Nunca pensei que os "olhos do meu coração, no dizer de S. Paulo, revelassem pormenores por mim julgados completamente esquecidos...
Terça-feira, 17.09.13

 

 

                                                   Meus queridos netos:

 

            Talvez não devesse deixar-vos como legado este testemunho duma longa vida, a experiência que ela me foi proporcionando, porque vós , que começais agora a vossa, tendes o direito de ter sonhos, de ver a realidade por um prisma otimista e de aceitar qualquer contrariedade como um acidente de percurso.

 

            Mas, quanto a mim, a felicidade não existe na terra. Há, sem dúvida, não só momentos mas períodos felizes e a sensatez dos humanos é tirar deles tudo o que têm de bom e de abençoado.

 

            Eu, com oitenta e quatro anos, nem tenho o direito de me lamentar, antes de dar graças a Deus por tanta benevolência com que me tem tratado: é verdade que perdi dois filhos, um acabado de nascer e outro a meio da gestação, mas tenho-os como dois anjinhos que, estou certa, a todo o momento intercedem por mim; também, quando, pelos meus cinquenta e poucos anos, me descobriram um cancro do ovário e tive de me submeter a horríveis tratamentos, Deus veio em meu auxílio e vivi muito tempo sem sofrimento de maior até que, há cerca de sete anos, tive uma recidiva que me valeu duas operações inúteis, em dois anos consecutivos acompanhadas por mais quimioterapias, que deixaram vários rastos. O pior foi, há dois anos, começar a cair quando, encostada a uma superfície lisa, me desmoronava como parede em ruínas. O que, embora me tenha custado dois meses imobilizada na cama e muitos outros, até hoje, com dores lombares que não cedem a comprimidos e só consigo aliviar deitando-me com um saco de água quente, ainda aí Deus esteve do meu lado, pois nunca tais quedas deixaram fraturas ou sequer equimoses e, sobretudo, dormi sempre sossegada, sem dores, que desapareciam  com a posição horizontal. Entretanto, como não podia ter a  atividade que me caraterizava e perdi a vontade de ler, ver televisão, ouvir música e muito menos sair para as minhas viagens ou simples passeios, pois também o meu equilíbrio foi afetado, passei a sentir, com mágoa, essas limitações. 

 

            Mas pior do que a minha doença é o que se tem passado com a saúde do meu filho mais novo, atingido, há anos, por várias doenças gravíssimas e agora, aos cinquenta e dois anos, passando a sua vida entre longos internamentos no Hospital e um Lar, de onde lhe é vedado sair sozinho, mas onde tem quem, permanentemente, se ocupe dele. Visito-o, geralmente com o Pai, mas no regresso vimos ambos de coração amargurado e sem forças para levar até ao fim esta vida tão atribulada. Só a fé em Deus nos ajuda a suportar tão pesados fardos.

 

            E estareis a pensar agora: mas nem toda a gente tem vidas assim – algumas são muito piores – e onde é que estão os períodos de felicidade de que falava no princípio? Parecer-vos-á impossível mas também os tive, alguns de grande intensidade mas para compensar os lamentos que aqui registei, preciso de muito espaço e essa tarefa tem de ficar para outra vez.

 

            Beijinhos da Vóvó e do Vôvô, que tem sido o meu conforto e o meu

amparo, o meu Anjo da Guarda na Terra.

 

                                               Lisboa, 12 de Agosto de 2013


                                               Clementina Relvas

 

 

 

publicado por clay às 00:55 | link do post | comentar | favorito
Our Little Space a 18 de Novembro de 2013 às 20:06
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