Nunca pensei que os "olhos do meu coração, no dizer de S. Paulo, revelassem pormenores por mim julgados completamente esquecidos...
Domingo, 22.07.07

 

 

 

            Meus queridos netos:

 

 

            Era aos sábados. Todos os sábados, infalivelmente, era o mesmo. Sempre o mesmo. Vinham de muito longe, sobretudo dos lados de Sernancelhe, Penedono e outras aldeias da zona, onde não se produzia azeite e, fartos de temperar a parca comida com banha ou pingo de toucinho frito, quando os havia, era essa a esmola que eles mais desejavam e pediam. Mas como faziam longas jornadas a pé, fiados apenas na caridade alheia, precisavam sempre dum prato de sopa e dalgum naco de pão de centeio cozido na nossa casa, para poderem matar a fome.

 

            A minha Mãe já os conhecia e até tinha adoptado alguns, que conhecia pelo nome e aos quais pedia notícias daquelas serras agrestes, onde nunca nenhum de nós fora, a não ser o meu Pai, para as feiras. Esses recebiam, por acréscimo, algum bocado de queijo, azeitonas ou uma tira de toucinho.

 

Mas nenhumas destas esmolas substituíam o desejo do azeite, que transportavam às costas, num odre de pele de cabra, curtida e virada do avesso.

 

            A mim, então ainda pequena, o que mais me impressionava era um pobre entrevadinho, deitado no dorso do seu burro, que um moço levava à arreata. Era esse moço que lhe chegava à boca a água e a comida. Vinha também de muito longe, mas só aparecia uma ou duas vezes por ano, em busca do precioso azeite.

 

Toda a manhã era uma ladainha ininterrupta, em que cada pobre, uma vez recebida a esmola, que pedia “pelas almas de quem lá tem”, rezava por todas as intenções dos seus benfeitores, assim pagando a sua generosidade.

 

Embora não fôssemos ricos, também havia, de vez em quando, uma pequena moeda, que essa era, compassivamente, dada pelos miúdos e seguida de intermináveis pedidos de bênçãos: “que Deus o faça um santinho”, “que Nossa Senhora seja sua madrinha e protectora”, intercaladas de “Ah! como está bonito e crescido (ou crescida) desde a última vez que aqui passei”.

 

A nossa aldeia era pobre, mas, infelizmente, outras havia ainda mais pobres por aquelas serranias!

 

Era deste modo que a minha Mãe punha em prática as Obras de Misericórdia, por nós aprendidas na catequese: dar de comer a quem tem fome, vestir os nus, dar pousada aos peregrinos, consolar os que sofrem... Por isso além da comida, também se guardava cuidadosamente a roupa ainda em bom uso, para dar aos mais andrajosos. A que nos deixava de servir, levavam-na para o rancho de filhos que tinham deixado em casa. E ainda, frequentemente, se arranjava uma cama no palheiro – uma manta bem quentinha e um bom monte de palha -  sobretudo em tempo de invernia, embora no Inverno os pedintes fossem mais raros. Esses deixavam-nos transidos de medo com os relatos de lobos encontrados no caminho ou mortos por terem dizimado algumas ovelhas, deixando os proprietários em lágrimas.

 

            Hoje tudo é diferente: a caridade não é bem vista e até parece que passou de moda, embora a Igreja lhe tenha dado novo alento ao proclamar que a Caridade é Amor.

 

            Mas, dum modo geral, pensa-se que é ao Estado que compete acudir a todas as misérias, o que não é financeiramente possível, sobretudo nesta época em que todos exigem tudo e muitos ficam sem nada.

 

            Mas houve e há grandes progressos: optou-se por institucionalizar a caridade através das Obras de Solidariedade Social, criou-se o Banco Alimentar Contra a Fome, a Cruz Vermelha, Ajuda de Berço, Sol, Abraço, AMI e uma grande variedade de outras ONG em que pessoas de boa vontade contribuem voluntariamente para acudir aos mais precisados.  Há ainda as Misericórdias, fundadas pelo coração compassivo da Rainha D. Leonor, já em 15 de Agosto de 1498, e que atingiram hoje uma dimensão de tal relevo que já não se poderia passar sem elas. E há também, em quase todas ou todas as Igrejas das várias confissões religiosas, nomeadamente na Católica, Creches, Centros de Dia, Lares para velhinhos, refeitórios, serviços voluntários ao domicílio dos que já não podem sair de casa, visitas aos hospitais e prisões, num testemunho inabalável de que Deus é Caridade e a Caridade é Amor. E o que é mais interessante e comovedor, é que grande parte deste voluntariado é feita por jovens.

 

            A miséria tornou-se, talvez, menos constante e aflitiva. Mas ainda fica muito por fazer: como acudir, por exemplo, a todos os homens e rapazes que, a pretexto de ajudar a aparcar os carros, mesmo quando não há nenhum lugar vago, esperam receber uma esmola dum euro que logo transformam em droga. “Dou-lhe a moeda? Não dou, não colaboro”, é sempre um dilema difícil de resolver no meu íntimo. E os sem abrigo? E os milhares de desempregados, sem perspectivas de futuro, os emigrantes, nem sempre acolhidos com a fraternidade que lhes é devida? E os excluídos por questões raciais e muitas outras injustiças?

 

Em meu entender, muito se ganhou em eficiência mas perdeu-se aquela relação, quase religiosa, que se estabelecia pessoa a pessoa e que me parece urgente recuperar, sobretudo para acudir à solidão de tanta gente à nossa volta. E quantas vezes bastava um simples gesto, uma palavra de conforto ou sobre nada em especial, pois há imensas pessoas que não têm com quem falar.

 

Lembro-me, ainda criança, quando voltava da Escola Primária, parar no caminho para casa e ir ao encontro duma velhinha que, na sua varanda voltada para a rua da aldeia, contava que eu lhe enfiasse uma porção de agulhas com linhas pretas ou brancas, coisa que os seus olhos muito cansados já não conseguiam fazer. E como eu me sentia feliz quando a ouvia dizer-me, com o seu melhor sorriso, a que nem a falta de muitos dentes retirava o encanto que ela tinha para mim: “Que Nossa Senhora a abençoe e em paga lhe conserve a sua rica vista!”

 

            Sim, que Deus nos dê olhos – e olhos do coração – com que possamos ver para fora de nós e encarar o outro, como nosso Irmão, digno do nosso amor e solidariedade.

 

È o que também deseja, para vós, a Avó que se despede até breve, com um abraço.

                      

 

 

 

 

 

publicado por clay às 18:02 | link do post | comentar | favorito
renascida a 23 de Julho de 2007 às 15:31
peço desculpa por me intrometer, mas doro os seus post, não perco nenhuns, e alguns guardo para quando os meus filhos forem maiores e souberem ler. beijinhos gds para si e para os seus netos
clay a 28 de Julho de 2007 às 21:36
Fiquei muito lisonjeada com a sua preferência. Obrigada e beijinhos.

Clai
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