Nunca pensei que os "olhos do meu coração, no dizer de S. Paulo, revelassem pormenores por mim julgados completamente esquecidos...
Sábado, 16.11.13

                                  IR PARA FORA CÁ DENTRO

 

A Teresinha não queria sair de Lisboa, deixando o pai na sua aflição diária e a mãe, embora quase sempre ausente de quanto a rodeava, sem as suas visitas, curtas por causa do emprego e também pela angústia que se apossava de si ao ouvi-la chamar-lhe mãe, sem ser capaz de conter as lágrimas. O José, umas vezes era o irmão, outras o pai que a Celeste perdera há muito.

O Rui, ainda que sofrendo por toda aquela situação, tinha vontade de deixar Lisboa por uns dias, para espairecer e ter um tempo só seu e da sua mulher, de que se sentia tão orgulhoso. Mas todas as suas sugestões duma semana numa grande cidade europeia depararam com o não definitivo da Teresinha, incapaz de se imaginar a correr monumentos e museus e muito menos as lojas que, dantes, a atraíam como um íman.

Foi então que Maria da Luz veio, providencialmente, salvar aquela situação:

- Olhem, meninos. Eu gostaria muito de vos oferecer umas férias nos Açores, numa Ilha à vossa escolha, que todas elas têm encantos próprios e ainda nos proporcionam a tranquilidade necessária a um mergulho lustral nas suas belezas naturais.

- Já agora, se a Teresinha estiver de acordo, eu gostaria de passar uma semana em S. Miguel, que a mãe tanto gostou de visitar. É uma Ilha bastante grande, com tanto para nos oferecer, que não seria preciso andar de avião dum lado para o outro e voltarmos de lá mais cansados.

- Não posso estar mais de acordo. E a minha prenda inclui a estadia num bom hotel, algum dinheiro para as refeições e o aluguer dum carro para se poderem deslocar a todos os pontos de interesse. Gostava tanto... Que dizes, Teresinha?

- Que a senhora é um anjo e me está a oferecer aquilo de que mais necessito neste momento: sossego e, pelo que tenho ouvido dizer, o contacto com uma natureza que já quase inexistente em qualquer outra parte do mundo.

- Então aceitas, Teresinha? Passaremos lá uma semana inesquecível, sempre juntos e com todo o tempo do mundo para vivermos o nosso amor.

- Claro que aceito, Rui. Aliás, quando ainda vivíamos em Angola, o meu pai que se perdia, sempre que possível, na contemplação do muito que por lá havia de belo, costumava dizer:

- Se um dia puder, hei-de conhecer Portugal de lés a lés: Moçambique, Cabo Verde, S. Tomé, Guiné, Timor e isto sem falar do que está mais perto e ficará para o fim, a Madeira e os Açores, quando as forças forem diminuindo. Infelizmente, esse foi mais um dos sonhos que lhe saíram gorados.

- Pronto, pronto, Teresinha. Vejam lá quando querem partir e tratem de arranjar as malas. Não se esqueçam dum guarda - chuva ou impermeáveis, que o tempo lá não é de fiar. E uns agasalhos também vos podem ser úteis.

Partiram dois dias depois, num avião da TAP com destino ao Aeroporto de Ponta Delgada. Não quiseram despedidas, pois queriam ter uma semana sem lágrimas nem recomendações. Assim, só os dois.

 

                                                 LXX

                                    OITO DIAS NO PARAISO

Ao desembarcarem no aeroporto de S. Miguel, ali mesmo decidiram alugar o automóvel que os havia de levar, segundo a sua intenção, a todos os cantos e recantos da Ilha. Passaram por algumas freguesias semeadas ao longo da costa e logo lhes chamaram a atenção, não só as suas igrejas, com o branco da cal realçado pela cor escura da pedra vulcânica que sublinhava as molduras das janelas, portas, cornijas de remate e portais, mas também as pequenas capelas garridas, presentes em muitas povoações. Viriam a saber que se chamavam Impérios e, tradição levada de Alenquer pelos primeiros descobridores, se erguiam em honra do Divino Espírito Santo. Eram comuns em todas as ilhas, mas mais numerosos na Terceira, cujos bodos tinham fama em todo o arquipélago, constituindo um autêntico chamariz turístico para nacionais e estrangeiros, sobretudo emigrantes açorianos, espalhados pelas Américas.

            Instalaram-se no Hotel S. Pedro, um dos clássicos de Ponta Delgada. Como Maria da Luz ali tinha estado hospedada e dele guardava as melhores recordações, principalmente dos jardins e da vista espectacular sobre o porto da cidade, convencera-os a não o trocarem por outros mais recentes cuja qualidade ela não podia garantir. Disse-lhes que era dotado dum dos restaurantes mais conceituados da cidade, mas tal informação não interessara muito ao jovem casal, que preferia aproveitar o dia para conhecer a Ilha e almoçar onde lhes desse mais jeito.

            Como chegaram já pelo fim da tarde, foram aproveitar as cómodas cadeiras da varanda e a vista sobre o porto. Ali estavam amarrados vários barcos de pesca, onde os pescadores faziam os últimos arranjos para, de madrugada, seguirem para a sua faina diária. O mar de cobalto estendia-se a seus pés e os dois jovens podiam, enfim, esquecer um pouco os seus graves problemas e trocar as manifestações do amor que, esperavam, havia de lhes transfigurar as vidas.

            Ali se quedaram, por muito tempo, serenos e felizes, sem sequer se aperceberem de que já ia adiantada a hora do jantar, pelo que decidiram aproveitar o restaurante onde, por acaso da sorte, se servia, nessa noite, um jantar típico, que os deixou indecisos entre uma fresquíssima abrótea no forno e uma alcatra douradinha, com seu acompanhamento de batatas, inhame e couves solteiras. Decidiram-se pela alcatra à moda da Terceira, servida (e feita) em alguidar de barro, mas, toque moderno na cozinha micaelense, servida com deliciosas rodelas de ananás. Quiseram experimentar o vinho de cheiro, mas, por falta de hábito, não lhes agradou. Nem sequer o verdelho do Pico, que chegou à mesa dos czares da Rússia e que o maître insistiu em lhes dar a provar. Decidiram-se por água mineral do Vale das Lombadas e terminaram com uma queijada de Vila Franca, acompanhada por chá verde da Gorreana.

            Apesar de não se terem deixado tentar pelas entradas, deixando as lapas com molho afonso para outra oportunidade, decidiram andar um pouco e acabaram por percorrer toda a Marginal, também chamada Avenida Infante D. Henrique, até ao Largo de S. Francisco. Aí localizaram, monumentos de que tinham ouvido falar a Maria da Luz: a Igreja do Senhor Santo Cristo dos Milagres, a Igreja de S. José, o bem conservado forte de S. Brás, com a enorme porta guardada por dois imponentes canhões. Lá estava também o popular coreto e até o metrosídero ou árvore-de-fogo, trazido, em tempos remotos da remota Nova-Zelândia. Sentaram-se um pouco no banco onde se suicidou o poeta Antero de Quental, encimado por uma âncora e pela palavra ESPERANÇA. E ficaram com a certeza de que tinham de voltar.

 

                                                LXXI

                                UM DIA NO VALE DAS FURNAS

No dia seguinte, tomado um pequeno-almoço revigorante constituído por sumo de laranja e uma fatia de massa lêveda acompanhada dum delicioso queijo fresco, partiram para a Vila das Furnas, que, apesar do que já tinham ouvido dizer, os assombrou pelo aspecto dantesco: fumos emanados das célebres caldeiras dispersas e das inúmeras fumarolas que rompiam a terra por todo o lado. Havia caldeiras onde os naturais diziam que, se um animal ali caísse, em breve ficaria cozido, fontes de águas sulfúreas ou ferruginosas, um espectáculo simultaneamente fascinante e assustador.

            Depois de, num modesto restaurante que lhes fora recomendado, terem feito a encomenda do celebérrimo cozido, resolveram acompanhar o cozinheiro a um dos muitos locais donde se escapavam fumos vulcânicos e onde ele escavou um grande buraco. Aí colocou, com todo o cuidado, o embrulho de serapilheira com os variados produtos do cozido, para, graças ao elevado calor da fumarola, obter o cozinhado tão popular para turistas e naturais.

Como tivessem de esperar umas cinco horas bem medidas pelo almoço, ainda lhes sobrou tempo para dar um demorado passeio nas margens da enorme e tranquila Lagoa das Furnas. Foram até junto da Capela de Nossa Senhora das Vitórias, mandada erigir para mausoléu de José do Canto, mas infelizmente fechada a visitantes. Algas e jacintos de água começavam a invadir a superfície líquida, o que impedia o arvoredo da margem oposta de se reflectir no espelho cristalino que já devia ter sido.

            O cozido, com a sua variedade de carnes, enchidos, batatas, inhames e hortaliça muito bem acondicionados num pano branco, revestido pela serapilheira tinha um gosto delicioso, completamente diferente daquele a que estavam habituados e que lhe advinha do vapor vulcânico a que estivera exposto durante tantas horas. Agora sim, soube-lhes bem um pouco de verdelho e umas típicas rodelas de ananás, cultivado nas estufas da Ribeira Grande.

            Depois do almoço, foram conhecer o Parque Terra Nostra, um belíssimo e importante Jardim Botânico, obra dum cônsul americano que ali quisera ter, no século XIX, a sua residência de Verão. Passara depois a ser propriedade do Visconde da Praia e, mais tarde, da família Bensaúde, tendo passado por numerosos acrescentos e beneficiações. Agora, tinha uma grande piscina de água termal, castanha por causa do ferro e com a temperatura constante de 25º. De tudo isto tiveram conhecimento por meio dum desdobrável turístico, onde também se dizia que ali se podiam conhecer mais de seiscentas variedades de camélias. O resto, o canal serpentiforme, as manchas de palmeiras e de fetos arbóreos, as grutas, as frescas e perfumadas alamedas de buxo, tudo isso viram eles com os seus olhos e fizeram-nos soltar as mais variadas e entusiásticas exclamações:

- Que maravilha, Rui. E pensar que isto faz parte de Portugal e é tão desconhecido…

            - De facto, é fabuloso. E todas estas manchas de azáleas, que esplendor! Mas estou convencido de que tempos virão em que estas Ilhas serão um procurado destino turístico.

            - E, pelo que eu sei, não é só S. Miguel. Há quem diga que cada uma das nove Ilhas tem o seu peculiar encanto e que a das Flores, é uma espécie de síntese das belezas de todas elas.

            - Havemos de cá voltar e faremos o tour completo. Mas olha, Teresinha, sabias que são poucos os açorianos a ter esse privilégio?

            - Mas teremos nós.

 

                                               LXXII

                                 TANTAS, TANTAS MARAVILHAS

Não tendo possibilidade de ver o grande número de lagoas que, em S. Miguel, ocuparam, há milhões de anos, as crateras de vulcões extintos, decidiram continuar com a visita à Lagoa do Fogo, integrada numa Reserva Natural e uma das maiores da Ilha.

            Quando iam a meio do caminho, viram crescer, no alto da montanha, um capacete de denso nevoeiro, que fez o Rui exclamar:

            - Desta vez parece que não vamos ter sorte. É como ir a Roma e não ver o Papa.

            - Quem sabe? O tempo, aqui no arquipélago, muda com tanta facilidade… Até há quem diga que cada dia tem as quatro estações do ano.

            E foi a Teresinha que acertou. Ao chegarem à borda da lagoa, um pequeno miradouro em cimento para os visitantes, o nevoeiro cerrado não deixava vislumbrar, como se costuma dizer, nem um palmo à frente do nariz. Por ali se demoraram um quarto de hora e, eis senão quando, a cortina de nevoeiro se abriu como uma autêntica cortina de teatro, desvendando a seus olhos o mais deslumbrante espectáculo que a Natureza poderia oferecer: uma imensa lagoa de águas límpidas e tranquilas, cheia de reentrâncias, que o sol fazia brilhar como um espelho encantado. Abraçaram-se, comovidos, tal a emoção que os dominou.

            Desistiram de ir à Lagoa do Congro, anichada no meio de denso arvoredo mas a uma profundidade tal que recearam sujeitar a carro a caminho tão íngreme. Trocaram-na pela Lagoa dos Nenúfares, toda coberta por aquelas flores aquáticas, como o próprio nome lhes tinha feito imaginar.

            E, quanto a lagoas, ficaram-se por aqui, pois não queriam sobrecarregar a memória com demasiadas imagens, cujo fulgor não desejavam ver embaciado. A das Sete Cidades ficaria para depois.

            Passaram pela bem cuidada Vila da Lagoa, onde a Teresinha comprou algumas cerâmicas ali fabricadas e seguiram para a Ribeira Grande, onde, então sim, se deliciaram com as lapas de molho Afonso, seguidas por uma excelente galinha assada com molho de fígado. Remataram o almoço com uma tigelada de ovos e um café para cada um.

            Depois de visitarem uma estufa de ananás, retomaram o caminho de Ponta Delgada, com paragem em Vila Franca do Campo, onde visitaram o imponente Convento de S. Francisco de que, à época, já se dizia ir ser em breve transformado numa Pousada. Compraram um desdobrável onde se dava notícia do tremendo terramoto que, em 1522, tinha arrasado a povoação, então a capital da Ilha, provocando milhares de mortos. Ainda subiram o escadório alvinitente, debruada a pedra de lava, até à típica Ermida de Nossa Senhora da Paz, deslumbrando-se com o imenso panorama, de terra e mar que dali se avista. Mas o que ali os levava era o famoso Ilhéu, em forma de meia -lua, dotado duma espécie de anfiteatro que abriga uma profunda caldeira com o diâmetro de cerca de cento e cinquenta metros e saída para o mar, o Boquete. Por ali entram também os barcos a remos ou a motor que, a pouco mais de um quilómetro da costa, mesmo em frente a Vila Franca, encontram aquela praia abrigada pelos altos contrafortes, onde ainda puderam ver as já raras curraletas de vinha e as poucas casas semi-abandonadas.

Verificaram que a rara vegetação era constituída por canaviais e metrosíderos e os altos rochedos do lado oposto eram o pouso favorito dos cagarros e dos garajáus.

            Num dos cafés da terra, onde pararam, souberam que, na época balnear, a afluência de banhistas estava a crescer de tal modo que se pensava num diploma do Governo Regional, a conferir ao Ilhéu o estatuto de Reserva Natural, com acesso limitado a quatrocentos visitantes por dia.

            - De facto, esta natureza incólume e este silêncio só cortado pelo canto das aves, é uma pena se destruído pela pegada humana.

            - Tens razão, Teresinha, mas estas maravilhas são património de todos.Temos é de saber protegê-las.

            Tinha sido um dia em cheio e, tanto Rui como a Teresinha, estavam cada vez mais fascinados pela Ilha: pela sua riqueza natural, pelo seu património e pelo seu ambiente romântico. Que bela ideia a da Maria da Luz!

 

                                                    LXXIII

                                     A CIDADE ENCANTADA

- Hoje gostava de visitar a cidade. Quando a vimos, na noite da chegada, pareceu-me cheia de motivos de interesse.

            - Bora lá, disse o Rui, meio a brincar. Já sabia que a Teresinha havia de querer visitar todos os cantos e recantos que constavam do Roteiro, fornecido pela Agência de Viagens. e, por uma casualidade engraçada, não é que ela quis mesmo começar pelo Jardim José do Canto?

            Era uma propriedade privada mas podia ser visitada com permissão dos proprietários. Lá foram percorrer os quase seis hectares de alamedas e jardins que constituíam aquele famoso Jardim Botânico, de inspiração inglesa vitoriana, remontando ao século XIX.

            José do Canto, um homem rico e muito culto, tão sabedor de jardinagem e agricultura como de Camões, cujas edições d’Os Lusíadas ia coleccionando com fervor de autêntico bibliófilo (possuía mesmo um exemplar raríssimo da primeira edição), fez daquele Jardim uma das obras de arte da sua vida. Ali mandou plantar árvores exóticas, que ao longo dos tempos tinham adquirido um majestoso porte e grossas raízes à vista: araucárias, criptomérias, metrosíderos e até uma imponente árvore da borracha. O túnel das cameleiras era o espanto de todos os visitantes.

            Fora visitado, ao longo dos tempos, por personalidades de renome: o rei D. Carlos, o Presidente Franklin Roosevelt, mais recentemente Jorge Amado e muitas outras. Ali se podiam ver monumentos escultóricos, como a estátua do próprio José do Canto, o busto de D. Carlos e edificações grandiosas tais O Palácio, o vitoriano Pavilhão de Caça e a magnífica Capela de Sant’Ana, do século XVII.

            - É pena estas importantes peças do património micaelense estarem votadas a um certo abandono…

            - Será por pouco tempo, menina, o Governo Regional, cuja sede fica mesmo aqui ao lado, já está a tomar medidas não só para o classificar, como para lhe dar a conveniente utilidade. Até se diz que vão fazer no Palácio uma unidade hoteleira, bem como salas para exposições, manifestações musicais e outras. Não se sabe bem é quando, que estas coisas custam dinheiro.

            O Rui interveio então:

            - Uma coisa que eu não quero perder é a visita ao Museu Carlos Machado

            - E faz o senhor muito bem. Começou por ser o Museu Açoriano até lhe darem o nome, bem merecido, desse coleccionador e artista. Vão lá, vão. Aposto que não darão o tempo por mal empregado.

            Visitaram as três grandes colecções do Museu: a de História Natural, que vinha do século XIX; a de Etnografia Regional, dedicada, sobretudo, à Ilha de S. Miguel e onde se podia ver, entre várias recolhas relacionadas com a agricultura, o artesanato e outras actividades, uma típica casa micaelense, com especial relevo para a sua cozinha e quarto de cama; e o núcleo de arte: esculturas de Canto da Maia, arte em marfim, ourivesaria e…

            -Cá está o que eu procurava.

            - O quê, Rui? Com tanto entusiasmo…

            - Olha, Teresinha, é este quadro do pintor açoriano Domingos Rebelo.

            - Os Emigrantes? Não fizeste já uma entrevista na Rádio sobre este quadro? Tenho uma vaga ideia.

            - Pois fiz e fiquei fascinado, embora só com a interpretação duma cópia, feita pelo meu convidado, ao simbolismo da obra: sendo uma obra regionalista, com a representação do casal, do cesto de laranjas, da viola da terra ou de arame e o quadro do Senhor Santo Cristo dos Milagres para os proteger lá longe, é uma sentida e artística expressão das saudades da terra.

            - É, de facto, impressionante. Mas eu ainda gostava de dar uma olhadela à arte sacra, pois falaram-me dumas tábuas quinhentistas da Escola de Coimbra e duma Coroação da Virgem, da autoria, no século XVI, de Vasco Pereira Lusitano. Disseram-me que eram imperdíveis…

            - Mas não podemos demorar muito, pois sabes que horas são? Já passa muito das quatro…

            - … e ainda não almoçámos.  E lembro-te que, depois do almoço, eu quero ir comer uma banana split naquela pequena pastelaria de que a tua mãe falou.

            - Isso é se ainda existir e continuar a servir as tais bananas split.

Depois do tardio almoço, ainda foram ver o famoso arco triunfal do Palácio da Fonte Bela, onde admiraram um majestoso pórtico neoclássico, ladeado por quatro colunas coríntias, duas de cada lado. Essa fora uma recomendação dum colega açoriano do Rui, que frequentara o Liceu Antero de Quental, ali instalado há muitos anos.

Regressaram ao Hotel extenuados mas encantados com tanta beleza.

 

                                                  LXXIV

                                        A VOLTA À ILHA

Finalmente um dia de sol. Completamente desanuviado, sem capacete. O Rui propõe, entusiasmado à Teresinha:

            - Olha, querida. E se aproveitássemos este dia para dar a volta à Ilha? Íamos parando nos mais belos miradouros e visitávamos a Lagoa das Sete Cidades. Assim, ficávamos com o nosso programa quase completamente cumprido.

            - Tenho vários reparos a fazer. Em primeiro lugar, e sem querer ser desmancha-prazeres, quantos dias já amanheceram assim e depois… Por outro lado, que é isso do programa cumprido? Até parece que é um dever e não esta fascinante deambulação , mais ou menos anárquica, em que temos conhecido tantas coisas e que nos tem feito tão felizes. Pelo menos a mim.

            - Vá lá, Teresinha, não te zangues comigo. Bem sabes como tenho apreciado esta viagem e como temos estado sempre de acordo nas visitas a fazer. Quanto ao tempo, não nos podemos queixar muito. Algum céu encoberto, alguns aguaceiros, mas nada com que já não contássemos, não achas? Não queres dar esta volta à Ilha, a única maneira de levarmos uma visão de conjunto de toda a sua costa e deslumbrantes paisagens?

            - Só posso dizer que sim. Mas gostava de ir agora em direcção à Costa Norte e Lagoa das Sete cidades, claro.

            - É exactamente o que eu tinha na ideia. Estive a ver o mapa e gostava de começar pelo Miradouro do Cerrado das Freiras. De lá avistam-se quatro lagoas, entre elas as duas das Sete cidades: a Lagoa Verde e a Lagoa Azul. O que não nos dispensa de ir também ao Miradouro da Vista do Rei, assim chamado porque parece ter sido de lá que as célebres lagoas das Sete Cidades foram contempladas pelo rei D. Carlos, aquando da sua visita aos Açores em 1901.

            - E cá estamos no Cerrado das Freiras. Realmente avistam-se quatro lagoas e toda a maravilhosa paisagem circundante, com a enorme vastidão dos prados verdes onde as vaquinhas a pastar nos dão uma sugestão do que será a Holanda, não achas?

            - Mas repara, Teresinha. Embora num dia soalheiro como este, há uma ligeira névoa a pairar sobre a Lagoa Azul, a maior, que dizem ter cerca de doze quilómetros de diâmetro.      

            - Pois é, mas sem querer entrar na lenda do pastor apaixonado pela princesa, derramando lágrimas azuis  e verdes, não admira que essa e outras tenham sido criadas pela imaginação popular, sugestionada por este ambiente de misticismo.

            - Mas procura descer à terra e admirar esta vegetação luxuriante de criptomérias, azevinho, cedro do mato, para não falar das hortenses que, em época de floração, fazem desta Ilha em geral e deste lugar em particular um paradisíaco jardim predominantemente azul.

            - E a povoação, como dizem por cá?

            - Vamos fazer um passeio a pé, atravessar o istmo que liga as duas Lagoas e dar uma vista de olhos pela freguesia, que tal, Teresinha?

            - Cá está ela anichada entre as duas lagoas. Tem casas simples mas tradicionais e esta bela Igreja de S. Nicolau, em estilo neo-gótico, que deve ser do séc. XIX. Tão tocante na sua simplicidade! E agora, novamente para o carro que ainda há muito para ver. 

            - Aqui deve ser a freguesia de Mosteiros, não te parece?

            - Creio que sim. Ou melhor, tenho a certeza, porque já avistei vários pontos de referência constantes do desdobrável: o porto de pesca com as piscinas naturais e, ao fundo, os ilhéus. E, lá em cima, deve ser a Capela de S. Lázaro.

            -Ó Rui, então vamos ver a Igreja Matriz, que é do princípio do século dezanove e depois seguimos para o Miradouro da Ponta do Sossego, donde se tem a melhor panorâmica sobre a costa norte e sobre esta povoação dos Mosteiros.

            - De acordo, só que o meu estômago já reclama almoço e, por isso, primeiro vamos ficar por aqui, a regalar-nos com uma típica caldeirada de peixe e uma tigelada de ovos.

Mas, desta vez, não perdoaram e começaram pelas lapas com molho Afonso, que acharam deliciosas.

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                                                 LXXV

                                   O CIRCUITO CONTINUA

Depois do almoço e do falado passeio até ao Miradouro da Ponta do Sossego, na costa norte, decidiram seguir para o Nordeste, que durante séculos esteve praticamente separado, devido às deficientes vias de comunicação, de todo o resto de S. Miguel, sendo até chamada a décima ilha do Arquipélago. Agora depois de terem passado pela Bretanha e pela surpresa de ali encontrarem tanta gente de olhos azuis, testemunho de remota imigração oriunda da província francesa do mesmo nome, iniciaram a subida para o Nordeste. Tinham à sua frente uma óptima estrada, mas toda em curvas e contra curvas e ladeada por farta vegetação com as célebres conteiras, uns caules aéreos simples e folhosos, que dão flores em tons de amarelo e forma de roca.

Depois de passarem o Aqueduto dos Sete Arcos, entraram na formosa vila fundada no século XVI e debruçada sobre o Atlântico. Daí a abundância de miradouros, entre os quais o da Ponta da Madrugada, onde decidiram ir, ao romper o dia seguinte, ver o célebre nascer do sol.

O que mais contribuiu para os convencer foi o encontro com uma senhora da terra a quem pediram informações:

- Não tenham pressa. O Nordeste é uma das vilas mais antigas e mais bonitas de S. Miguel e merece uma visita mais demorada. Eu tenho um quarto vago e teria muito gosto em os receber na minha casa. Chamo-me Marília e sou irmã duma professora da Escola Básica. Fiquem por cá até amanhã e não percam o nascer do sol na Ponta da Madrugada.

- Se houver sol…

- Não sejas pessimista, Teresinha. Tem estado tão bom tempo… E a oferta desta senhora, que podemos considerar a chave de ouro do fantástico acolhimento achado por toda a Ilha, a mim já me convenceu. Olhe, eu sou o Rui Vasconcelos e a Teresinha é a minha mulher, há pouco mais de três semanas.

- Não me custa nada e, para mais, tratando-se de dois noivinhos tão simpáticos. O meu marido, que é electricista, está a trabalhar nas iluminações para as Festas do Senhor Santo Cristo, que todos os anos se celebram no quinto domingo depois da Páscoa. Já começaram ontem e vão terminar no Domingo. Por isso, até me fazem companhia ao serão. E, durante a tarde, podem ir visitar o Museu Etnográfico das Capelas, onde agora funciona uma oficina de artesanato, com testemunhos de toda a nossa vida agrícola, pecuária e piscatória desde tempos bem remotos.

Não havia argumentos a contrapor. Aceitaram a generosa oferta e, seguindo a sugestão da D. Marília, dirigiram-se ao Museu Etnográfico, onde foram encontrar valiosíssimas peças usadas, durante séculos, nas actividades rurais e piscatórias da terra e também uma escolinha de bordados, típicos de S. Miguel. A Teresinha ficou encantada com os bordados a matiz, de folhas de avenca em tons de azul e perdeu mesmo a cabeça: comprou uma linda toalha de mesa e respectivos guardanapos para si e mais uns bordados para a Maria da Luz e para a Noémia.

Deram uma volta pela Vila, demorando-se a admirar a fachada da Igreja Matriz, dedicada a S. Jorge, vinda do século XV, mas reconstruída em típico estilo açoriano e o bem cuidado jardim, colorido por muitas e variadas flores. Até o pequeno coreto cor de rosa, rodeado por árvores imponentes e bem tratadas, lhes pareceu ter um toque de magia.

Regressaram a casa da D. Marília, onde encontraram um quarto amplo e confortável, de acordo com todo o ambiente. Já ao anoitecer, estavam a pensar sair para jantar, quando a dona da casa lhes bateu delicadamente à porta, dizendo:

- Se quiserem jantar comigo, talvez se não arrependam. É simples, mas muito típico do Nordeste.

- Não nos fazemos rogados…

            Numa mesa posta com simplicidade e bom gosto, onde não faltava uma jarra de hortenses e coroas de Henrique, flores colhidas no pequeno jardim da casa, logo apareceu uma tigela de barro com torresmos em molho de fígado e um prato de inhame cozido e outro de batatas do reino,

            - E, para beberem… Não tenho muita coisa, mas, se quiserem fazer como nós, talvez gostem de acompanhar a comida com um bom chá da Gorreana.

            -_ Que maravilha! - exclamaram em uníssono.

Foi um jantar e um serão muito agradáveis. Recolheram ao quarto, cansados mas felizes e pensando na tranquila noite que os prepararia para o nascer do sol, no Miradouro da Ponta da Madrugada e, uma vez lá chegados, ambos, de mãos dadas, acharam que não seria fácil depararem-se com um cenário tão fantástico como este.

            Do alto da falésia, revestida, como toda a Ilha, de exuberante arvoredo autóctone ou oriundo de todas as partes do mundo, via-se, lá em baixo, o Atlântico debruado de espuma. Perto, ficava o Pico da Vara, com os seus mil cento e cinco metros de altitude. Também o Parque Natural dos Caldeirões, de que D. Marília tinha elogiado a cascata, a vegetação, sobretudo os fetos arbóreos e as flores exóticas, o reconstruído moinho de água, a pequena lagoa recoberta de nenúfares.

            Com o nascer do sol, apreciado por um grande grupo de turistas debruçados do muro do miradouro, foi o deslumbramento total: a paisagem ganhou um novo colorido e o céu, milagrosamente limpo, era um puro refulgir de vermelhos e dourados num feérico e inolvidável espectáculo que quase se diria irreal.

 

                                               LXXVI

                         AS FESTAS DO SENHOR SANTO CRISTO

Com a curiosidade acicatada pela descrição da D. Marília, resolveram prescindir de todas essas maravilhas naturais e regressar a Ponta Delgada, para poderem assistir a algumas das cerimónias mais famosas das festividades do Senhor Santo Cristo.

Pela estrada, além das inúmeras vacas malhadas que pastavam nos imensos prados verdes, ainda tiveram de conhecer outras mais de perto: as que, por mais de uma vez, lhes barraram o caminho, encaminhadas ronceiramente para as pastagens. Também pararam na Fábrica de Chá de Porto Formoso, rival do da Gorreana, cujas plantações não lhes foi possível visitar.

Chegaram a Ponta Delgada a boa hora para irem almoçar ao Alcides, onde se deliciaram com um dos seus famosos bifes. A tarde e o dia seguinte seriam inteiramente dedicados às festas.

Já não puderam assistir ao bodo do pão e da carne, nem à procissão da ida da imagem para o Convento de S. José. Mas ficaram espantados com as ruas por onde devia passar a procissão mais solene, todas ornamentadas por flores das mais desvairadas cores, principalmente azáleas, formando desenhos geométricos que, em geral, enquadravam símbolos religiosos relativos ao Senhor Santo Cristo: o resplendor de platina e ouro, a coroa de espinhos tecida em fios de ouro e pedras preciosas, o relicário, o ceptro e as cordas, cinco metros e vinte de pérolas e pedras preciosas enfiadas em fio de ouro.

À noite, puderam observar os mesmos símbolos, rodeados de flores e folhagens, o todo constituído por cento e sessenta e duas mil lâmpadas multicores, que enchiam de fulgurações todo o Campo de S. Francisco, engalanado por mastros e bandeiras e coalhado de gente vinda de todos os pontos do Arquipélago, do Continente e das comunidades de açorianos espalhadas por todo mundo. Entre os turistas sobressaíam as chamadas calafonas (de Califórnia), por causa das suas espalhafatosas capelines de cores claras. Várias filarmónicas e tendinhas animavam a festa, agora mais profana.

Ainda antes de regressarem ao Hotel, assistiram a um deslumbrante fogo - de - artifício, lançado do Forte de S. Brás.

No dia seguinte, apressaram-se a voltar ao Campo de S. Francisco, para assistirem à célebre procissão que, percorrendo as principais artérias da cidade, se destina a repor a veneranda imagem no seu altar do Convento da Esperança. Para ali viera, no século XVI, do Convento da Caloura, em Água de Pau, trazido pelas religiosas que fugiam ao ataque dos piratas.

- Repara no baldaquino, Rui.

- Não te sabia tão versada em coisas religiosas…

- Não faças troça. Olha para aquele trono de flores de seda, realçado pelo fundo vermelho e para o ar impressionante do Ecce Homo, rodeado pelo seu tesouro e pelas muitas jóias oferecidas por pessoas devotas.

- E tu, olha para esta procissão, magnífica, ainda que apreciada só dum ponto de vista estético. É uma elaborada coreografia: à frente, o guião com a imagem da coroa de espinhos, as duas longas filas de homens com opas, seguidos por pessoas descalças com círios votivos, associações juvenis, autoridades, mais duas filas de crianças vestidas de anjinhos e tudo a perder de vista.

Terminada a procissão, voltaram para o Hotel, procurando assimilar tantas coisas novas e fascinantes, que tinham preenchido a sua semana de lua -de -mel. Apreciavam pela última vez, sem mais palavras e de mão dada, da varanda do seu quarto, os barcos parados no porto de pesca e mais um poente esplendoroso. E remataram o serão com mais um prolongado e apaixonado beijo. No dia seguinte, de manhã cedo, seria o regresso no avião da Sata e o início duma nova vida, que esperavam viver juntos e felizes.

 

                                               LXXVII

                              A VIDA É SEMPRE UMA INCÓGNITA

É voz do povo, a ecoar pelos tempos fora, que amores felizes não têm história. Não concordo. Todos os amores têm histórias de fugazes momentos felizes e outros, que parecem mais longos, de manifesta desgraça. Ou então, como pântanos, momentos que não são uma coisa nem outra, de autêntico marasmo e indiferença.

Assim veio a ser, com o correr do tempo, a vida do Rui e da Teresinha, os noivos esperançados de agora.

            Primeiro, foi a morte da Celeste, que perguntava repetidamente pela sua mãe, a Teresinha e pelo seu neto, o Rui. E nem já os reconheceu quando chegaram dos Açores, com um lindo ramo de flores e pacotinhos de chá.

            Foi um abalo que todos sentiram dolorosamente e que deixou o José em estado de completa prostração, perdida a pálida alegria que o tinha animado com o casamento da filha. Sentiu-o como uma concretização dum sonho muito antigo, deixado lá para trás mas sempre presente, embora só como pano de fundo dum amor mais calmo, mais resignado, que a dedicação da Celeste conseguira iluminar e tivera a sua refulgência absoluta com o nascimento da Teresinha.

            Durante muito tempo revivera com ela, através da memória, os bons e maus tempos de África e o seu regresso para uma vida quase sem horizontes, embora dulcificada pela presença da Teresinha e os seus sucessos escolares e profissionais. Depois fora a doença implacável, que tudo varrera para um sorvedouro de angústia e de desespero. E agora…

            Quem resistira muito bem aos anos e às desgraças fora a Maria da Luz, que se sentiu remoçar com a chegada da primeira filha do seu Rui, a menina que tanto tinha desejado, em vão. Estragavam-na, ela e a Noémia, com mimos e carinho. À Noémia cabia a higiene e a alimentação da bebé, enquanto a avó se quedava a contemplá-la, enquanto dormia, na tentativa de descobrir nas suas feições, traços familiares de ambos os lados. Teria que aguardar até que pudesse partilhar as suas brincadeiras, contar-lhe histórias reais ou inventadas e retomar os velhos sonhos.

            Mas quando a Maria Celeste – nome que, generosamente, a avó aprovara para dar à menina – quando a Maria Celeste fez dois anos, chegou o seu irmãozinho Gonçalo, um bebé rechonchudo e bonacheirão, que, passado o período de aleitamento materno, se lhe juntara em casa das Vóvós, que assim eram consideradas a Maria da Luz e a Noémia.

            Deste modo se reanimara a vida em casa da Maria da Luz. Tanto o tio António, que assim passara a ser designado por toda a gente, como o Guedes, outro tio inventado, procuravam todos os pretextos para se aproximarem das crianças. Solteirões inveterados, tomavam-nas pelos filhos de que só agora sentiam a falta.

            E o Vasco? Tendo conseguido estabilizar a vida ao comprar a licença duma rádio local relativamente bem sucedida, casara, já pelo tarde, com uma das suas locutoras, que também lhe dera dois filhos. Levavam-nos a casa da Maria da Luz, onde passaram a partilhar dos mimos e brincadeiras daquelas duas crianças que sempre tiveram como primos e com eles iam crescendo.

Quanto ao José, que tivera de ser internado para fazer uma cura de sono e uma recuperação da depressão nervosa agravada com a morte da mulher, só lhe restou resignar-se a ver os dois netinhos nas curtas passagens por casa da filha, quando podia dispensar o Hospital. Eram períodos de intensa felicidade, que iam atenuando as suas mágoas e o ajudavam a recuperar. Sempre que podia e porque ambos os pais estavam a trabalhar, era ele que os levava a casa da Maria da Luz, ali ao pé. E, com o carinho de todos, assim se foi encaminhando para uma velhice tranquila, que ocupava com as suas pequenas bricolages no sótão da casa onde vivera com a Celeste. Até que a Teresinha e o Rui, preocupados com a sua solidão e uma possível recaída, o convenceram a mudar-se para casa deles, uma ampla moradia com jardim no Bairro de Alvalade. E depois…

 

                                              LXXVIII

                                    MAIS UM CICLO DE VIDA

Depois, as crianças cresceram, brincaram e estudaram juntos e cada um seguiu a sua vocação.

            O José alugou a casa agora vazia, mas guardou para si o sótão, onde ainda ia, de vez em quando, até o Gonçalo abandonar o Curso de Agronomia. Tinha sido um impulso de adolescente, preocupado com a fome no mundo e convencido de ter, nas suas mãos, a chave mágica para um futuro melhor. Mas os genes foram mais fortes e, logo que chegou a ocasião propícia, seguiu o rumo dos pais e entrou num estágio para técnico de rádio.

 Por isso o velho sótão, já pouco utilizado pelo Avô, em breve ficou atulhado por aparelhagens e fios, caixas de ferramentas e uma enorme colecção de discos, feita com a ajuda dos amigos da Avó. E, dominando tudo o resto, um grande rádio de válvulas, prenda do Vasco pelos seus vinte anos. Também havia, dispersas por toda a parte, relíquias de futebol, outra das suas grandes paixões. E o fabuloso despojo dum velho Hispano- Suíza J 12 que, vencendo as enormes dificuldades de encontrar peças legítimas, dada a sua antiguidade, ele esperava vir um dia a restaurar. Fora o Guedes que o encontrara, abandonado, numa arrecadação do jornal, onde, há muito reformado, só ia de vez em quando visitar os poucos velhos amigos que ainda por lá continuavam.

A Noémia, para si e para a sua irmã uma segunda e doce avó, tinha-se deixado resvalar suavemente na morte, tão apagada e simples como fora a sua vida.

Sem ela, a Maria da Luz, sentia como que uma segunda viuvez. A caminho dos oitenta anos mas ainda muito activa, continuava a receber os amigos e era o grande apoio do José, que cada vez estava mais diminuído.

 Ela, porém, sentia-se rejuvenescer de sempre que festejava os anos dum neto ou dum amigo deles, ou organizava um serão com as últimas canções da rádio, agora predominantemente em inglês. Sempre que podia, ia buscar uma canção dos velhos tempos e ficava admirada com a adesão da juventude. E os jovens já não se sentavam diante do aparelho: faziam downloads para os seus Ipods e levavam as músicas de diferentes emissoras para todo o lado. Com headphones nos ouvidos, ouviam-nas nos autocarros, nos intervalos da Escola, quando iam passear de carro com os pais e até trocavam por elas muitos programas que a Televisão lhes dirigia em particular. Só as largavam para navegar na Internet ou disputar jogos nas consolas.

Maria da Luz dizia para os amigos:

            - Bem sei que este já não é o meu tempo, que a magia da Rádio se esvaiu, mas, ainda que me considerem retrógrada, ou, como eles dizem, careta, não posso deixar de recordar os bons velhos tempos em que, em todas as marquises e varandas onde havia um tanque de lavar roupa, se reproduziam as canções popularizadas pela Rádio e pela Televisão.

                                              

                                               LXXIX

                                        A MAGIA DA VIDA

O José já ali não estava para a apoiar, abanando afirmativamente a cabeça, mas o próprio Rui se mostrava preocupado:

            - Estamos a criar uma geração de surdos e, o que é ainda pior, de jovens metidos consigo mesmos, sem capacidade de comunicar, a não ser de forma virtual. Vejam-se os milhões de adeptos do Facebook.

            - Não sejas tão pessimista, Rui. Olha que até as rádios e a televisão estão a incorporar as novas tecnologias. O nosso Gonçalo, por exemplo, utiliza imenso a Internet e nem por isso deixa de ser um bom filho, sempre atento e disponível e os seus programas têm conteúdos cada vez mais aliciantes.

            -Eles agora gravam tudo. Escrevem meia dúzia de banalidades, enfiam-nas no computador e pronto, já está. Nem precisam de estar no estúdio. Numa hora podem gravar meio- dia de emissão. Onde está a magia?

            - Ó Rui, e as pessoas acreditam que eles estão no seu posto?

            - As pessoas… Hoje só se dá às pessoas aquilo que elas querem ouvir. Tudo mudou: os gostos dos ouvintes, sempre stressados e em busca do que não exige concentração e os conteúdos, sempre ligeirinhos ou sensacionalistas. Dantes o objectivo era criar programas a que as pessoas aderissem e muita gente se sentia como se a rádio fizesse parte da família. Agora a própria família raramente está reunida, mesmo à hora das refeições.

            - Mas é sabido que os tempos mudam. Sempre foi assim. Quando tu começaste, tinhas que manobrar cuidadosamente a agulha para acertares no início do tema. Quando os mais velhos te falavam de gravações em fio de metal, tu rias-te tal como hoje os miúdos quando vêem uma cassette. Até os CD’s deixaram de ser usados…

            - Tudo isso é muito bonito, mas não passa de tecnologia. E de que vale a tecnologia se usada para fazer programas sem alma e todos iguais?

            - Sinal dos tempos, meu filho. Hoje quem manda é o lucro. A tecnologia substitui o homem, explora o filão da publicidade e a verdade é que a rádio cada vez é mais um negócio e, diga-se que, apesar de tudo, cada vez menos rentável.

            - Pode ser, mas nós já não fomos testemunhas do seu sucesso em programas ao vivo como o Clube das Donas de Casa, de que tanto ouvi falar durante a minha infância e outros muito diferenciados. Eu, por exemplo, só me lembro do espectáculo que o António Sala fez para si, da minha inquietação e do sucesso que foi. Nem calculas, Teresinha.

- Ora, ainda há pouco tempo, a nossa Mãe, quando cantava nas festinhas dos pequenos, maravilhava todos pela sua voz límpida, doce e simultaneamente poderosa. Na rádio devia ser a verdadeira magia.

- É verdade. Na rádio, o ecrã tem o tamanho que a nossa imaginação quiser. A Mãe sabia disso e fazia maravilhas. Podes crer.

- Eu sei menos do que tu a esse respeito. Mas o certo é que, uma vez, até um dos pequenos lhe disse: “Ó Avó, porque é que não vai cantar à Televisão?». E sabes o que ela desabafou comigo? “Olha, este foi o maior elogio que ouvi na minha vida. Apesar da ingenuidade, ou talvez por isso, foi um verdadeiro bálsamo para o meu coração». Mas, agora que se vão festejar os setenta anos da Rádio Renascença, feitas as contas um património de toda a nossa família, quem sabe…

            - Não sejas também criança, Teresinha. Foi pena a minha Mãe não ter podido fazer, na Rádio, a carreira que sempre a fascinou e para a qual todos a achavam destinada, mas a verdade é que ela é uma pessoa simples e pragmática. Agora, com a idade que tem, jamais aceitaria actuar em público, sujeitando-se à humilhação dum possível fracasso e propondo-se ombrear com tantos novos artistas, no auge da fama e que, aliás, ela tanto admira.

            - Tens razão. Ela é a Avó dos nossos filhos e que bem lhe assenta esse papel. Desempenha-o com a perfeição que procurou atingir em todas as circunstâncias da sua vida e, se pensarmos bem, não é só na Rádio que se encontra a magia.

           

                                               FIM

 

           

 

 

 

 

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Sábado, 22.12.12

 

Açores

 

Nas ilhas gregas

pressenti

o antigo passar

dos deuses

e os traços

dos mitos.

 

Era verão.

A paisagem austera faiscava

e o mar de cobalto

falava

de Ulisses

e sereias

 

Mas nestas ilhas não,

tudo é diferente:

não há máscaras de ouro

de reis que foram

nem cavalos de bronze

no fundo do mar.

 

Nestas Ilhas há Gente.

 

 

Angra do Heroísmo, 1984

 

Clementina Relvas

(em homenagem aos obreiros da reconstrução

dos Açores após o grande terramoto de 1980).

 

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Quarta-feira, 04.11.09

 

Assisti, no dia 13 de Outubro passado,pela Televisão, às cerimónias que, em Fátima celebraram a última aparição, em 1917, de Nossa Senhora aos três pastorinhos. Como sempre comoventes e de grande elevação espiritual, tiveram este ano, consagrado como Ano Sacerdotal, uma notável homilia do Senhor Cardeal Patriarca de Lisboa, que todos os fiéis, povo sacerdotal, deviam ler e meditar.


Entre as inúmeras referências a Nossa Senhora, foi invocado o episódio das Bodas de Caná, com a intervenção de Maria em favor daqueles noivos, prestes a passar por um grande embaraço, ao darem conta que não havia mais vinho.


Veio-me então à memória um episódio ocorrido em S. Jorge, nos Açores, durante um bodo em louvor do Espírito Santo, para o qual tinha sido convidada.


Havia grande abundância de comida, a começar pelas sopas do Espírito Santo, seguidas por grandes travessas de alcatra e muitos doces, bem como vinho de cheiro e refrigerantes. Via-se que, se mais pessoas chegassem, ainda que não convidadas, para todas chegaria o almoço. No entanto, não podia deixar de se reparar no nervosismo da dona da casa que, quando eu procurei acalmá-la, dizendo-lhe que tudo estava perfeito, me respondeu:


- Ó senhora, que o Divino Espírito Santo a escute pois, se a comida ou a bebida faltassem, o que aliás nunca aconteceu, eu teria de sair de casa, coberta de vergonha, pela porta das traseiras e não sei quando arranjaria coragem para voltar.


Foi por se deparar com uma situação semelhante que Nossa Senhora, nas Bodas de Caná, disse, aflita, para o Seu Filho: «Não têm vinho» e que Ele, apesar de lhe responder que ainda não tinha chegado a Sua hora, realizou o Seu primeiro milagre, transformando a água das purificações num vinho tão excepcional que levou os convidados a espantarem-se por os noivos, contra o que era o costume, guardarem para o fim da festa o melhor vinho que tinham.

                                IMPÉRIOS Açorianos

O bodo — No 7.º domingo após a Páscoa (dia de Pentecostes) realiza-se o bodo. Nesse dia, o cortejo depois de sair da igreja dirige-se ao Império, sendo as coroas e bandeiras aí colocadas em exposição. Frente ao Império, em longos bancos corridos são colocadas as esmolas, que depois de abençoadas são distribuídas. Os irmãos recebem-nas e todas as pessoas que passam podem livremente servir-se de pão e vinho. No entretanto são arrematadas as oferendas, normalmente gado, alfenim e massa sovada. (in Wikypédia)

 

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Quarta-feira, 04.03.09

Meus queridos netos:


Preenchendo a vaga da Vóvó, enquanto ela descansa e busca nos mais recônditos cantinhos da sua memória belas histórias por ela vividas que certamente vos irá contar em próximas cartas, aqui estou eu, o Vôvô, para mais uma pequena conversa convosco.

 

Numa carta anterior falei, com muita ternura e saudade, da vossa Bisavó Inês, minha mãe, a propósito da morte do Papa João Paulo I. Hoje, também por me lembrar dela, vou falar-vos de outro grande vulto da Igreja. E porquê? dirão vocês. É o que vão saber um pouco mais adiante.

 

A vossa Bisavó Inês, embora crente, não era pessoa muito frequentadora da Igreja. Ela, lembro-me bem, contava que, quando ainda era novinha, frequentou a creche da fábrica onde a mãe dela trabalhava, a minha avó Casimira, e foi ali que aprendeu a ler e a escrever muito bem. Como a referida fábrica era dos ingleses, a religião praticada era a anglicana e, antes de as aulas começarem, rezavam sempre o Pai Nosso, fazendo uma vénia e apoiando a testa na mão direita, absorvendo-se na oração. Mais tarde, já mulher e casada com o meu Pai, partiu para Timor comigo ao colo, como já vos contei. E lá, quando calhava, ia assistir às missas católicas onde se mantinha sempre muito séria e silenciosa mas, quando se rezava o Pai Nosso, levava a mão à testa e inclinava-se para a frente tal como fazia quando era pequenina! Nós, eu e meus irmãos, só começámos a estranhar este lindo gesto dela quando chegou a altura de frequentarmos a catequese da Missão Católica, pois ali nunca nos ensinaram a proceder daquele modo. Mais tarde, com os anos, ela foi perdendo o hábito.

 

Naqueles tempos já recuados (anos trinta do século XX), Timor ainda fazia parte da Diocese de Macau, lá longe junto à China. Só em 1941 foi criada a Diocese de Dili, capital de Timor, com Bispo próprio. Portanto, as visitas pastorais do Bispo de Macau a Timor eram muito espaçadas devido à distância pelo que, quando se realizavam, constituíam sempre um acontecimento notável, a quebrar a rotina do dia-a-dia timorense.

 

Era então Bispo de Macau e Timor, D. José da Costa Nunes. Parece que ainda o estou a ver, com a sua barbicha e óculos de aros dourados, sempre com um sorriso nos lábios. Para um labárak (garoto em linguagem tétum) da minha idade, isolado no meio daquelas grandes e muitas vezes enevoadas montanhas de Timor, a novidade de tal personagem não podia deixar de impressionar. Foi ele quem me deu o sacramento do crisma. Quando estava na fila para o receber, o rapaz timorense à minha frente, ao chegar a vez dele, talvez um pouco intimidado, não se aproximou do Bispo o suficiente para ele lhe tocar na cara. Então D. José disse-lhe: “Ó rapaz, aproxima-te mais de mim, julgas que o meu braço é o Ramelau?” Ramelau é o monte mais alto de Timor, com cerca de 3.000 metros! Oh, como eu me lembro tão bem destas coisas tão antigas e me esqueço de outras tão recentes! Mas não se aflijam, porque é normal em pessoas da minha idade.

 

D. José da Costa Nunes era filho de um casal de agricultores modestos da ilha do Pico, Açores. Ingressou na vida religiosa onde viria a atingir uma altíssima posição. De facto, muito novo, foi nomeado Bispo de Macau, cuja diocese abrangia vasta área da Ásia, como a região sudoeste da China, Singapura, Malaca, etc. e Timor, como já disse atrás. Mais tarde, como Arcebispo, foi-lhe conferido o título de Patriarca das Índias Orientais, com sede em Goa, cargo que deixou alguns anos depois para ingressar como vice-camerlengo da Cúria Romana, dignidade muito importante no Vaticano. Acabou por aceder ao cardinalato no tempo do Papa João XXIII. Como Cardeal, participou no célebre Concílio Vaticano II, onde teve papel de grande relevo e fez parte do conclave que elegeu o Papa Paulo VI. Ele próprio até podia ser eleito Papa. Até à sua morte, em 1976, com 96 anos de idade, foi uma figura muito importante da Igreja católica romana, da qual os açorianos muito se orgulham, homenageado em vários pontos do país e até do Oriente, com escolas, lares, bustos, com o seu nome e outros memoriais. Está sepultado na Igreja de Santo António dos Portugueses, em Roma.

 

Nas suas visitas a Timor, percorria a antiga colónia portuguesa de lés a lés, o que naquele tempo não era fácil, pois as vias de comunicação eram quase inexistentes. As deslocações faziam-se em regra a cavalo, nos célebres cavalinhos timorenses (os Kudas), por montanhas que então me pareciam enormes com vales profundos, por caminhos pedregosos que só estes animais aguentavam, embora nem fossem ferrados. Apesar de o país não ser grande, as viagens por vezes demoravam dias.

 

E foi assim que certo dia o nosso Bispo chegou a Maubara, locali-dade a cerca de 80 quilómetros a oeste de Dili, na costa Norte do país, onde o vosso Bisavô, embora fosse militar, desempenhava funções de autoridade civil daquela zona (Chefe de Posto). Maubara era a sede do Posto com o mesmo nome e resumia-se a várias casas de comércio, todas chinesas, e à casa do Chefe de Posto, um casarão de estilo colonial, com larga varanda a toda à volta, coberta a chapas de zinco, como quase todas as casas do Timor daquele tempo. Ficava situada num ponto alto muito (bárak) arborizado com uma soberba vista para o mar (táci) e praia ao redor da qual ficavam as casas dos chineses. Como não existia ali Missão Católica (apenas uma igreja bastante frequentada pela população timorense) e muito menos um Hotel, o Bispo iria pernoitar na casa do Chefe de Posto, a casa dos vossos Bisavós, claro, como era tradição.

 

Ora é aqui que entra a Bisavó Inês e era aqui que eu queria chegar, depois deste palavreado todo.

 

Receber em casa hóspede tão ilustre era uma honra e um grande prazer para os Bisavós. Por tal motivo os preparativos, para o receber com a dignidade que se impunha, começaram bem cedo. A vossa Bisavó, como boa dona de casa e esposa e mãe extremosa que sempre foi, não consentiu que ficassem por mãos alheias os seus créditos, e foi ela própria que tratou de tudo: as refeições, as sobremesas e, principalmente, o alojamento. E foi assim que preparou com o máximo esmero o melhor quarto da casa, com uma cama digna de um Bispo, com os seus melhores lençóis de desfiados (bordado típico timorense).

 

D. José foi recebido em triunfo pela população e depois recolheu a nossa casa, onde jantou, conversou, e encantou, principalmente os labáraks (eu e meus irmãos mais pequenos). Quando se aproximava a hora de recolher aos seus aposentos, surgiu na sala o criado do Bispo, que sempre o acompanhava, ainda me lembro bem, um chinês que eu achava muito parecido com o “china-padeiro” lá da terra que era quem fabricava e nos fornecia o pão. O homem, cheio de vénias, chegou-se ao pé de D. José e segredou-lhe qualquer coisa ao ouvido. O Bispo ficou muito sério durante algum tempo, olhou para meus pais mas depois fez um pequeno sorriso. O que seria?

 

Bem, não vou perder mais tempo com o que se passou logo a seguir àquele instante. Apenas direi que, passado um bocado, a Bisavó Inês apressou o passo em direcção ao quarto que fora preparado para o Bispo e eu, sorrateiramente e cheio de curiosidade, fui atrás dela. Céus! Exclamou minha mãe. É que em plena colcha de seda, a melhor que havia em casa e cobria a cama do Bispo, estava a nossa gata a dar de mamar a três lindos gatinhos que ali mesmo, momentos antes, dera à luz! Logo na cama do Senhor Bispo, clamou minha mãe, muito perturbada . ..

 

Hoje, quando me lembro deste episódio, na altura tão dramático para a minha mãe, sorrio como também sorriu D. José, pois tudo se resolveu. Apenas lamento não me lembrar do nome da gatinha-mãe, mas recordo-me muito bem de como era: muito mansinha, nossa amiga e branca com malhas pretas, ou seria preta com malhas brancas? Ora esta!

 

Beijinhos do Vôvô

 

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Quinta-feira, 31.07.08

 

 

 

 

Meus queridos netos:


Se não vos faltou o tempo ou a paciência para ler várias cartas em que vos falei dos Açores, vou agora explicar-vos o porquê da nossa ida e prolongada estadia nessas ilhas paradisíacas, tão mal conhecidas dos portugueses.


Quando, em 1980, ocorreu nos Açores um terramoto que quase riscou do mapa as Ilhas da Terceira, S. Jorge e Graciosa, impossível seria imaginarmos a mudança que tal cataclismo traria para as nossas vidas.


O primeiro impulso das populações atingidas foi, tal como acontecera alguns anos antes com a erupção do vulcão dos Capelinhos, no Faial, fugir daquela dramática devastação para ir tentar a sorte na América, onde a maioria dos açorianos tem família, aí fixada há longos anos.

 

Avisadamente, o Governo Regional, apoiado pelo Governo da República, decidiu tomar medidas de fundo para travar essa debandada.


A primeira foi criar um Gabinete de Apoio à Reconstrução (G.A.R) que dotou com uma equipa constituída por engenheiros e outros técnicos, regressados de Angola devido à descolonização. Embora já estivessem quase todos reformados, já que o país não arranjou meios para os integrar, eram pessoas muito competentes, dinâmicas e devotadas à causa pública. E assim se evitou o êxodo e se deu alento às populações que, modelarmente se lançaram à tarefa de transformar as casas em ruínas em óptimas moradias com todos os requisitos modernos. E o êxito foi tal que, até do Japão, onde os grandes sismos são frequentes, vieram equipas técnicas estudar o caso dos Açores.


No Verão desse ano, convidaram o Vôvô, que tinha trabalhado em Angola, nas Obras Públicas, com quase todos aqueles técnicos, a juntar-se à equipa do G.A.R, ficando a seu cargo a parte administrativa, em que era perito. Mas como nós já tínhamos planeado umas férias em Nova Iorque, em casa da nossa amiga Maria José, o Vôvô pôs, como condição para aceitar o convite, esperarem por ele até Outubro, o que foi prontamente aceite.


Regressados dessa fabulosa viagem, lá partiu o Vôvõ para os Açores, por um período calculado em seis meses, mas que se prolongou por cinco anos. Instalou-se na Residencial Cruzeiro, um dos edifícios que tinha escapado incólume ao terramoto e onde se encontravam já quase todos os elementos do G.A.R. Entretanto, eu continuei em Lisboa para dar todo o apoio possível aos nossos filhos, que já tinham concluído, com muito boas notas, o Ensino Liceal. O Zé tinha entrado, por opção sua, no Instituto Superior de Agronomia e o Quim, hesitante entre Medicina e Informática, acabou por perder a sua oportunidade e teve de esperar um ano, em que fez o Curso de Inglês no Instituto Americano, ingressando, no ano seguinte, no Instituto Superior Técnico.


Eu dava explicações em casa, mas decidi aceitar a oferta dum lugar num Colégio, que detestei. Era frequentado só por alunos rejeitados pelos liceus, cábulas e indisciplinados e por estudantes trabalhadores que não conseguiam concentrar-se nos seus estudos, naquele ambiente adverso. Não aguentei ficar ali para além de dois meses mas, pouco tempo depois recebi, por intermédio dum dos meus explicandos que o frequentava, o convite para ir ocupar a vaga dum professor há pouco falecido. Tratava-se dum Colégio de renome e tradição, O Novo Académico, que estando longe de me satisfazer, me reteve até ao fim do ano lectivo, após ter conseguido resolver alguns problemas de indisciplina, neste caso pontuais.


Como, entretanto, o contrato do Vôvô tinha sido renovado por, pelo menos, um ano e o Secretário Regional da Educação me convidara para ir dar apoio aos professores de Francês em todo o Arquipélago (excepto no Corvo, onde só se ministravam, por meio de Telescola, os quatro primeiros anos do currículo escolar então em vigor), pesados os prós e os contras, achámos que fazia sentido eu aceitar o emprego e, quando chegaram as férias grandes, despedi-me do Colégio e parti com o Vôvô a caminho dos Açores. Os nossos filhos (respectivamente com vinte e dezoito anos de idade) ficaram em Lisboa, instalados na nossa casa, com direito a uma mesada adequada e com uma mulher-a-dias que lhes tratava da roupa e das limpezas. Iam frequentar as respectivas universidades e pensámos que uma maior independência lhes daria um novo e maior sentido das responsabilidades. Quanto a mim, ia estar de novo junto do Vôvô, de quem sentia tanta falta e, o que não era para desprezar, dado o que tínhamos perdido em Angola, acrescentar um ordenado razoável à minha desfalcada reforma: Longe de mim o imaginá-lo mas o proveito ainda foi maior porque consegui somar mais quatro anos ao meu tempo de serviço, interrompido pela descolonização. Telefonávamos aos filhos pelo menos uma vez por semana e, de três em três meses vínhamos a Lisboa visitá-los, abastecer-lhes a despensa com carne e queijo dos Açores e tratar dos nossos assuntos.


Na Terceira, fiquei também instalada na residencial Cruzeiro, dotada de razoável conforto e onde só me cobravam um pequeno suplemento sobre a despesa do Vôvô e o pequeno-almoço. Como ainda não se tinham reabilitado os poucos restaurantes que funcionavam antes do sismo, comíamos, em geral, na cantina dos funcionários públicos ou na da Polícia, nem sempre muito bem. A primeira tinha um cozinheiro de tal calibre que os comensais estavam sempre ansiosos que ele fosse de férias, pois o ajudante que o substituía cozinhava muito melhor.


Foi com o maior dos entusiasmos que comecei o meu trabalho e comecei da melhor maneira pois, logo no primeiro dia fui encarregada de ir à Ilha das Flores levar as provas de exame, que eram a nível nacional. O meu Director, mais novo do que eu, teve algum receio de que eu não gostasse da missão, mas logo o tranquilizei, dizendo:


- Quando me quiser mandar a qualquer ilha, não hesite pois, para passear, estou sempre pronta mesmo que fosse de burro, quanto mais de avião.


E lá fui, contemplando, do alto, o arquipélago como se observasse um mapa e, embora não tenha saído do Aeroporto da iIha das Flores daquele tempo, que todos chamavam aero-vacas, dadas as suas reduzidas dimensões e a presença dos pacíficos ruminantes quase dentro do seu perímetro.


Foi-me dada uma grande liberdade de acção para programar e efectuar o meu trabalho: nos dois primeiros anos fiz, essencialmente, formação em Angra, para onde convocava um ou dois professores das diferentes escolas. Mas as deslocações de avião, o alojamento e as ajudas de custo eram tão onerosas que, a certa altura, já bem consciente dos problemas decorrentes de ter que lidar com aquela dispersão das ilhas por tão vasto espaço, só transponível por avião, propus ao meu Chefe ser eu a deslocar-me às escolas e aí, detectados os problemas, procurar resolvê-los in situ. Ele aplaudiu a minha proposta e foi assim que passei a viajar de avião, de Ilha para Ilha, quase todas as semanas.


Era um trabalho muito cansativo, com alguns percalços sem consequências devidos à instabilidade do tempo (poços de ar, nevoeiros que, por vezes, me retinham a meio do caminho por longos períodos) mas como era sempre muito bem recebida e, nessa altura, já todas as Ilhas dispunham de bons alojamentos, eu até costumava dizer, por graça: «Até que enfim! Agora só trabalho tanto como um homem». É que estava livre das tarefas de casa e a fazer aquilo de que gostava.


Prometo continuar esta saga mas, por agora, muitos beijinhos e até breve.

 

 


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Sábado, 24.11.07

      Meus queridos netos:

 

 

Terminado o Curso de Românicas, só arranjei colocação compatível nos Açores, o que logo me agradou porque me dava o ensejo de viajar que é, juntamente com ler bons autores, o que mais gosto de fazer. Procurando algumas informações sobre o que podia esperar-me no Liceu Antero de Quental, de Ponta Delgada, só consegui contactar com uma colega que lá tinha leccionado no ano anterior e me deu as piores referências possíveis: alunos indisciplinados, pessoas fechadas e até hostis para os colegas do Continente, enfim, um rol de desgraças que lhe tinha causado uma depressão. A senhora era tímida, muito míope, o que vai ter o seu interesse no decorrer da narrativa. Mas lá chegaremos.

Por agora, eis-me a bordo do paquete Carvalho Araújo, onde logo me relacionei com duas colegas, uma do meu grupo e outra de Físico-Químicas, todas nós principiantes. Era a primeira vez que andava de barco – eu ia para S. Miguel e só havia aviões para Santa Maria – e os primeiros dias, com o mar agitado, passei-os intermitentemente na cama, enjoada.

Depois as coisas acalmaram e o nosso grupo aumentou, ao conhecermos um médico escolar, que já tinha estado no Liceu em dois anos anteriores e um amigo indiano da colega de Físico-Químicas, que ia como delegado do Procurador da República para o Nordeste.

Foram poucos mas muito agradáveis os dias da viagem – exceptuando o enjoo, claro – e aí se cimentou entre nós cinco uma amizade que nos uniu durante todo o ano lectivo e nos permitiu relacionar-nos com pessoas da Ilha, fazer passeios de carro, conduzido pelo médico e cujo aluguer dividíamos entre nós e assim conhecer a fundo toda a Ilha de S. Miguel.

Instalámo-nos numa pensão que se situava no Largo onde se suicidou o grande e infeliz poeta Antero de Quental, cuja obra sempre me fascinou. Era também nesse Largo que ficava a Igreja do Senhor Santo Cristo dos Milagres, a cuja famosíssima procissão, em Maio, assistimos das janelas do nosso quarto

Pouco tardou que nos apresentássemos ao serviço e, como é natural quando se chega a um meio que nos é estranho, todas nos sentimos vagamente apreensivas. Mas sem razão porque, em breve, éramos, as três, tratadas como as «estrelas» do Liceu que, embora tendo um corpo docente constituído, em grande parte, por professores açorianos, todos muito mais velhos do que nós e conceituadíssimos no seu meio, nos acolheram como as meninas que iam rejuvenescer e alegrar o ambiente. Falou em nosso favor um pormenor inesperado: como éramos muito jovens, nunca nos passou pela cabeça tratar os professores mais velhos e com tanta experiência por colegas, mas sim por Senhor Doutor. E só muito tarde viemos a saber o quanto isso tinha sido importante. Foi o saudoso Dr.Cortes-Rodrigues quem, um dia, me disse:

 - Todos gostámos muito da vossa atitude educada e modesta. Podiam tratar-nos por colegas, que o são, mas só o fez quem o não era: a doutora de corte e costura. Referia-se ele à professora de Trabalhos Manuais que, pelo seu modo de ser, nunca entrou para o nosso grupo.

Nessa altura – 1954-1955 – o Liceu Antero de Quental tinha um escol de professores ilustres, dignos do grande poeta, seu patrono. Pela minha parte, nunca esquecerei as gentilezas que recebi da parte do Dr. Cortes-Rodrigues, professor de Português, grande poeta que tinha sido companheiro das lides literárias de Fernando Pessoa e com ele tinha colaborado no Orfeu. Além de nos convidar para passeios, entre os quais, já lá para o fim do ano, o que preencheu o dia esplendoroso que passámos no Ilhéu de Vila Franca do Campo, também nos recebeu, algumas vezes, a jantar em sua casa onde, sendo então viúvo, imperava a sua única filha, a Ernestina, perfeita na arte de receber os amigos do seu Pai.

Outro poeta, o Dr. Ruy Galvão, professor de Filosofia, era mais retraído, mas ambos me distinguiram com poemas seus, que conservo religiosamente e que vão aparecer no final desta carta.

O Dr.João Bernardo era um verdadeiro melómano. Foi ele quem, no Centenário da morte de Almeida Garrett, organizou o «Serão de Arte» que teve lugar na Academia Musical de Ponta Delgada com música clássica e poesia, tendo eu sido encarregada de declamar o início de D. Branca, o célebre poema «Saudade». O texto de ligação foi propositadamente escrito pelo Dr. Cortes-Rodrigues, e o Sarau foi um verdadeiro sucesso, naquele meio tão devotado à cultura
     O Dr. Pavão, também professor de Português, era um dos mais novos desse grupo e encontrei-o, mais tarde, já como professor da Universidade de Ponta Delgada. Estava eu, vários anos depois, a trabalhar na Ilha Terceira, quando até me convidou para sua assistente. Foi com pena que declinei tão honroso convite, mas o meu destino não passava pelo ensino universitário, que me tinha passado ao lado primeiro em Lisboa, quando já tinha constituído família em Luanda, depois em Angola, onde a Faculdade de Letras foi instalada em Sá da Bandeira e agora nos Açores. Desta vez, além de me achar já demasiado cansada para iniciar uma carreira universitária, também se deu o caso de eu morar na Ilha Terceira e, ao fim de quatro anos, estar ansiosa por regressar a Lisboa, onde estavam os nossos filhos, já na Universidade.

Mas, voltando aos professores, havia, ainda o professor de Matemática Dr. Rego da Costa, cuja esposa preparava uns deliciosos gelados de maracujá, com que, de vez em quando, nos regalava.

Contudo, a nossa grande companheira e amiga foi a Dra. Maria Emília Benevides, professora de Físico-Químicas, que logo se tornou a patrona da Manuela e, em seguida, adoptou o grupo dos cinco. Tinha carro e carta de condução, o que, na época, não era frequente numa senhora, para mais já de certa idade. Com ela visitámos quase todos os lugares turísticos da Ilha, incluindo as suas estufas de ananases, na Ribeira Grande. Passámos inúmeros serões em sua casa onde, além do marido, vivia também um irmão deste, que não casara. Não faltavam, pois, parceiros para a canasta, jogo de cartas então muito em voga. E, em seguida, deliciosos bolos caseiros e chá ou licores, entre eles o famoso licor de maracujá Ezequiel, uma especialidade da Ilha que várias gerações com este nome celebrizaram e preservaram até hoje.

A Dra. Maria Emília era, como já supõem, muito mais velha do que nós, quase na idade da reforma, mas uma pessoa afável, bem disposta e muito respeitada na cidade Só era igualada pelo seu marido na lhaneza do trato e na amizade que nos dispensava.

Quanto ao ambiente com que nos deparáramos à chegada, não deixou de ser cada vez mais aberto e afectuoso, tendo sido sempre cumuladas, as três, de favores e gentilezas.

Assim, nas férias da Páscoa, o nosso colega melómano, Dr. João Bernardo, pôs à nossa disposição uma casa nas Furnas, à beira dum riacho, com muitas azáleas floridas e um pomar de laranjeiras. Aí colhíamos as laranjas para os sumos que diariamente tomávamos antes do pequeno-almoço. Este, além do café com leite, incluía sempre queijo fresco e massa sovada que o filho do dono do restaurante onde comíamos ia, logo de manhã, levar-nos a casa.

 Foram umas férias de sonho, com passeios a pé e a cavalo naquele paraíso das Furnas. Paraíso mascarado de inferno, por causa das erupções vulcânicas, que enchiam o ar de vapor sulfuroso. Às vezes também saíamos de barco a remos, que era fácil alugar com marinheiro, quando não havia um aluno disponível para ser nosso guia e companheiro.

Houve tanta coisa boa nesta nossa passagem pelos Açores, que vos prometo outra carta, pelo menos, sobre o Liceu e os nossos alunos.

                Seguem-se os dois poemas prometidos:

Um poema filosófico, na linha de Antero de Quental, que o Dr. Ruy Galvão me dedicou e outro do Dr. Côrtes-Rodrigues, lamentando o nosso regresso ao Continente.

 

                                                   

  

    Beijinhos da Vóvó.

 

 
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Terça-feira, 20.11.07
 

            Meus queridos netos:

 

         Nunca na minha vida fiz nada extraordinário. Mas, nas tarefas da vida quotidiana espero, com a ajuda de Deus, ter posto todo o empenho e dedicação de que fui capaz e penso tê-las levado a bom termo.

 

         Assim sucedeu nos meus estudos, de que já vos falei noutra carta, como no aperfeiçoamento da minha vida profissional, às vezes com bastante sacrifício como vereis.

 

         Quando acabei o curso da Faculdade, a melhor entre quarenta, dois caminhos se abriam à minha frente: aguardar que vagasse um lugar para professora assistente, conforme me tinha prometido o meu saudoso Professor Doutor Jacinto do Prado Coelho ou fazer o estágio pedagógico para seguir a carreira docente, minha primeira aspiração.

 

         Já sabem que a primeira via se mostrou sempre inacessível para mim, sobretudo porque decidi casar e ir viver com o Vôvô para Angola e aí constituir família.

 

         Quanto ao estágio, nessa altura, era extremamente difícil, não só o ser admitida como os dois anos em que tínhamos de trabalhar numa Escola, sem qualquer remuneração o que, desde logo, me afastava dessa hipótese que não garantia a minha subsistência e seria demasiado difícil para os meus Pais sustentar-me.

 

         Além disso, só havia dois centros de estágio: um em Lisboa e outro em Coimbra, cada um deles com apenas duas vagas. Os exames de admissão eram muito difíceis e tinham a agravante de, ainda que tivéssemos nota positiva ou mesmo boa, se a dos outros concorrentes fosse superior à nossa, só o melhor é que entrava e ao segundo de nada lhe valia o exame pois, além de não ser admitido na única vaga que havia, teria de repetir o exame até conseguir ser o melhor.

 

            Para o que tinha sorte de entrar, ficava durante dois anos lectivos a dar aulas, quer sob a orientação dum professor categorizado e com muita prática, quer como único responsável de algumas turmas, mas sempre sujeito à intervenção do metodólogo que assistia à aula e fazia as suas críticas. Uma vez feito o estágio com êxito, era-lhe conferida a categoria de professor agregado, que, embora parcamente remunerado, nada recebia durante as férias grandes e, em certos grupos, eternizava-se nessa situação por muitos anos.

 

         Ora, como no ano anterior em que eu devia candidatar-me ao estágio vi a melhor aluna desse ano, que tinha concluído a Faculdade com dezassete valores, como eu, ter tido doze no exame de admissão e ser suplantada por outra colega que teve catorze valores, senti-me completamente desmoralizada para me arriscar nessa aventura, tão difícil de todos os pontos de vista.

 

         Fui então dar aulas para o Liceu Antero de Quental, em S. Miguel e ali fiquei um ano maravilhoso de que já vos fiz um relato entusiasta. Depois vim para Lisboa, para o Liceu Maria Amália, durante três anos, até me casar com o Vôvô, em 1958 e ter ido para Angola. Das vicissitudes que lá passei e também das alegrias – já têm notícia.

 

         Quando fui para Luanda, como professora do Liceu Salvador Correia, sempre me distribuíram turmas do terceiro ciclo, que me davam muito trabalho a preparar até ficarem a meu gosto: rigorosas nos conteúdos e motivadoras na forma para os alunos. Nem sempre o devo ter conseguido, mas posso dizer que era uma professora respeitada e apreciada por todos.

 

         A dada altura fui convidada para exercer um cargo na Mocidade Portuguesa Feminina e a minha primeira resposta ao convite foi não, porque eu nunca tinha tido da M.P. mais do que um pin com um número e quando, ao terminar o Liceu com uma média que ultrapassava em muito os catorze valores exigidos para ser admitida num Lar da Organização, foi-me dada uma resposta rotundamente negativa, com a alegação de que eu não era filiada na M.P.

 

         Dito não, fui para casa a pensar se esta não seria uma vingança mesquinha, e dei o dito por não dito, até porque me interessava muito o trabalho com as raparigas angolanas pobres que na Casa de Trabalho da M.P.F. em Luanda, aprendiam a cozinhar, a tratar dos seus bebés, a costurar, etc. Esse já era um acréscimo de trabalho extenuante e que, além de não ser remunerado, até me saía caro porque tinha de pagar do meu bolso a gasolina para as deslocações. Tais funções também me obrigavam a deslocar-me frequentemente de avião pelo extenso território angolano para supervisionar os Lares distritais e, com as habituais aulas do Liceu, o meu sacrifício aumentou e a minha saúde estava à beira do colapso. É preciso não esquecer que, entretanto, eu tinha tido um filho que morreu à nascença, os meus dois filhos Zé António e Joaquim Manuel e ainda um aborto acidental de quatro meses, penso que motivado por grandes aflições devido a uma doença mental de minha Mãe que vivia connosco em Luanda, por essa altura.

 

         Embora procurasse dar toda a atenção aos meus dois filhos, cuidando deles, ajudando-os nos estudos e levando-os connosco em passeios e viagens, ao cinema, às aulas de natação, valeu-me de muito ter uma empregada, a Luísa, que foi o meu braço direito em relação a eles.

 

         Entretanto, foi promulgada uma lei que abria o estágio para cerca de trezentas vagas e num regime muito mais facilitado. Para o fazer, como era meu grande desejo, tive de vir sozinha para Lisboa e fui dar aulas para o Liceu Pedro Nunes. Alojei-me na Casa de Santa Zita, que era perto, mas doía-me a alma por estar longe dos meus filhos e marido. Até que a corda rebentou: eu chorava a todo o momento, tive de abandonar as aulas e fui fazer uma cura de sono em Belas, onde tive a sorte de encontrar um médico sabedor e paternal, que levou a sua abnegação a tratar-me de Lisboa, por correspondência, durante o tempo todo do meu estágio. Do meu estágio? Sim, eu não fui capaz de continuar em Lisboa, mas, entretanto, tinha sido aberto o estágio em Luanda e, com muito apoio do Vôvô, decidi levar ao fim essa tarefa, sem o êxito do qual ficaria para sempre frustrada. Foi um esforço enorme: quando a maioria das minhas colegas o acabavam arrasadas por um esgotamento nervoso, eu comecei-o já doente e a tomar um punhado de remédios que o médico de Belas ia controlando à distância.

 

         E assim, ajudada pelo Vôvô que me passava todos os meus trabalhos à máquina e me levava ao fim da tarde, com os filhos, até à ponta da Ilha de Luanda onde recuperava paz e força para continuar, lá concluí o meu estágio com a melhor nota dos oito concorrentes e fui logo convidada para Metodóloga de Francês. Para poupar um pouco a saúde, recusei terminantemente acumular essas funções com o lugar na M.P.F. que, tendo ficado à minha espera, nunca voltou a ser preenchido.

 

         Mal acabei o estágio vim com o Vôvô e os dois filhos passar férias a Portugal. Aconteceu então que, dado a minha saúde não me permitir instalar-me em Portalegre para ajudar a Bisavó na tarefa de tomar conta dos rapazes, e para que não perdessem o ano, resolvemos inscrevê-los no Colégio de Tondela, de que tínhamos muito boas referências e onde o Quim fez a quarta classe e o Zé o primeiro ano do ciclo. Durante os seis meses que estiveram no Colégio, nós íamos, mais do que uma vez por mês, visitá-los e levar-lhes mimos e, nas férias da Páscoa, como já contei numa carta anterior, demos praticamente com eles a volta a Portugal e à Galiza. Só nessas férias, o nosso carro novo fez mais de dezoito mil quilómetros.

 

         Embora me tenha custado muito esta separação, olhando para as circunstâncias e para dentro de mim, não acho que tenha sido egoísta. Tanto o Vôvô como eu, fizemos o que nos pareceu ser melhor para todos: para eles que não perdiam o ano, para os seus Avós que já não estavam em idade de ter tanta balbúrdia em sua casa e para mim, que assim pude recuperar as minhas forças e ir retomar, em Luanda, o meu lugar de Metodóloga, que desempenhei até ao fim do ano lectivo de 1976, quando os meus estagiários ficaram com as habilitações que lhes permitiram concorrer a professores efectivos em Portugal, para onde todos viemos, fugindo dos horrores da guerra.

 

Até breve. Beijinhos da Vóvó.

 

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Domingo, 17.06.07

              

Nas ilhas gregas pressenti o antigo passar

dos deuses

e os traços

dos mitos.

 

Era verão.

A paisagem austera faiscava

e o mar de cobalto

falava

de Ulisses

e sereias

 

Mas nestas ilhas não,

tudo é diferente:

não há máscaras de ouro

de reis que foram

nem cavalos de bronze

no fundo do mar.

 

Nestas Ilhas há Gente.

 

 

Angra do Heroísmo, 1984

 

Clementina Relvas

(em homenagem aos obreiros da reconstrução

dos Açores após o grande terramoto de 1980).

 

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