrados desses hinos, que todos cantávamos em coro, numa melopeia muito arrastada, com paragens em certos lugares da única rua da aldeia, lugares que nada assinalavam, mas eram sempre os mesmos, sabe-se lá há quantas gerações.
Aí, parados, erguia-se um enorme brado: “Senhor Deus, misericórdia!”.
Ainda hoje me ressoa aos ouvidos, com melodia e tudo, um hino que começava assim:
Pilatos, Pilatos, el-rei dos judeus
mandou uma carta
para os fariseus.
De porta em porta, de rua em rua,
Jesus da minha alma
sem culpa nenhuma.
Era um arrepio que nos tolhia de medo, embora lá mais para a frente, se abrisse uma porta de esperança, que me dava novo alento:
Eu fui ao Calvário
visitar a Cruz
deixei a minha alma
aos pés de Jesus
E até parecia que eu ficava mais leve e mais reconfortada. A procissão prosseguia lenta e imutável, até um pequeno monte que havia já fora da aldeia e que sempre ouvi chamar – e ainda hoje se chama – o Calvário. Aí chegados, cravava-se no chão a Cruz que piedosamente tinha sido transportada da Igreja e entoavam-se, também em coro, algumas orações como estas:
Senhor Salvador do Mundo,
que a todos salvais,
salvai a minha alma.
Bendito sejais!
Bendito sejais, Coração de Jesus,
que tanto padecestes
pregado na Cruz.
A minha caneta pregou-me hoje esta partida: eu queria falar-vos da Páscoa, da alegria da Ressurreição, mas toda a minha memória foi submersa por estes momentos de fé, de luto e de dor pela morte de Cristo.
Não quis deixar de os assinalar, até porque, tendo-os julgado esquecidos durante anos, na altura em que fui submetida a uma operação muito grave, logo ao sair da anestesia eles me acudiram ao pensamento, e uma voz interior cantava incessantemente em mim esses e outros trechos da Ida ao Calvário que me tinham acompanhado desde a infância e agora, incapaz de recordar ou elaborar outras orações, enchiam o meu coração de paz, de amor e de esperança como se tivesse voltado à minha infância e àquelas idas ao Calvário, como se a minha alma estivesse ajoelhada aos pés de Jesus, com a mesma confiança da criança que fora.
A ida ao Calvário não era uma Festa, se pensarmos que Festa é sinónimo de alegria, mas era uma devoção profundamente enraizada na alma do povo, numa tradição que marcou para sempre a minha infância.