Meus queridos netos
A aldeia da minha infância era muito pobre mas cem por cento ecológica: havia uma aflitiva falta de água, porém, quando o Inverno chegava e até tarde, na Primavera, os riachos e ribeiros alegravam-nos e ao ambiente com o seu ruído, primeiro assustador, depois saltitando, felizes, de pedra em pedra e, nas suas bordas cresciam espontaneamente agriões e tufos de violetas e sempre, sempre a sua água era límpida. Com essa água regavam-se as hortas de couve, feijão verde, nabiças, tomate e muitos outros legumes. Essas hortas, bem como os campos de trigo, cevada, tremoço e até amendoins eram adubados com estrume que, na maior parte, resultava do aproveitamento dos restos de comida que sobrava da nossa mesa ou das gamelas dos porcos, e juntamente palha de centeio, com que no Inverno, se cobriam as ruas e becos para facilitar o trânsito das pessoas. Facilitava mas nem sempre, porque, como chovia muito, às vezes “a potes” , dizíamos, a palha molhada era macerada pelas botas e socos, tendo então de ser recolhida num monte, donde saía para adubar. E era cada escorregadela...
Outra fonte de adubo eram os próprios animais: os cavalos que tinham o seu estábulo nas lojas por baixo das casas, esta não ficava, como imaginam, a cheirar a alfazema mas esse cheiro era tão constante que já ninguém dava por ele; os bois, pertença de raros lavradores mais abastados e os rebanhos. Estes sim, tinham um papel tão importante na adubação das terras, que até eram acompanhados dum ambiente de certo modo festivo. E porquê? Perguntarão. É que só havia um grande rebanho colectivo, guardado por um ou dois pastores que eram pagos com as crias do rebanho que apascentavam em terrenos baldios, mas, sobretudo nos dos proprietários que lhes tinham confiado a guarda das suas ovelhas e cabras. O proprietário ficava obrigado a fornecer a ceia aos pastores: uma marmita com caldo verde, batatas, toucinho frito, pão e vinho. E nós as crianças, não nos cansávamos de rondar por ali até que as nossas mães nos dessem um pouco daqueles petiscos, que aliás, comíamos muitas vezes, mas naquela altura tinham um sabor especial.
Eram também os proprietários, que em percentagem variável, podiam dispor dos rebanhos uns tantos dias por ano, para permanecerem de noite, protegidos por uma cerca de madeira, de forma quadrada e com uma cancela, nos terrenos que eles desejavam adubar, mudando de sítio todos os dias. Este método natural não servia para tudo: as vinhas, por exemplo, tinham que ser adubadas com o estrume de que primeiro falei.
Na minha aldeia ninguém tinha carro e nem sequer lá chegavam as raras camionetas de passageiros que circulavam nas estradas do concelho; também não havia frigoríficos pois os alimentos ou se colhiam no campo à medida das necessidades da família ou eram conservados em sal ou com fumo. Era assim que se conservavam os porcos da matança: os presuntos, as pás e o toucinho eram conservados durante todo o ano em grandes salgadeiras. Os enchidos, em que se aproveitavam as carnes menos nobres, secavam-se ao fumeiro (aliás chama-se fumeiro aos chouriços mouros, salpicões e outras variedades) ou, os mais finos, os paios, em grandes potes de azeite.
Eram elementos tão importantes na vida das pessoas que os rapazes, quando iam em grupo cantar as janeiras, depois de algumas quadras satíricas não ofensivas, pediam:
Ó senhor dono da casa,
em seu banco de cortiça,
deite a mão ao seu fumeiro
e dê-nos uma chouriça.
Mas penso que, apesar desta descrição tão bucólica, e um pouco descosida, os meus netos hão-de perguntar-se a si próprios: “Então, e a água dos tanques onde toda a gente lavava a roupa? Tanque colectivos, que porcaria!”. De facto, não seria muito higiénico mas não havia detergentes e as roupas eram lavadas com sabão macaco, um sabão natural muitas vezes fabricado em casa, com cinza e gordura. Para suprir a falta da lixívia, a roupa branca era estendida a corar ao sol, quando havia. Se o sol faltava por muito tempo, sobretudo no Inverno, faziam-se grandes barrelas, isto é, deitava-se água a ferver numa grande celha, juntava-se-lhe uma certa quantidade de cinza e garanto-vos que não havia micróbios que lhe resistissem.
Como não se usavam químicos, excepto o sulfato para proteger as vinhas do míldio, as frutas sem pesticidas, lá tinham por dentro o seu bichinho a roê-las mas eram saborosas e docinhas. Era por isso que os bichos gostavam delas, não vos parece?
Se não havia frigoríficos (nem dinheiro) acham que o ar condicionado era por ali conhecido? Claro que não e só tarde apareceu, primeiro nas grandes cidades. E se a minha aldeia era quente, nos meses de Julho e Agosto!... Costumava-se dizer “dez meses de Inverno e dois de Inferno”. Portanto não havia ar condicionado mas dormiam-se sestas regaladas, quer à sombra das árvores a ouvir o zangarreio das cigarras, quer nas lojas das casas onde se guardavam frutas e cereais e que, empedradas e munidas de grossas paredes de granito, não davam confiança ao calor.
O único combustível que se gastava, em casa e no forno do pão, era lenha de oliveira ou estevas, que, estando secas, não deitavam muito fumo e cheiravam que era um regalo. Até a comida era mais saborosa. E além disso, limpavam-se as matas e evitavam-se muitos incêndios.
Ora eu venho a dizer tudo isto para quê? Para mostrar que nem tudo o que é progresso é bom e que, às vezes, temos de sacrificar um pouco o nosso conforto para que haja um certo equilíbrio no Planeta. É claro que não desejo – e seria impensável – voltar àqueles hábitos quase primitivos e abdicar de tudo o que os sábios puseram ao nosso dispor para, dizem eles, nos tornar a vida melhor.
Mas a verdade é que, até à idade adulta e bem adulta, eu nunca ouvi falar da camada de ozono, de aquecimento global, de morte dos rios ou do desfazer dos icebergues .
Agora, além da guerra e, sobretudo do terrorismo, é a destruição do planeta Terra pelo abuso de venenos de toda a ordem, a começar pelo carbono expelido por biliões de carros, pelo desperdício, pela poluição ambiente, a grande nuvem negra ameaçadora que paira sobre as nossas cabeças.
Eu sei que vós os jovens, mesmo os muito jovens, estão mais ou menos conscientes dos perigos que nos espreitam. Ainda tu, Cristina, não tinhas dez anos, quando, muito convicta, me aconselhaste a pôr uma garrafa cheia de água no autoclismo para poupar esse precioso líquido que se vai tornando cada vez mais raro. Sei que não deitam lixo para o chão que separam os lixos para a reciclagem, que participam dos programas das escolas para plantar árvores ou manter as praias limpas. Mas o esforço tem de ser constante e de todos.
Como já alguém disse, o nosso planeta é um condomínio, onde cada condómino tem a sua quota-parte de responsabilidade na preservação do que é de todos.
Desejando que todas estas nuvens negras se dissipem e o vosso futuro tenha riachos saltitantes, a correr para os rios e os mares não poluídos e que muitas flores atapetem os vossos caminhos, despeço-me até breve.